[sempre de acordo com a antiga ortografia]

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Oito de Setembro

Ontem, numa fila de hora e meia de espera à porta do Centro de Saúde de Sintra, foi possível confirmar, através das suas conversas, como, tão perto da capital, tantos cidadãos ainda estão impedidos do exercício pleno dos seus direitos e deveres, em função dos acentuados índices de analfabetismo - cerca de 10% da população - e de iliteracia, numa percentagem substancialmente superior.

A propósito, não deixa de ser curioso que, ontem mesmo, oito de Setembro, se celebrava o Dia Internacional da Alfabetização. Durante muitos anos, como Técnico de Educação, estive envolvido no estudo de questões afins da Educação de Base de Adultos, matéria que continua a suscitar a minha maior atenção. Não surpreende, portanto, que aproveite todas as oportunidades para, embora empiricamente, ir aferindo o que se passa no terreno.

Não colocarei a iliteracia de lado mas, por uns momentos, lembro apenas que a taxa de analfabetismo equivale à confirmação da existência de cerca de um milhão de analfabetos em Portugal, quantidade de gente absolutamente inacreditável, no fim da primeira década do século vinte e um, num país deste continente europeu onde não existe outro caso com expressão tão negativa.

E tal como, não sei quantas vezes, tenho dito e escrito, é precisamente por ainda estar condicionado por matriz tão limitativa, que o país continua a evidenciar resultados tão negativos, em domínios que só os ignorantes ou mais distraídos não conotam com esta realidade tão preocupante.

Pois é. Se, por exemplo, quisermos perceber que razões aparentemente ocultas, estão a montante do estacionamento caótico, da taxa tão significativa de acidentes rodoviários, de toda a cultura de desleixo que desgraça o viver nacional, não deixemos de procurar a razão neste domínio.

Agravando tal quadro de referência, deverá considerar-se que o milhão de cidadãos que ainda permanece nestas condições não constitui uma ilha mas, isso sim, um arquipélago de subdesenvolvimento, espantosamente disseminado no tecido social. Reparem também que cada analfabeto tem um universo próximo de mais duas/três pessoas que, de algum modo – mesmo apesar de, eventualmente, até se terem licenciado – também foram atingidas pelo fenómeno.

Por outro lado, se muitas franjas de pobreza endémica estão afectadas pelo analfabetismo e pela iliteracia, não poderá cair-se na ratoeira da fácil conclusão de que correspondem a uma geracional e flagrante falta de meios. Quem estuda estes fenómenos sabe perfeitamente que, muitos desses cidadãos, até dispõem de recursos materiais acima da média.

Aliás, muito do nacional chico espertismo nasceu em berços de analfabetismo. Basta aceder às biografias de algumas notáveis figuras da classe política e financeira para entender como, não tendo sido bem entendidas e deixando de ser orgulhosamente assumidas pelos próprios, aquelas origens passaram a constituir fonte de provincianismo, de tacanhismo bacoco e de arrivismo.


Finalmente, gostaria de lembrar que, a meio da década de oitenta do século passado, Portugal deixou de investir, como era inequivocamente necessário, nos termos do Plano Nacional de Alfabetização e de Educação de Base de Adultos - que, datado de 1979, previa a irradicação do analfabetismo no prazo de dez anos - comprometendo todo o trabalho concretizado previamente, na sequência do Vinte e Cinco de Abril.

Sabem, houve vergonha de escancarar, à devassa europeia, as entranhas de um país atrasado, impreparado mas ávido de aceder às benesses e aos subsídios que se perfilavam no horizonte. Tão caricatos foram alguns episódios que, na Direcção-Geral da Educação de Adultos do Ministério da Educação, circulavam instruções verbais no sentido de não se conceber materiais didácticos com imagens de subdesenvolvimento, tais como fotografias ou filmes em que aparecessem mulheres vestidas de negro, burros, carroças e similares...

Como, durante quase trinta anos, não foi continuado e, muito menos, terminado todo um trabalho de Educação de Base de Adultos, houve milhões de pessoas que perderam oportunidades, milhões e milhões de contos desperdiçados porque não se concretizou a mudança de mentalidades que formataram a existência e permanência do anterior regime autoritário.

Passou-se para um regime de Liberdade, impedindo os cidadãos de adquirirem as competências que os habilitariam à vida em Democracia, com especial acuidade para a intervenção cívica. Comprometeu-se todo um programa de desenvolvimento sustentado (na mudança de mentalidades) e o resultado, enfim, está à vista.

Pelos vistos, a situação convém a alguns...


1 comentário:

P.Gomes disse...

Caro colega João Cachado,

No Dia Internacional da Alfabetização encontrei o seu blogue a focar assuntos que nos preocuparam muito no Ministério da Educação nestes últimos trinta anos. Como sabe, os sucessivos governos não investiram na Ed. de Base de Adultos em geral e na alfabetização em particular e por isso ainda temos dez por cento de analfabetos, uma percentagem que só deixará de envergonhar quando esses homens e mulheres morrerem. Mas o pior é o analfabetismo funcional de que ninguém fala. Está na altura de se fazer um grande forum sobre o assunto.
Com amizade,
P.Gomes