[sempre de acordo com a antiga ortografia]

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Sokolov em Sintra

(continuação)


Primeira parte

Vai sendo tempo de atacar o recital. Duas partes bem marcadas e distintas, eminentemente clássica a primeira, com duas sonatas de Mozart, de profundo romantismo a segunda, com uma emblemática peça de Chopin. São dois mundos distintos, dois expoentes máximos da grande Música, separados por meio século de acontecimentos da maior importância que a Arte filtrou em artefactos paradigmáticos, a exemplo das obras cuja interpretação tivemos oportunidade de assistir. Mínimo é o detalhe que se segue, apenas o indispensável para dar conta do desafio que se colocava e como Sokolov o resolveu.

Momento 1. A abrir, datada de Munique, princípios de 1775, a Sonata em Fa Maior, KV. 280, tem uma interessante particularidade, bem reveladora, aos dezanove anos de idade, da imaginação criadora e genial maturidade do jovem compositor. Na exposição de abertura, Mozart evita ao máximo decidir-se pela dominante, com um primeiro tema ao longo de treze compassos e nada menos que trinta e um na transição...

O primeiro andamento, Allegro assai, muito brilhante, não deixa de dar sinais de que seguirá um Adagio, repassado de exacerbada nostalgia que os observadores muito apressados não conseguem distinguir, presos que estão à estafada e desconchavada ideia de que este é um compositor bon vivant, avesso aos mais escuros ou mesmo depressivos estados de alma. Finalmente, o ritmo rápido, um Presto cuja interpretação, em minha opinião, terá constituído o momento menos conseguido do recital por não ter evidenciado, tanto como era suposto, a inequívoca dialética dos dois temas em presença. O que tivemos, naqueles pouco mais de dois minutos, foi uma certa irresolução da tensão presente no lento andamento anterior. Só episodicamente terá aflorado a graça que se espera, a Spielfreude.

Agora, um parêntesis. O facto de o artista ter chegado ao fim da execução de uma peça não significa que logo deva aplaudir-se. Quando, como era o caso, o programa continuava com uma outra obra, do mesmo género e do mesmo compositor, suposto era que o público se reservasse. Em Sintra, uma boa parte do público, pouco habituada a estas particularidades, só terá compreendido qual seria a correcta atitude, ao perceber que o pianista continuava sentado, apenas se tendo erguido por deferência. Fecho o parêntesis, deixando para próxima oportunidade aquilo que considero serem interessantes observações sobre o comportamento do público nos auditórios.

Momento 2. Continuando. Em 1781, aos vinte e cinco anos de idade, Mozart abandona Salzburg estabelecendo-se em Viena, para viver o período de grande maturidade que, precisamente, coincide com a última década da sua vida tão breve. Ora bem, a segunda peça do programa da noite, Sonata em Fa Maior KV. 332, que terá sido composta nos primeiros anos na capital do Império, entre 1781 e 1783, apresenta um movimento inicial, Allegro, inequivocamente lírico, servido por melodia cheia de graça, num ritmo de 3/4, seguido de um segundo tema em Do Maior, ingénuo, apaziguando o ambiente precedente. O desenvolvimento acontece, com imensa doçura, reintroduzindo o mesmo segundo tema e, depois de construir a inevitável tensão, logo nos chega a melodia inicial para restabelecer a calma e quietude.

O Adagio é pacífico, mesmo terno, definindo um ambiente desanuviado, que acaba por desaguar no estuário final de um Allegro assai, solicitando ao pianista toda a capacidade virtuosística, tanto ao nível técnico como de subtileza e sofisticação. E assim terminava a componente clássica do recital. De toda esta muito sucinta descrição, e exceptuando aquela impressão sobre o tal pequeno episódio no último andamento da primeira peça, não houve qualquer nuance que Sokolov tivesse falhado. Pelo contrário, a interpretação revelou-se um perfeito paradigma.
Segunda parte.

Na obra de Chopin, os 24 Prelúdios, op. 28 revelam-se como um microcosmo da sua produção passada e futura. Camille Pleyel talvez tenha sido o mecenas que patrocinou a edição da obra em 1839, ele que é o seu dedicatário. Atentemos na opinião de dois compositores contemporâneos. R. Schumann afirma que "(...) são esboços, começos de estudos ou, se se quiser, ruínas, asas de águia soltas, de todas as cores, selvaticamente dispostas (...) e neles reconhecemos Chopin, até nos silêncios, pela sua respiração ofegante " enquanto que F. Liszt os considera "(...) composições duma natureza absolutamente à parte. Não são apenas, como o título poderia fazer pensar, trechos destinados a serem tocados à laia de introdução de outros trechos, análogos aos de um grande poeta contemporâneo [Lamartine], que embalam a alma em sonhos dourados e a elevam até às regiões ideais. Amiráveis pela sua diversidade, pelo trabalho e pelo saber que revelam, só podem ser apreciados após uma análise escrupulosa. Tudo neles parece ter sido feito à primeira, num arrebatamento, num impulso. Têm o estilo livre e grande que caracteriza as obras de génio."


(continua)

5 comentários:

Sintra do avesso disse...

Meu caro Heitor Pontes,

Inadvertidamente, suprimi a mensagem original que hoje já havia publicado e com ela foi a minha resposta ao seu comentário à primeira parte deste artigo.

Como não sei se já teria lido o que lhe tinha remetido, passo a repetir, ainda que, como poderá calcular, não ipsis verbis.

Em relação aos bilhetes, não posso deixar de concordar consigo. É curioso que também eu tinha uma história para contar em relação aos quatro bilhetes que oportunamente comprei para este recital, bilhetes que pretendi trocar mas sem êxito.

