[sempre de acordo com a antiga ortografia]

segunda-feira, 15 de junho de 2009


Festival de Sintra 2009,
Vengerov maestro, um equívoco

Terminou, há poucos dias, a temporada de música da Fundação Calouste Gulbenkian 2008/2009 que, entre Outubro e Junho, proporcionou cerca de oitenta concertos e recitais, entre os quais trinta com a orquestra da casa. Assinante que sou de todos os ciclos – orquestra e coro, canto, piano, música de câmara, música antiga, grandes orquestras, etc – assisti a todos os espectáculos, exceptuando um ou outro caso, devido a ausência em festivais no estrangeiro. Portanto, não tenho qualquer deficit de frequência, relativamente à Orquestra Gulbenkian que me levasse a procurar o concerto do Festival de Sintra, no passado dia 7.

Aliás, gostaria de começar por referir que, em Portugal, não há mesmo orquestra que eu melhor conheça do que a da Fundação Gulbenkian. Se, de facto, em criança, no meu caso pessoal, era a da Emissora Nacional que levava a palma, o panorama mudou quando, teria eu os meus quatorze anos, portanto, no início dos anos sessenta, nasceu a outra orquestra, primeiramente, como agrupamento de câmara, para crescer e se impor nos meios musical e cultural português, já em plena década de setenta.

Bem poderei escrever que me tornei adulto ao lado desta formação musical. Passados quase cinquenta anos, ao longo de décadas de cumplicidade, vou envelhecendo com alguns dos músicos que a constituem, sendo o caso do contrabaixista Alejandro Erlich-Oliva o que tenho mais presente. As suas e as minhas barbas têm encanecido à medida que vou acompanhando o trabalho de uma orquestra que produz imenso e, invariavelmente, com enorme qualidade.

Tenho a felicidade e o privilégio de poder dizer que, entre outras, as Filarmónicas de Viena e de Berlin, logo a seguir à Gulbenkian, são as orquestras cujos concertos, ao vivo, mais vejo e ouço durante cada ano que passa. Graças a Deus, devo pertencer ao restrito grupo de melómanos que tal pode afirmar, sem margem para dúvida. Há muitos anos que estou habituado a ouvir as melhores orquestras mundiais, tendo obrigação de saber comparar e integrar a da Gulbenkian, entre as melhores da Europa.

Por agora, tudo isto para concluir que, como imaginarão, se conta por muitas as centenas de concertos a que assisti com esta excelente orquestra. E muitos, muitos os maestros, dos melhores do mundo, que vi dirigi-la. Mas, à frente da orquestra Gulbenkian, também tenho assistido a medíocres prestações de alguns bons dirigentes. Ora bem, aqui chegado, é precisamente neste contexto que me interessa introduzir o concerto em que a Gulbenkian se apresentou no CCOC no passado dia 7.

Maestro?

O evento foi anunciado com Maxim Vengerov na qualidade de maestro. Ora bem, há meses, quando soube desta curiosidade, chamemos-lhe assim, ainda pensei que o violinista dirigiria a orquestra mas como solista, solução que, aliás, não é assim tão rara como isso. Todavia, quando apareceu o programa, anunciando Otto Pereira naquela condição, logo se me colocaram algumas questões.

Maxim Vengerov, que andará pelos seus trinta e seis anos, é um violinista cuja carreira tenho acompanhado, tanto em Lisboa, na Gulbenkian, como em Sintra e no estrangeiro, inclusive assistindo a algumas das suas master classes. É um virtuoso absolutamente extraordinário, super dotado em todos os aspectos, com uma técnica inultrapassável, sensibilidade, inteireza, simpatia, empatia, carisma, tudo o que possam imaginar de positivo.

Sempre considerei e até o escrevi algures que, intérprete tão genial não precisava de, sistematicamente, cair na estafada solução de interpretar, como encore, aquilo que costumo qualificar como números de trapézio, ou seja, peças como as Czardas de Vittorio Monti, de efeito fácil e garantido, em que um artista da sua categoria não deveria incorrer. Porém, de gosto algo duvidoso, ainda que facilmente evitável, não será daí que grande mal vem ao Mundo.

