[sempre de acordo com a antiga ortografia]

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Espírito do lugar?

Não, espírito mercantilista...

“(…) E a passo, o breck foi penetrando sob as árvores do Ramalhão. Com a paz das grandes sombras envolvia-os pouco a pouco uma lenta e embaladora sussuração de ramagens e como o difuso e vago murmúrio de águas correntes. Os muros estavam cobertos de heras e de musgos: através da folhagem, faiscavam longas flechas de sol. Um ar subtil e aveludado circulava, rescendendo às verduras novas; aqui e além, nos ramos mais sombrios, pássaros chilreavam de leve; e naquele simples bocado de estrada, todo salpicado de manchas do sol, sentia-se já, sem se ver, a religiosa solenidade dos espessos arvoredos, a frescura distante das nascentes vivas, a tristeza que cai das penedias e o repouso fidalgo das quintas de Verão… (…)”

(Os Maias)

Quando se fala ou escreve acerca do espírito do lugar – coisa tão compósita e quase indefinível – o que se tem em consideração é algo que coincide com alguns dos parâmetros afins desta descrição. De facto, o que se pretende significar com aquela expressão, passa pela referência às linhas de força do local, num entretecer de conotações que o ambiente e a cena suscitam ao observador.

No caso em apreço, estamos no Ramalhão. Trata-se de lugar com um espírito que, pela sua pena de homem de Arte, Eça nos traça através de uma mensagem de Arte inolvidável, como que escrevendo lapidarmente e para a posteridade, o que deveríamos ver e sentir sempre que fôssemos desafiados pelo mesmo estímulo do Ramalhão.

Deveríamos. Pois é, no condicional. Na realidade, uma única condição se impunha para que pudéssemos continuar beneficiando da descrição do artista, ou seja, que o espírito do lugar tivesse sido respeitado. Ora bem, tal como à saciedade pode verificar quem se interne em Sintra através do Ramalhão, isso não acontece e, aliás, há muito tempo deixou de acontecer.

Entre outros factores de abastardamento do espírito daquele lugar, avulta numerosa série de cartazes publicitários. Se ali estão implantadas aquelas mensagens promotoras da venda de bens e serviços, elas foram autorizadas pela Câmara Municipal de Sintra. Entretanto, os mesmos autarcas que, deste modo tão contundente, se permitem aviltar o espírito do lugar que o Ramalhão encerra, são os mesmos que promovem a despudorada e bacoca campanha publicitária Sintra, capital do romantismo

Perdoai-lhes, Senhor, que desconhecem o que seja o espírito do lugar! Por outro lado, julgam saber mas, como flagrantemente se demonstra por toda a nossa querida e tão descuidada Sintra, estão redondamente enganados quanto ao seu conceito romantismo. Se o percebessem cabalmente, saberiam que se conjuga com preocupações de defesa do património natural e edificado, nos termos da qual, o espírito do lugar é, precisamente, o primeiro princípio considerado e inequivocamente respeitado.

E tais preocupações, vemo-las fielmente atendidas em enquadramentos europeus, de algum modo, similares aos que a ideia de Paisagem Cultural acolheu em Sintra. Vemo-las bem patentes, na Escócia, na Alemanha, na Áustria, na República Checa, por exemplo, só para citar países onde abundam, devidamente trabalhados, muitos contextos afins de ambientes soit disant «românticos», sem que se arroguem no direito de promover atitudes de venda turística análogas às da lusa, provinciana e doméstica capital do romantismo.

Ultimamente, o despudor tem atingido contornos inimagináveis. Sintra vende-se. Como qualquer sabonete ou detergente. Dizem os autarcas que o seu objectivo é venderem-na romântica, como marca. Vendem-na à mistura com a Sintra Inn. Vendem-na, besuntada na chapa duma carripana ordinária, junto à igreja de São Martinho, à mistura com um ask me, em imperativo anglófono que parece esconder a vergonha de uma língua que são capazes de confessar ser a sua pátria…

Aqui nem sequer há gato escondido. Como poderão verificar, o cartaz do motel encerra toda a baixeza da mensagem que a autarquia autoriza seja transmitida, bem às claras e sem margem para dúvida. Sintra romântica, para eles, é isto: a pressa de uns amores, num motel periférico. Em tempo mais seco, já se sabe, para além do motel, também o amor e a cabana numa qualquer autocaravana, em pleno coração de Sintra, isto é, o parque de estacionamento do Rio do Porto.

Toca a vender!…

A terminar um ano, em que a rapaziada da autarquia responsável pelo turismo se limitou a fazer mais do mesmo, peço encarecidamente que não insistam em brincar com coisas sérias. Romantismo? Espírito do lugar? Não, decididamente, é um mundo que não está ao seu alcance.

