[sempre de acordo com a antiga ortografia]

segunda-feira, 17 de março de 2008

Salzburg por lá, Mozart por cá

Inicio hoje um curto período que, se quiserem, podem considerar de férias. Como sabem os meus habituais leitores do Jornal de Sintra e deste blogue, por esta altura, costumo ir novamente até Salzburg, para assistir ao Festival da Páscoa. Há anos que, naquele jornal tenho feito o relato do absoluto privilégio que constitui a possibilidade de assistir àquele que, cada vez mais, se impõe como o mais sofisticado dos festivais de Salzburg. No entanto, a partir de agora, deixarei de o fazer, pelas razões que tive oportunidade de partilhar, também convosco, através das Notas Diárias (4, 5, 6 e 7 do corrente mês de Março), aqui no sintradoavesso.

Na realidade, trata-se de ocasião única, em todo o mundo, para poder assistir a três concertos sinfónicos, mais um coral-sinfónico e a uma récita de ópera, sempre com a Orquestra Filarmónica de Berlin. Em Portugal, passam-se anos e anos sem que tenhamos a sorte de ouvir este agrupamento que, na ímpar Salzburg, assenta arraiais durante dias seguidos de divina graça. O festival da Páscoa é herança do Karajan, também ele natural de Salzburg. Há quarenta e dois anos desencadeou uma iniciativa de tão alta qualidade que a fasquia nunca mais pôde baixar.

E lá vou, já há muitos anos, completamente viciado, depois de ter sido «iniciado» pelo
meu pai, um grande melómano, alguém que gozava de uma preparação musical total, diplomado em ciências musicais e habilitado com o Curso Superior de violino do Conservatório, portanto, um apreciador que também era intérprete, embora não tenha feito carreira como músico profissional ou sequer amador.

Foi ele, portanto, quem me instilou o «vício» e, tal como ele, ou ainda mais, me habituei a decidir o calendário anual, a partir das «obrigações musicais» que, invariavelmente, para além das duas estadas em Salzburg, sempre contemplam mais uma ou duas, noutras paragens também musicais e, tanto quanto possível, evitando as grandes pragas do turismo de massas. Este ano, por exemplo, ainda sairei para uma Tetralogia e Mestres Cantores em Bayreuth, o outro santuário de habituais peregrinações. Enfim, uma canseira...

Mas, durante a minha ausência, não pensem que ficam sem trabalho. Já hoje e, até ao meu regresso, na próxima semana, vos deixo com textos sobre o enterro de Mozart que, tendo sido publicados no Jornal de Sintra por altura do aniversário da morte do compositor (5 de Dezembro) me têm sido solicitados, para acesso através do blogue, uma vez que ainda não tenho a funcionar aquilo que já foi prometido como um sítio na internet só para assuntos musicais.

Portanto, não estranhem as referências a particularidades que têm a sua justificação enquanto parte de um texto que foi pensado para publicação no jornal.

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O enterro de Mozart (1)

A ideia de que Mozart morreu na miséria, totalmente desamparado, de tal modo que ninguém acompanhou os seus restos mortais até à vala comum dos indigentes, no cemitério central de Viena, não corresponde, de modo algum, à veracidade dos factos, como terão oportunidade de concluir se acompanharem os artigos que hoje iniciamos.

Porém, a gravura que, aí à vossa frente, ilustra estas palavras, da autoria de Pierre Roch de Vigneron (1789-1872), fez um caminho de tal modo persuasivo, acomodando-se ao imaginário de sucessivas gerações que, praticamente, só os estudiosos sabem qual o valor a atribuir à imagem.

Isto é tanto assim que, ainda muito recentemente, um conhecido divulgador musical, que dispõe de considerável tempo de antena, tanto na RDP 2 como na 1, ao referir-se ao enterro do compositor, repetia a lenda colada a esta cena - como se lenda não fosse e correspondesse à verdade - cena que, repito, nada tem de real ou verdadeiro.

Não há a certeza absoluta de que o enterro de Mozart, falecido a 5 de Dezembro de 1791, tenha acontecido no dia seguinte ou dois dias depois da data da morte. Seja como for, a publicação deste artigo, hoje dia 6 de Dezembro, para além do principal objectivo de que darei conta um pouco mais à frente, também pretende comemorar a efeméride.

Durante o ano jubilar de 2006, por ocasião do ducentésimo quinquagésimo aniversário do nascimento de W. A. Mozart, tive oportunidade de aqui publicar oito artigos, através dos quais procurei divulgar uma série de ideias que poderão contribuir para a imprescindível desconstrução de fantasias que se colaram à memória do compositor.

Começaria por confirmar que tão modesto é o alcance do meu labor à volta de Mozart, que muito satisfeito me consideraria se, em resultado desses escritos, entre as muitas novidades de que fui portador, alguns dos meus leitores puderam encontrar suporte, por exemplo, para deixarem de considerar Mozart-menino, como o prodígio explorado por um tirano pai que só pensava obter chorudos proventos dos filhos maravilha; ou passaram a melhor entender a relação de Mozart com o dinheiro, ele que não era, nunca foi nem morreu miserável; que aprenderam as suas maleitas, o seu carácter, a sua paranóia; ou que concluíram como nem Salieri nem a Maçonaria tiveram algo a ver com a sua morte.

Efectivamente, na História da Cultura Ocidental do século dezoito, dificilmente encontraremos outro grande criador de Arte cuja biografia tenha sido mais deturpada. Durante o Romantismo, falseou-se muita coisa acerca da vida deste Amadé (como gostava de se assinar), Amadeus, forma latinizada de Gottlieb/Theophylus e, entre o muito que se inventou, abundam os artefactos.

O veneno de Salieri

Só em relação às lendas sobre a morte, poderíamos considerar uma ilustríssima genealogia. Primeiramente, foi o próprio António Salieri (1750-1825), aparente rival e grande admirador do génio de Salzburg que, muito transtornado, totalmente senil, nos seus setenta e quatro anos, se declarou culpado pelo assassinato de Mozart. Nesse ano de 1824, entre 21 e 25 de Janeiro, o surdo Beethoven que, praticamente, só comunicava com os amigos através de um bloco de notas, escrevia: “(…) O Salieri está muito mal. Anda transtornado e a insistir que é culpado da morte do Mozart e que lhe deu veneno (…)”.

Baseado nas absurdas confissões de Salieri, que rapidamente se propagaram por toda a Viena e dali para além fronteiras, Puchkine (1799-1837) escreve um drama que Nicolai Rimski-Korsakov (1844-1908) aproveitará como argumento da sua ópera Mozart e Salieri (1898). Daí foi um passo, até à peça de teatro Amadeus do dramaturgo Peter Schäffer que, tomada como argumento, o realizador Milos Forman imortalizou no filme homónimo (Vd. Mistérios da morte de Mozart, JS, 24.04.03)

(continua)

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