Como sabe frequento festivais por esse mundo fora que, enfim, ficam a grande distância de Sintra... Nalguns deles, onde já sou conhecido, mesmo no próprio dia do evento, mesmo antes do espectáculo, me tem sido possível trocar de lugar. Em Sintra tal não é possível... Deve ter uma bilheteria muito sofisticada ou, então, apenas «sustificada»... Falta de profissionalismo, perguntava o meu amigo. Sei lá. Olhe o que não tem remédio, remediado está. E fico-me por aqui porque não vale a pena maçar-se uma pessoa com tal coisa. A gente, por vezes, tem a veleidade de pensar que um festival caseiro, como este de Sintra, tem estruturas minimamente semelhantes às dos festivais de nomeada. Ora bem, a verdade é que não tem. Bem melhor, digo-lhe, o que acontece com o Festival do Estoril ou Póvoa de Varzim onde, para além de tudo o mais, a programação para além de equilibrada, tem excelente nível. Fique com atenção à última parte do meu artigo em que aconselharei alguns dos eventos desses dois festivais.

De qualquer modo, na passada 6ª feira, o recital do Sokolov foi excelente. Em tempo de vacas magras, Sintra lá se safou apresentando esta estrela de primeira grandeza.

Com respeito ao computador, a avaria foi remediada. Tenho uma péssima relação com esta ferramenta que deslumbra os pacóvios como o nosso PM... Teve o condão de me alterar a rotina durante uma semana mas nada que me tivesse tirado o sono...

Para o mês que vem, passarei a segunda quinzena em Bayreuth. Lá vou assistir a mais uma tetralogia e a uma récita da nova produção dos Mestres Cantores. Ainda está a tempo de pedir alguma bibliografia que lhe falte. Não me custa nada ser-vos agradável, a si e à Maria Adelaide.

Um beijo para ela e um abraço do

João cachado

Sintra do avesso disse...

Caro Heitor,
Ainda a tempo,

O autor de «Le Voyage artistique à Bayreuth», é Albert Lavignac. Aquele prefácio fabuloso, subordinado ao título "Bayreuth ne sera jamais un lieu commun", de Pierre Combescot, que o meu amigo tão justamente recorda, é algo tão imperdível como a própria obra de Lavignac. De todos os meus conhecidos wagnerianos, nacionais e estrangeiros, não há um só que, em determinada altura do ´percurso´ se não tenha rendido ao especial efeito deste livro. Já sabe, a 1ª ed. de 1900, que o meu avô me ofereceu, essa não sai daqui de casa. Mas posso pedir à minha mulher que vai agora a St. Malo e a Paris que tente encontrar uma edição o mais antiga possível. Portanto, não se atrse já que a Ana sai já no dia 19, próximo sábado.

Mais um abraço do

João Cachado

Anónimo disse...

Em primeiro lugar, gostaria de lhe endereçar os parabéns pelo seu blogue que só hoje descobri. Voltarei, certamente, mais vezes.

Em segundo lugar, gostaria de deixar aqui uma pequena correcção a este seu post, se me permite: Camille Pleyel é, sem dúvida, a pessoa a quem Chopin dedicou os seus Prelúdios Op.28 (A son ami Camille Pleyel). Mas é um "ele" e não uma "ela". Portanto, palavras e expressões como "a mecenas", "ela" e "dedicatária" estarão com o género errado.

Sintra do avesso disse...

Pianoman,

Muito grato pelas suas palavras. E, naturalmente, também por ter corrigido o meu lamentável erro.

Peço-lhe o favor de acreditar que eu próprio já me tinha apercebido da falta. Entretanto, por uma ou outra razão, ainda não tinha procedido à indispensável correcção.

Apareça sempre que lhe convier e aprouver. Tenho a certeza de que será sempre um prazer.

As melhores saudações do

João Cachado

Sintra do avesso disse...

Pianoman,

Gostaria de lhe axplicar a que ficou a dever-se o erro por si detectado. E faço-o porque é uma «estória» engraçada.

Embora o post tenha sido publicado na data indicada, a verdade é que o escrevi uns dias antes. Mas fiz manuscito uma vez que uma distenção no braço esquerdo me impedia de trabalhar directamente no teclado. Entreguei o papel para ser passado por uma pessoa que, por acaso, sabe o mínimo de francês e muito pouco de História da Música, ingredientes cujas doses bastaram para ter considerado que eu me enganara. Aqueles dois ll de Camille, foram fatais... Resolveu «ememdar» e passou para o feminino tudo o que, na realidade, estava bem. Só uns dias depois dei pelo erro e, tal como ontem afirmei, por uma ou outra razão, adiei a emenda que deveria ser feita. Pior foi o caso do Jornal de Sintra onde o mesmo texto foi publicado com aquela falha.

Senti-me na obrigação de, consigo, entrar neste pormenor porque, ao fim e ao cabo, teve a gentileza de apontar não uma falta de conhecimento da minha parte mas, isso sim, uma falha de controlo de qualidade do produto acabado... Não há dúvida que foi excesso de confiança.

Bem, só lhe digo que a tal minha ajudante está envergonhadíssima pelo embaraço que me causou embora, coitada, com a melhor das intenções. Na realidade, se me tivesse avisado acerca da «correcção» que havia feito, tudo se teria evitado.

Espero que, pelo menos, tenha enriquecido o seu rol de episódios insignificantes, laterais, mas interessantes e ingénuas «estórias» de música.

As melhores saudaçóes do

João Cachado