Finalmente, deixar-lhes-ia uma mensagem de caris mercantil: É vender, rapaziada, é vender!... Vendam o que sabem, vendam gato por lebre! Vendam o que a ignorância compra! Continuem a pôr na rua o produto da vossa fábrica de enganos. Um dia virá em que rirá melhor quem rir, por fim, e em que serão confrontados com a mercadoria acumulada de tanta fancaria ordinária…




Agora atentem nas fotos e articulem-nas com a citação de "Os Maias". Mais palavras? Para quê?...








5 comentários:

Carlos Sousa disse...

Caro Dr. Cachado,

O Eça de Queiroz deve dar voltas no túmulo. Se pudesse voltar a Sintra, nem sei o que faria a estes ignorantes malfeitores que têm degradado esta terra de maneira incrível. O seu post é muito bom, parabéns e bom Ano Novo!
Carlos Sousa

Fernando Castelo disse...

Meu caro João Cachado,

Ultimamente, quase todas as notícias sobre Sintra fazem lembrar-me do P. que, farto de fazer erros ao escrever à máquina, se justificava:"o meu pensamento vai muito à frente do teclado".

Ao ler uma Reportagem (?) da revista Turisver (20.11.2010), onde o Vereador responsável pelo Turismo bate as teclas do "romantismo" e até cita Lord Byron, certamente desconhecedor da idade que ele tinha quando visitou Sintra e quantos dias por cá esteve, ficamos com o receio de tal gestor público estar com o pensamento demasiado à frente do nosso tempo, ou a sua sensibilidade para o romantismo assentar em outros patamares que estruturalmente nos ultrapassam.

O gravíssimo atentado à imagem do romantismo, que o João aqui e agora refere,espelha a capacidade de quem ocupa os cargos, usando
frases feitas para iludirem a dura realidade em que se vive.

Políticos que vivem agarrados a um Plano de 1949, será possível que consigam pensar em termos de futuro?

Há dias, alguém me garantia que um qualquer político opinava que Sintra não precisa de mais estabelecimentos hoteleiros.

A menos que esteja em reserva para melhor altura eleitoral (facto que não admiraria) compreende-se porque tão perto do Ramalhão, a Quinta de Santa Theresa, continue a degradar-se, sem que avance a construção de um hotel no local.

Ainda sobre a aludida reportagem, veja-se que até o endereço electrónico da propalada "Sintra inn" vem errado (consta www.sintra.inn" quando deveria ser www.sintrainn.net), uma verdadeira nódoa no charco.

Embora muito aqui pudesse desenvolver sobre a questão turística de Sintra, uma conclusão se poderá retirar da Reportagem/Entrevista: O VEREADOR DO TURISMO E O PRESIDENTE DA CÂMARA DE SINTRA, COM RECURSO AOS QUARTOS DE ALOJAMENTO E OUTRAS DISPONIBILIDADES DE ACOMODAÇÃO, FACE À QUALIDADE QUE GARANTEM,JÁ TÊM ONDE INSTALAR OS PARTICIPANTES NOCONGRESSO MUNDIAL DAS CIDADES PATRIMÓNIO MUNDIAL, QUE SE REALIZARÁ EM NOVEMBRO.

Anónimo disse...

Sintra capital do romantismo é uma aldrabice que foi apresentada na Quinta da Regaleira a uma plateia de gente desqualificada que aparece nas revistas cor de rosa que o Seara patrocina com a sua amizade ao Castelbranco e outros sem género definido. O que o Seara tem feito de Sintra é uma capital de pirosos.

J. L. Pimentel disse...

Amigo Dr. Cachado,

Bom ano para si e para todos.
Com alguma sorte até podemos livrar-nos desta gente que não está à altura de Sintra. Se for preciso fazemos uma promessa de ir a pé a Santiago de Compostela porque a N.S. de Fátima já deve estar cansada
das nossas queixas e pedidos...
O Dr. Cachado costuma dizer que se deve invocar o São Judas Tadeu
por ser o santo dos impossíveis. Vamos a isso. Tudo a rezar a São Judas Tadeu para que o Seara và à
vida dele e nos deixe tranquilos.

José L. Pimentel

Anónimo disse...

Os outdoors à entrada de S. Pedro são de facto gritantes no seu mau gosto e sem duvida atentam contra aquilo que podemos chamar de património imaterial. Contudo,outros atentados, ao património monumental, estão a acontecer. O Sr. João Cachado deveria entrar na Quinta da Regaleira, constroi-se por lá agora uma barraca, suportada por vigas de aço, atrás da barraca bilheteira sem projecto aprovado ou vistoriado pelo IGESPAR. Somos levados a pensar, O IGESPAR porquê? Para quê? O Espirito da coisa é claramente o redondo não aos principios morais e éticos.