[sempre de acordo com a antiga ortografia]

quarta-feira, 17 de setembro de 2008



O Imperador da Atlântida

De vez em quando e sempre que, em determinados lugares, a conjuntura foi propícia, o Homem deixou-se enredar no novelo de contradições que teceu para evidenciar aquilo que de pior o seu génio é capaz. Ainda hoje, apesar de tanto tempo já passado, depois de tantos estudos, artigos e ensaios publicados, continua a causar a maior perplexidade o que, apenas há umas décadas, aconteceu em pleno centro civilizado e sofisticado deste velho continente.

Entretanto – valha-nos isso – a verdade é que, após todo o horror que a besta humana concebeu, montou e produziu, se gerou um tal incómodo e de tal modo incomensurável que tem constituído o lastro bastante para um permanente alerta contra quaisquer sinais susceptíveis de suscitar movimentos de empatia, e até de simpatia, por monstruosidades tão penosas e radicais.

Tudo isto a propósito de, finalmente, já em pleno século vinte e um, ter subido ao palco a primeira produção portuguesa da ópera Der Kaiser von Atlantis oder die Tod Verweigerung (O Imperador da Atlântida ou a abdicação da Morte) de Viktor Ullmann (1898-1944), no Convento dos Capuchos, perto da Costa da Caparica. Assisti, no passado dia 13, a uma das duas récitas programadas, não tendo a menor dúvida em afirmar ter-se tratado de um evento cultural da maior relevância.

O holocausto, lembram-se?

Para que tenhamos parâmetros correctos de acesso ao que aconteceu no passado sábado, naquele poético ermo da outra banda, convém não esquecer, mesmo considerando a Arte em geral, que dificilmente se encontra obra tão marcada pelas vicissitudes subsequentes à implantação do nacional-socialismo germânico e, em particular, da execrável expressão e dimensão da sua vertente anti-semítica.

Certamente, já terão lido ou ouvido falar sobre o campo de concentração de Theresienstadt (actual Terezin, a Norte da República Checa) que os nazis conceberam, com o intuito de mostrar ao mundo como, afinal, podia ser razoavelmente agradável a vida de quem estava confinado num tal lugar, onde até as artes se cultivavam… O comando SS chegou ao ponto de produzir um filme intitulado Der Führer schenkt den Juden eine Stadt (O Führer oferece uma cidade aos Judeus) em que os prisioneiros foram obrigados a participar, utilizando cenários com fachadas de prédios, com lojas, cafés e bancos em tromp-l’oeil, tendo mesmo construído um teatro ao ar livre.

Der Kaiser von Atlantis é uma obra concebida em Theresienstadt, para ali ser representada, cuja música e libretto se devem, respectivamente, ao compositor Viktor Ullmann e ao artista plástico Peter Kien, ambos ali internados. No entanto, jamais seria levada à cena durante aquele negro período porque, em Outubro de 1944, por ocasião dos ensaios, o comando local cancelou o projecto em virtude do tema, inequivocamente anti-hitleriano. Os autores tiveram o destino que seria de esperar. Imediatamente transferidos para Auschwitz, lá morreram nas câmaras de gaz.

Com cerca de uma hora de duração, a ópera está estruturada em quatro cenas, prelúdio e dois intermezzi dansados. A distribuição instrumental compreende um quinteto de cordas, flauta, oboé, clarinete, saxofone alto, trompete, percussão, banjo tenor e teclado (cravo, piano, harmónio), exigindo um total de treze intérpretes, uma formação de câmara, naturalmente, também de acordo com as disponibilidades de origem.

Em relação aos autores, lembremos Pieter Kien que era, fundamentalmente, arquitecto e pintor, bastante mais jovem que o compositor. Tendo sido aluno de Schönberg, a partitura de Ullmann denuncia muito mais a influência de Stravinski ou de Kurt Weil e, também facilmente detectável, a de Mahler, nos citados intermezzi, na ária do Arlequim, no início da obra, na cena de Arlequim e do Tambor e, por fim, na ária da Morte.

Independentemente das contingências que enquadraram a sua composição, dotada de uma hábil mistura de estilos e de um infalível sentido dramático, Der Kaiser von Atlantis é obra absolutamente notável e, como se verificou com a plateia dos Capuchos, capaz de produzir um extraordinário efeito no público espectador que, mesmo conhecedor prévio das suas linhas de força, não deixa de levar um autêntico murro no estômago.


(continua)

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