[sempre de acordo com a antiga ortografia]

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008




Maria Nobre Franco,
amiga de Sintra




Há cerca de dois meses, tão discretamente quanto, dez anos atrás, tinha chegado ao edifício da Heliodoro Salgado, para assumir o cargo de Directora do que ali ficou instalado como Museu de Arte Moderna de Sintra-Colecção Berardo, deixou Maria Nobre Franco de exercer tais funções, após inauguração da exposição Arte Latino-Americana na Colecção Berardo.

Sempre com a máxima discrição. Há pessoas assim. Diletante, na melhor acepção do termo, não é que faça grandes coisas sem perceber que as está fazendo. Não, faz grandes coisas, percebe a sua importância, porque é lúcida, mas fá-las como se não tivessem importância alguma. Envolve-se ao máximo nos projectos, mas sempre com um elegante distanciamento, com eles mantendo uma sui generis aristocrática relação.

Num momento em que pululam os videirinhos, metendo-se como piolho por costura à conquista de qualquer vantagem, em que raro é quem não se ponha em bicos dos pés, esbracejando uma presença que, na maior parte dos casos, seria perfeitamente dispensável, continua a ser alto o privilégio de encontrar e privar com pessoas como Maria Nobre Franco.

Soube-se que a Maria ia aposentar-se. Mas não acreditem. Alguém que vive com a Arte uma art de vivre, cujos sinais também deixou cá por Sintra, alguém que passou a vida a reformar coisas que precisavam de reforma, não vai nada para a reforma, ainda que, teimosamente, mas em vão, o calendário e as lindíssimas rugas o afirmem…

Créditos e palmarés

Mulher de Cultura, licenciada em Clássicas - no tempo em que uma licenciatura nas várias Filologias, imediatamente remetia para um universo de referências e abrangências culturais de nível absolutamente superior, sem a mínima comparação com o que actualmente acontece - é pessoa de muitos talentos que bem sabe gerir, desde professora, tradutora, jornalista da ORTF em Paris, onde permaneceu largos períodos, aí convivendo com conhecidos artistas e intelectuais locais e também portugueses, até ter fundado e dirigido a Galeria Valentim de Carvalho entre 1984 e 1995, etc.

Passou uma inteira década que, em Sintra, pela sua mão, afirma e confirma um percurso bem presente e prenhe de realizações que permanecerão como marca indelével da transição entre dois séculos de Arte. Falo da pintura, da escultura, também da fotografia ou dos media mistos que, na maioria dos casos, através das propostas de Maria Nobre Franco, souberam espreitar e lançar pontes, consoante as mais evidentes ou sofisticadas conotações, para abordagem de outras expressões como a literatura, a música ou o cinema.

Seria fastidioso lembrar o enorme palmarés de dezenas de exposições e de outros eventos a que o seu nome ficou ligado, alguns dos quais autênticos sucessos a nível nacional. Muito resumidamente, cumpre assinalar as periódicas e invariavelmente interessantes apresentações de diferentes componentes e novas aquisições da Colecção Berardo, com pontos do mais alto interesse na Pop Art, Arte Cinética e Op Art, no Surrealismo, no Minimal, Fotografia, Art Deco.

Na memória de quem anda convenientemente atento e, a crédito desta grande amiga de Sintra, ficarão ainda «Living Site, Specific Wall Paintigs de Michael Craig Martin», «O Vício da Liberdade, Arte e Desenhos Publicitários», «Pomar – Autobiografia», «Geração Esquecida – Erich Kahn», «Fernando Lemos e o Surrealismo», «Sedução, Cinema e Pintura» para além de outras.

Podia ser melhor…

Tive oportunidade de, nestas mesmas páginas do Jornal de Sintra, ter escrito acerca de algumas destas iniciativas, razão pela qual, naturalmente, muito bem recordo alguns factos e até curiosos episódios com elas relacionados. Não é altura para entrar em pormenores que poderão aceder através da leitura desses artigos mas, tão somente, de trazer à colação apenas dois, de emocional sinal contrário.

