[sempre de acordo com a antiga ortografia]

sábado, 7 de fevereiro de 2009



Nota:

Tomar a árvore pela Floresta, ontem publicado neste blogue, acerca do desbaste florestal em zonas afectas à Parques de Sintra Monte da Lua é o texto que, para todos os efeitos, permanece para análise e comentário dos leitores.

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Contra todos os ditadores

O sábado não costuma ser dia de publicar textos neste blogue. A excepção deve-se à circunstância de, no Centro Cultural de Belém, subir hoje à cena a ópera Der Kaiser von Atlantis, na produção do Estúdio Ópera, acerca da qual escrevi um artigo, publicado no Jornal de Sintra em 19 de Setembro de 2008 e no sintradoavesso reproduzido nos dias 17, 20 e 23 do mesmo mês, que considerei conveniente reproduzir.

Permito-me aconselhar os leitores e amigos interessados a não desperdiçarem a oportunidade de assistir a uma das récitas previstas para hoje e amanhã. Trata-se de um verdadeiro acontecimento cultural cujos contornos o inserem no quadro dos eventos subordinados ao Ciclo O Nazismo e a Cultura em curso no CCB.


Eis a transcrição integral do referido texto:


O Imperador da Atlântida

De vez em quando e sempre que, em determinados lugares, a conjuntura foi propícia, o Homem deixou-se enredar no novelo de contradições que teceu para evidenciar aquilo que de pior o seu génio é capaz. Ainda hoje, apesar de tanto tempo já passado, depois de tantos estudos, artigos e ensaios publicados, continua a causar a maior perplexidade o que, apenas há umas décadas, aconteceu em pleno centro civilizado e sofisticado deste velho continente.

Entretanto – valha-nos isso – a verdade é que, após todo o horror que a besta humana concebeu, montou e produziu, se gerou um tal incómodo e de tal modo incomensurável que tem constituído o lastro bastante para um permanente alerta contra quaisquer sinais susceptíveis de suscitar movimentos de empatia, e até de simpatia, por monstruosidades tão penosas e radicais.

Tudo isto a propósito de, finalmente, já em pleno século vinte e um, ter subido ao palco a primeira produção portuguesa da ópera Der Kaiser von Atlantis oder die Tod Verweigerung (O Imperador da Atlântida ou a abdicação da Morte) de Viktor Ullmann (1898-1944), no Convento dos Capuchos, perto da Costa da Caparica. Assisti, no passado dia 13, a uma das duas récitas programadas, não tendo a menor dúvida em afirmar ter-se tratado de um evento cultural da maior relevância.

O holocausto, lembram-se?

Para que tenhamos parâmetros correctos de acesso ao que aconteceu no passado sábado, naquele poético ermo da outra banda, convém não esquecer, mesmo considerando a Arte em geral, que dificilmente se encontra obra tão marcada pelas vicissitudes subsequentes à implantação do nacional-socialismo germânico e, em particular, da execrável expressão e dimensão da sua vertente anti-semítica.

Certamente, já terão lido ou ouvido falar sobre o campo de concentração de Theresienstadt (actual Terezin, a Norte da República Checa) que os nazis conceberam, com o intuito de mostrar ao mundo como, afinal, podia ser razoavelmente agradável a vida de quem estava confinado num tal lugar, onde até as artes se cultivavam… O comando SS chegou ao ponto de produzir um filme intitulado Der Führer schenkt den Juden eine Stadt (O Führer oferece uma cidade aos Judeus) em que os prisioneiros foram obrigados a participar, utilizando cenários com fachadas de prédios, com lojas, cafés e bancos em tromp-l’oeil, tendo mesmo construído um teatro ao ar livre.

Der Kaiser von Atlantis é uma obra concebida em Theresienstadt, para ali ser representada, cuja música e libretto se devem, respectivamente, ao compositor Viktor Ullmann e ao artista plástico Peter Kien, ambos ali internados. No entanto, jamais seria levada à cena durante aquele negro período porque, em Outubro de 1944, por ocasião dos ensaios, o comando local cancelou o projecto em virtude do tema, inequivocamente anti-hitleriano. Os autores tiveram o destino que seria de esperar. Imediatamente transferidos para Auschwitz, lá morreram nas câmaras de gaz.