Certo é que, para além da interpretação de todos os concertos do repertório, o vi e ouvi fazer coisas inesquecíveis como aquela fantástica, comovente história do touro Ferdinand, um verdadeiro achado. Vi-o, numa mesma ocasião, na Gulbenkian, partir sucessivamente, duas cordas do Stradivarius e encarar o problema com elevada dose de bonomia, como só os grandes sabem e podem fazer. E também assisti, em Salzburg, ainda no tempo em que era director artístico o maestro Cláudio Abbado, à recusa da direcção do Festival da Páscoa de lhe conceder a possibilidade de tocar qualquer extra.

Dúvidas pertinentes

Enfim, seguramente, um grande senhor do violino a nível mundial. Assim sendo, que ponderáveis razões poderiam levar a organização do Festival de Sintra a propor este fabuloso Vengerov, virtuoso do violino, como maestro, naquele particular concerto – afinal o único em que a Gulbenkian se apresenta, como tem vindo a acontecer nos últimos ano – se não era previsível, fosse qual fosse o ângulo de abordagem, que tal episódio trouxesse qualquer específica mais-valia?

Haverá alguma questão de ordem física – daquelas que, não raro e periodicamente, afectam os violinistas – de que Vengerov estivesse padecendo? Ao pretender enveredar também pela carreira de director de orquestra estaria Vengerov a beneficiar da oportunidade de tirocinar, num periférico festival de Verão, que deixou de ter eco internacional, com a previsível garantia de que qualquer eventual desaire passaria mais ou menos desapercebido?

Tudo quanto possa alvitrar não passa de conjectura, ainda que, tratando-se de quem é, seja permitido admitir até mais do que uma hipótese, na tentativa de perceber o quadro de referência em que se apresentava este curioso concerto. Agora, entrando já na apreciação do que se evidenciou, não direi que a prestação de Vengerov, como maestro, se inscreva no rol das tais medíocres prestações a que aludi uns parágrafos atrás, mas só porque, pelo menos, e por enquanto, nem de longe, ele pertence ao quadro dos tais bons maestros...

O concerto no CCOC

Em Sintra, Vengerov foi apenas uma curiosidade. Nem mais nem menos. Vá lá, com algumas reticências, a sua condução da Sinfonia no. 3 em Lá menor, op. 56 de Mendelssohn, me pareceu obedecer a uma leitura em que soube sublinhar a expressão do vigor, a força algo telúrica bem patente no quarto andamento allegro vivacíssimo, romântico até mais não poder ser, exigindo uma direcção condicente que, na realidade, aconteceu. Foi talvez o seu melhor momento.

(continua)




2 comentários:

Anónimo disse...

Caro João Cachado,
Fiquei muito espantada ao ver que Vengerov ia apresentar-se como maestro. Embora não tenha os conhecimentos do João Cachado, também não percebo esta «curiosidade» como lhe chamou. Não fui nem vou este ano a Sintra. Mas ainda ontem à noite estive no Centro Cultural da Benedita, num concerto com Ana Ester Neves e o Quarteto Contrapunctus, do Festival de Alcobaça, que já foi aqui citado. Foi um acontecimento de grande nível. Naquele festival percebe-se tudo ao passo que em Sintra não se percebe nada daquela confusão.
Um beijo,

Teresa Ferreira

Clara Rodrigues disse...

Acabo de ler a intervenção de Teresa Ferreira que conheço bem como pessoa ligada ao meio musical e tão habilitada como o Cachado a pronunciar-se sobre os problemas em debate. Concordo plenamente com o que afirma sobre o Cistermúsica. O Alexandre Delgado é óptimo como director. Já ontem R.V.N. sublinhava o mesmo.
Este texto sobre o Vengerov não terminou mas a parte em falta é previsível. Aliás, quem ouviu o Henrique Silveira e Ana Rocha no programa de sábado passado na RDP2 sabe que a opinião deles coincide quase totalmente com o João Cachado.
Na realidade as questões que este blogue está a ventilar sobre o Festival de Sintra estão a ser faladas nos sítios onde o meio musical se vai encontrando e os críticos musicais vão falando já acerca dos assuntos. Talvez assim a direcção do Festival de Sintra possa colher algumas opiniões proveitosas para o futuro.
Maria Clara Rodrigues