[sempre de acordo com a antiga ortografia]

sábado, 13 de julho de 2013


 
Sintra,
o desassossego de São Pedro

[texto publicado na edição do 'Jornal de Sintra' de 5 de Julho de 2013] 
 
Não imagino quantas maneiras haverá de comemorar o solstício de Verão. De qualquer modo, em Portugal, dentre as de maior sucesso, estarão as festas de São João e de São Pedro, respectivamente, nos dias 24 e 29 de Junho, praticamente coincidentes com a altura em que,
para nós que o observamos da Terra, o Sol parece manter uma posição fixa quando nasce e se põe. Interessante que a palavra solstício, de etimologia latina – sol, solis + sistere (parar, não se mexer) – contém essa precisa ideia de Sol parado.

Então, a festa. Em Sintra, São Pedro é o que se sabe. Em seu sossego ou desatino, consoante as perspectivas, deixo as festas institucionais, o feriado municipal, os discursos, as visitas e as inaugurações várias, o hastear da bandeira, a banda que toca. Tudo isso e mais a vertente religiosa eu deixo para que, a partir deste momento, apenas me refira à festa profana, no recinto da feira de São Pedro, Largo D. Fernando II.

Há dezenas e dezenas de anos, não há São Pedro em que a família dispense a sardinhada, as farturas e tudo o mais que houver direito. Com as filhas, genros, netos, vamos até lá acima, sempre pelo cedo porque, caso contrário, encontrar mesa a jeito não é fácil tarefa. Uma vez chegados, rapidamente instalados, que os lugares já escasseavam, pedidas as vitualhas, eis que a mesa se cobre com as saladas, morcelas, caldo verde, sardinhas, pão, bebidas e tudo a preceito.

Alegremente, vai-se cultivando a boa vizinhança com amigos e conhecidos, ditos e dichotes, de mesa para mesa. Brinca-se com quem, improvisadamente, vai servindo de empregado por estes dias de festa. Amesendar, falar e conversar, brincar e brindar, é a festa, São Pedro, a mudança de estação, o Verão a instalar-se.

Pouco a pouco, fala-se mais alto, cada vez mais alto e, quando damos por isso, toda a gente quase grita ou já berra. Passados alguns minutos, apenas vejo o movimento dos lábios de quem está à minha frente. Debruço-me e, para ouvir melhor, com a mão em concha ao lado do ouvido. Ao pretender dizer seja o que for, não há hipótese, tudo tem de ser alta voz ou aos berros.

Berreiro no terreiro

Entretanto, pura e simplesmente, acontecera que dois ou três carrocéis, bem como o conjunto musical em ensaios de som, tinham iniciado o seu débito máximo de decibéis. Em suma, ainda o Sol se não tinha posto – sim, que apesar do solstício, a Terra não pára – e aquilo que poderia ter sido um bonito fim de tarde e agradável serão de festa popular já se transformara num inferno.

A coisa era de tal ordem impossível, os fortíssimos e profundos graves de goelas escancaradas, os batuques descompassados provenientes das várias fontes de som, tudo nos pedia que abandonássemos o lugar. Tão depressa quanto possível foi o que fizemos, tentando que, entre nós, se não se instalasse a atmosfera de desagrado que, afinal, era inevitável.

Bem sabem os leitores que, tal qual escrevo, pois é assim acontece. Como nada exagero, ninguém poderá replicar que são só os meus e os sensíveis ouvidos da minha família que acusam o incómodo. Longe, muito longe disso. Incrível o facto de, à nossa volta, toda a gente se queixar do mesmo e não haver maneira de alterar uma situação que se repete ano após ano. Será que não há mesmo?

Claro que há. Sem precisar de recorrer ao exemplo de festejos populares por essa Europa fora, mesmo em Portugal, tenho assistido a festas extremamente civilizadas e decentes, em que nunca a poluição sonora, pois é disso que se trata, nos violenta a este ponto.

Deixem que, a terminar, registe um especial apelo ao meu amigo Fernando Cunha, Presidente da Junta de Freguesia de São Pedro Penaferrim, lembrando que uma pequena desatenção acaba por estragar a tão tradicional e grande festa. A qualidade da diversão que, tão decisivamente, faz parte da qualidade de vida dos cidadãos, exige o cuidado e carinho que uma festa anual desta importância merece. E eu não tenho a mínima razão para duvidar do cuidado e carinho da sua equipa.

No entanto, não ter actuado, a tempo, velando e zelando por que os «detalhes» que acabo de assinalar tivessem sido devidamente ponderados e cuidados, ter-se-á revelado um manifesto da cultura de desleixo que, tantas vezes, provavelmente, demasiadas vezes, me vejo na circunstância de denunciar.

Mesmo com toda a benevolência e bonomia, o nosso santo vai dando sinais de manifesto desassossego perante estas sonoras investidas. Veremos se, por altura do próximo solstício de Verão, depois de a Terra ter dado mais uma volta ao Sol, se não teremos mais razões para desagradar ao nosso queridíssimo São Pedro.
 
 
 

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