Com cerca de uma hora de duração, a ópera está estruturada em quatro cenas, prelúdio e dois intermezzi dansados. A distribuição instrumental compreende um quinteto de cordas, flauta, oboé, clarinete, saxofone alto, trompete, percussão, banjo tenor e teclado (cravo, piano, harmónio), exigindo um total de treze intérpretes, uma formação de câmara, naturalmente, também de acordo com as disponibilidades de origem.

Em relação aos autores, lembremos Pieter Kien que era, fundamentalmente, arquitecto e pintor, bastante mais jovem que o compositor. Tendo sido aluno de Schönberg, a partitura de Ullmann denuncia muito mais a influência de Stravinski ou de Kurt Weil e, também facilmente detectável, a de Mahler, nos citados intermezzi, na ária do Arlequim, no início da obra, na cena de Arlequim e do tambor e, por fim, na ária da Morte.

Independentemente das contingências que enquadraram a sua composição, dotada de uma hábil mistura de estilos e de um infalível sentido dramático, Der Kaiser von Atlantis é obra absolutamente notável e, como se verificou com a plateia dos Capuchos, capaz de produzir um extraordinário efeito no público espectador que, mesmo conhecedor prévio das suas linhas de força, não deixa de levar um autêntico murro no estômago.

Os fios da teia

Desde as primeiras notas – sol, bemol, mi bemol, la – que há história para contar. Tocadas em solo de trompete, são sons arrancados à célebre sinfonia Asrael, que Josef Suk compôs imediatamente após a morte de sua mulher, filha de Anton Dvorák. A partir de então passou a ser frequentemente interpretada, por altura da morte de alguma importante personalidade checa. Nesta ópera, aquelas quatro notas constituem o tema da Morte.

Temos o Arauto-Altifalante, que anuncia o título da ópera, as personagens e o tema: desgostosa, a Morte inicia uma greve não autorizando que alguém morra. Entretanto, o Arlequim, profundamente desiludido, não pode continuar a fazer rir seja quem for e deseja morrer. A Morte recorda os bons velhos tempos em que a guerra era espectacular, coisa bem diferente das legiões auto transportadas da actualidade. Em nome do Imperador da Atlântida, o Tambor proclama a guerra universal, numa ária cuja introdução é uma paródia ao Deutschland über alles, em tom menor.

E, muito rapidamente, tudo se desenvolve com uma enorme economia de meios e em ambiente de grande contenção. Assiste-se ao desespero do Imperador perante a impossibilidade da morte de quem quer que fosse, mas continuando a conduzir as operações a partir do palácio, sempre ao telefone, cena esta antecedida pelo intermezzo em ritmo de ländler, lembrando o passado vienense do compositor.

Durante a batalha, face a face, estão um Soldado e uma Rapariga que, apesar de inimigos, não conseguindo matar-se um ao outro, acabam por se apaixonarem. Embora muito se esforce, o Tambor não motiva o Soldado para a guerra. Outro intermezzo, agora lento e fúnebre, conduz-nos ao encontro do Imperador que, ao verificar não lhe devolver o espelho a sua mas, isso sim, a imagem da própria Morte, cede à proposta desta, que estaria disposta e pronta a cumprir o que dela se esperava na condição de ser ele a primeira vítima.

À guisa de avaliação


Estava cheio o auditório ao ar livre montado no adro da capela do Convento dos Capuchos. Toda a gente percebeu que, nesta co-produção, o Ginásio Ópera não poderia ter encontrado melhor interlocutor e parceiro que a Câmara Municipal de Almada para a impecável concretização do projecto. Mais um excelente crédito para o município, cuja actividade cultural é perfeitamente exemplar, bem se destacando em relação à indigência geral.

Este evento foi concebido e acolhido no âmbito das comemorações dos 450 anos do Convento, um dos mais importantes edifícios históricos de Almada e, inequivocamente, verdadeiro ex-libris do concelho. Aliás, durante a récita, atestando quanto a iniciativa fora do interesse do município, esteve presente a Presidente do executivo autárquico, Dra. Maria Emília Neto de Sousa, cuja actuação no domínio da Educação e da Cultura, tem sido positivamente saudada por observadores de todos os quadrantes.