Lembro, por exemplo, com alguma tristeza, a circunstância de haver pouquíssimos espectadores num concerto, no vizinho Centro Cultural Olga Cadaval, promovido por altura da exposição à volta de Erich Kahn, expressionista alemão, judeu sobrevivente dos campos de concentração. Música do maior interesse que passou totalmente ignorada. Ou, noutra onda muito mais favorável, o pintor Júlio Pomar que enriqueceu o património artístico de Sintra ao pintar duas portas dos sanitários do restaurante da D. Joana…

Justo é mencionar que, no contexto do protocolo vigente, o município ofereceu muitos bilhetes de acesso às Juntas de Freguesia do concelho, facilitando a vinda de muita gente que, de outro modo, jamais teria visitado um Museu de Arte Moderna. E também as crianças e jovens que enriqueceram a sua formação e experiência, ganhando um maior interesse por expressões artísticas que Sintra cultiva naquele lugar.

Vem a propósito ainda referir que este seu período de direcção não foi isento de algumas sérias dificuldades cujos contornos soube enquadrar, com um contributo decisivo para o objectivo de encontrar as melhores soluções. Tais foram, por exemplo, os casos das obras que o edifício da Heliodoro Salgado exigia, para além do sempre melindroso problema da renegociação do protocolo entre a Câmara Municipal de Sintra e o mecenas fundador da colecção.

Não tenho a menor dúvida em afirmar que não fossem os constrangimentos decorrentes, por um lado, da sistemática falta de ou deficiente divulgação das actividades do Museu, e, por outro, a incapacidade de resposta à questão do estacionamento - factores flagrantemente negativos, permanentemente apontados na avaliação dos visitantes nacionais e estrangeiros, cuja resolução, em ambos os casos, compete à Câmara Municipal de Sintra - o saldo deste período ainda seria mais significativo. Mas, enfim, esta é a moldura geral da realidade nacional. Contra «isto», pelos vistos, nem a Maria nem o mais pintado…

Pagar dívida

Pessoa de cativante personalidade, promotora de tão multifacetadas actividades, Maria Nobre Franco é exigente com os membros das equipas que coordena. E ainda bem porque, só assim, se justifica a obra asseada que para trás fica, com a certeza de que as aprendizagens adquiridas sob sua orientação hão-de plasmar-se no futuro, já que permanecem no Museu aqueles que, durante anos, mais de perto com ela trabalharam.

Inequivocamente, repito, trata-se de uma grande amiga a quem esta terra deve uma atitude de gratidão. Na minha modesta opinião, não pode nem deve tardar. Estas homenagens públicas, perante personalidades deste calibre, ou se fazem de imediato ou não se fazem. Bem, muito bem, actuou o nosso vizinho Jorge Sampaio que, enquanto Presidente da República, a agraciou como uma das mais notáveis mulheres deste país.
Aguardemos.

PS:

Querem saber um segredo? Para além da partilha coincidente de muitas opiniões sobre Arte, a Maria e eu ainda temos uma paixão comum. É a pianista Clara Haskil, que nasceu em 1895 e não morreu em 1960, contra o que afirmam as biografias da ordem. Conforme atestam as gravações que deixou, é a mais notável intérprete de Mozart, de todos os tempos. O também imortal Mozart, reconheceu em Haskil um espiritual émulo interpretativo, quase demiurgo, permitindo-lhe o acesso à sua mais recôndita harmonia. A Maria e eu apenas o descobrimos em tempo oportuno. Mais nada.

E, a terminar, a sugestão de adquirirem uma gravação ao vivo, de um concerto de Haskil, no dia 1 de Agosto de 1957, no Festival de Salzburg. Entre outras peças, ouvirão a Sonata em Dó Maior, KV 330 de Mozart. Se, ao escutarem o Andante Cantabile, não subirem no céu, logo ficam a saber que nem são dignos de Haskil nem de Mozart. Portanto, vejam lá no que se metem…

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