[sempre de acordo com a antiga ortografia]

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Maria Gabriela Llansol, voz contundente


“(…) E percebi também melhor o sentido daquela frase de Spinosa sobre a qual tantas vezes tinha reflectido, e que a lição de Deleuze me ensinara a entender, mas não a viver em experiência: «Sentimos e experimentamos que somos eternos» (…)”

João Barrento*




Em nome de uma luta, que também foi ganha com a sua voz, trago hoje a lembrança de Maria Gabriela Llansol. Sete anos passados sobre o desafio que lançou, está em sossego a Volta do Duche. Foi necessário e certeiro o seu grito. Veio à rua, ao terreiro do paço da vila, veio pela mão de palavras, desenhando a vontade de não deixar acontecer a barbárie. Fê-lo, como só os poetas sabem.

O texto que vão (re)ler, foi publicado no dia oito de Dezembro de dois mil e um, pelo Público. Antes de o enviar ao jornal, a Maria Gabriela quis ter a gentileza de mo ler. Para mim, o inesperado, duplo e comovido privilégio das palavras escritas, ditas na voz empenhada da primeira pessoa-autora.

Sem mais demora, com a devida vénia àquele diário, eis a transcrição total, de um artigo de opinião de quem, há poucos dias, nos precedeu na viagem grande. Concordarão, estou certo, que tratando-se de um dos mais veementes testemunhos em defesa de Sintra, consegue ultrapassar tal dimensão, para funcionar como labéu contra todos quantos se permitem ofender a dignidade, a memória e o espírito dos lugares.




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(Prof. Doutor João Barrento, conhecido filólogo, germanista, tradutor, grande amigo da falecida escritora, 07.03.08, http://espacollansol.blogspot.com)



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Não haverá diálogo entre mortos

(A propósito do projecto de “parking” subterrâneo
na Volta do Duche de Sintra)

Começo pelos factos. Domingo à tarde fui ao encontro de informação organizado, no terreiro do Palácio de Sintra, por algumas associações ambientalistas. Estávamos umas 200 pessoas. Foi então que percebi o que o executivo camarário planeava, com o acordo do programa Polis II, para a Volta do Duche. Isto: construir, exactamente por baixo da estrada que serpenteia a colina, um parque de estacionamento subterrâneo. Vista do palácio a ideia é simplesmente aberrante. Que espécie de humanos foi capaz de sequer imaginar uma coisa daquelas? Foi-me então explicado que o projecto iria criar uns 300 lugares de estacionamento, iria custar (para começar!) mais de um milhão de contos, poria em risco as árvores que sobrevivessem, além das que seriam abatidas. Ouvi ler extractos de um relatório do Instituto Português do Património Arquitectónico emitindo críticas severas ao projecto. Ouvi dizer que não fora feito nenhum estudo geológico, nem de impacto ambiental. Ouvi dizer que não fora organizada nenhuma consulta pública. Ouvi dizer que os lugares de estacionamento, além de caríssimos, ainda seriam menos dos que actualmente existentes.

Ouvi dizer. Ouvi dizer. Projecto inútil, faraónico, destruidor. Praticamente infantil. Na realidade, a informação era escassa. Fora obtida à revelia da edilidade instituída. Que esta se recusava a colocar à disposição da população os elementos necessários a uma aprovação (ou desaprovação) informada. Não ouvi nenhum “slogan”. Nenhum partido político foi aplaudido, nem, aliás, apupado. Apenas foi pedido aos presentes (e ausentes) que assinassem um abaixo-assinado a exigir uma discussão pública sobre a questão. O que assinei.

Saí dali com o sentimento de que, na minha “cidade”, onde se desenrolam tantos dos meus livros, eleitos, estranhamente afastados do vivo e do belo, decidiam e devastavam. De que era prudentemente fundada a desconfiança generalizada pelos políticos. De que estes eram um perigo. Que não deixavam sangue nas ruas, mas ferida mortais nos lugares, nas paisagens, nas sensibilidades, na simples e antiquíssima boa-fé. Que interpretavam o voto que lhes fora transitoriamente concedido como um direito a desprezar a inteligência e a estima dos seus concidadãos.

Não vou discutir com ninguém o que não pode ser objecto de discussão. Não vou aceitar a morte de árvores, em troco da precária sobrevivência de outras. Não aceito que se anule uma paisagem que não fez mal a ninguém, excepto o dom quotidiano que nos faz de uma beleza de que os paisagistas (assim chamados!) perderam o segredo. Não quero ouvir dizer que o homem pode destruir o que os outros edificaram, sobretudo quando os que assim falam são mentes sem lampejo. Não aceito promessas a troco de atentados irrecuperáveis. Discutir isso seria discutir entre mortos. Repito: só os mortos poderão ter imaginado que as suas ambições desvairadas não teriam consequências.

Quando me sentar na Volta do Duche, como tantas vezes faço, que vou dizer às árvores, aos arbustos, aos pássaros, às estações, à vida?
Que vos vou dizer? Que não tive forças para respeitar um simples pacto de bondade? Que, mais uma vez, a minha espécie planificou friamente o desastre? Que, juntos, somos mais frágeis do que um punhado de edis, de paisagistas, de construtores civis, sem alma para sentir a santidade da paisagem?

E, desta vez, não me serve de consolo constatar o que sempre soube: onde os interesses materiais vingarem como fim, o homem não será. É aterrador pensar, mas é a realidade: sem o dom poético, sem a simples capacidade de sermos maravilhados pelo vivo, a liberdade de consciência está condenada a definhar. Por mim e por vós, foi essa liberdade que fui defender no terreiro do Palácio de Sintra.

Maria Gabriela Llansol



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PS:

Considero conveniente recordar em que enquadramento surgiu o texto supra, que terá constituído a machadada final e decisiva no propósito da recandidatura de Edite Estrela à presidência da Câmara Municipal de Sintra. As eleições locais realizaram-se uma semana depois da publicação do artigo de opinião de Maria Gabriela Llansol que teve um impacto enorme.

Como sabem, MGL é um dos mais notáveis nomes das Letras portuguesas, não só dos nossos dias mas também, ouso dizê-lo – e estou muito bem acompanhado, por exemplo, pelo Prof. Barrento – de todos os tempos. Pois, como se verifica, através de um discurso do maior alcance, com toda a acutilância, sem qualquer eufemismo, acabou a escritora por desmascarar quem se perfilava para permanecer no poder.

Por exemplo, na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, dezenas e dezenas de conhecidos académicos subscreveram o abaixo-assinado de que fala a autora do artigo que, com a sua pública tomada de posição, um verdadeiro manifesto de Cultura contra a barbárie, induziu muita gente a segui-la, num dos mais interessantes movimentos de cidadãos que Sintra conheceu.

Não é muito frequente que intelectuais da craveira de Maria Gabriela Llansol se exponham desta maneira. Subscrever um abaixo-assinado, a favor de uma causa nobre e elevada, é uma coisa. Em idênticas circunstâncias, outra coisa é subscrever um texto com esta força.

1 comentário:

Anónimo disse...

Uma bonita forma de homenagear e trazer até nós Maria Gabriela LLansol há pouco desaparecida.

Do texto que ela sabiamente intitulou:

"Não Haverá Diálogo Entre Mortos", retive:

"...sem o dom poético, sem a simples capacidade de sermos maravilhados pelo vivo, a liberdade de consciência está condenada a definhar."
ereis