Na realidade, estão de parabéns. Tudo impecavelmente organizado. Havia tradução simultânea, a partir do texto original alemão, da qual se encarregou João Maria de Freitas Branco, professor, filósofo, verdadeiro polivalente, já que, para além de Presidente do Ginásio Ópera, também se responsabilizou pela encenação e concepção cénica, evidenciando momentos muito bem conseguidos, através de uma criteriosa e original selecção de imagens, muito bem articuladas com a acção, numa cabal demonstração da correcção e profundidade da sua leitura.

A direcção musical, de Jean Sebastien Bereau, revelou-se eficaz e escorreita. Quanto à interpretação, a cargo do baixo João Oliveira, no Arauto, dos barítonos Luís Rodrigues e Pedro Correia, respectivamente, no Imperador e na Morte, de Madalena Boleo, meio soprano, no Tambor, Teresa Cardoso Menezes, soprano, a Rapariga e Mário João Alves, tenor, assegurando as personagens do Arlequim e do Soldado, esteve perfeitamente à altura das características e exigências da obra. E de sinal positivo também a intervenção do corpo de baile da Associação Gestos.

Por fim, realizou-se um colóquio orientado pela última detentora do Prémio Pessoa, Irene Pimentel e, igualmente, por João Maria de Freitas Branco onde houve oportunidade de expressar quanto a específica temática do holocausto continua presente, forte e sempre dinamizadora, não só de participação cívica, mas também em todos os domínios afectos ao debate académico, científico e artístico.

Sintra, a propósito

Então e Sintra? O que tem Sintra a dizer acerca disto? Sintra até nem teria de ficar envergonhada perante este autêntico florilégio de sucesso cultural de Almada. Quem não tiver memória curta recordará que, no Verão de 2005, por ocasião da inauguração da exposição do espólio do pintor judeu alemão Erich Kahn, a Dra Maria Nobre Franco, então directora do Museu de Arte Moderna de Sintra-Colecção Berardo, promoveu um recital de peças musicais da autoria de compositores perseguidos pelo nazismo alemão, por exemplo, Gideon Klein, Ullmann, Schulhoff, cuja obra foi considerada degenerada.

Pois é. A Dra Maria Nobre Franco, como sabem, é uma grande senhora a quem a Cultura em Portugal muito deve, sabe do seu métier, enfim, não é uma qualquer anónima pendurada no cartãozinho, como esses que, aí pelo burgo, vão ocupando os lugares de direcção das casas de Cultura, que deviam dar competentes sinais mas não cumprem capazmente as suas obrigações de produtoras de artefactos. Todavia, tendo feito o que considerou estar ao seu alcance, não conseguiu que, na altura, a Câmara Municipal de Sintra, institucional parceira no referido museu, promovesse o recital através dos meios habituais. E, assim sendo, estavam aí umas trinta pessoas ocupando o grande auditório do Centro Cultural Olga Cadaval. Cuja lotação é de cerca de mil lugares…

Ao contrário da Câmara Municipal de Almada, empenhada na coisa cultural – não perdendo oportunidade, como esta com o Ginásio Ópera, transformando um acontecimento cultural concelhio num caso que teve ecos nacionais – Sintra está bastante doente e não revela melhoras. Querem outro exemplo? Disseram-me que, na tarde do passado domingo, lamentavelmente, a récita da ópera Bastien e Bastienne, de W.A. Mozart, esteve longe de esgotar os pouco mais de duzentos e cinquenta lugares do pequeno auditório. Elucidativo? Bem, para além de lamentável, consegue ser deprimente…

Tenho a impressão que seria caso para propor aos responsáveis, a promoção de um protocolo envolvendo a possibilidade de estágios do pessoal sintrense nos serviços culturais da Câmara Municipal de Almada…


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Amigos,

Vão até Belém. Perder a oportunidade de assistir a este espectáculo é um luxo que ninguém deveria permitir-se. Portanto, só posso desejar-vos boa récita.


PS:

Como este é um fim de semana em que, decididamente, abri a porta à excepção, de igual modo vos aconselharia que amanhã não perdessem a leitura de um artigo da autoria de Fernando Castelo, sobre a problemática da biomassa, publicado pelo JS em 15.06.07.


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