[sempre de acordo com a antiga ortografia]

quarta-feira, 14 de outubro de 2009


Daniel Barenboim

[O texto que se segue já esteve publicado, durante umas horas, no passado dia 6 do corrente. Alguém me sugeriu dever adiar a sua presença nestas páginas para depois do período eleitoral. Tendo aceitado a sugestão, aí está a peça.]

Este ano, a temporada musical da Gulbenkian não começou da melhor forma. Muito pelo contrário, os dois primeiros eventos, cujo grande interesse orbitava a figura de Daniel Barenboim, acabaram por revelar um insucesso deveras desagradável que, a bem dizer e escrever, não constituíram surpresa para quem acompanha regularmente a vida musical e, em especial, a actividade daqueles intérpretes que, para o bem e para o mal, se guindaram ao mais alto patamar da arte que abraçaram.

No meu caso pessoal, Daniel Barenboim tem constituído, não só como pianista e maestro mas também quando assume a vertente de pensador e divulgador de matérias afins das mais variadas componentes do fenómeno musical, um referencial que me habituei a enquadrar entre os grandes nomes. Há mais quarenta anos que assim acontece, pois tanto é o tempo que me lembro de o ir acompanhando.

É alguém que, desde a juventude, está ligado a Portugal sendo bem conhecida a sua relação próxima com a Senhora Marquesa de Cadaval em cuja casa, na Quinta da Piedade, até namorou com Jacqueline Du Pré, a extraordinária e malograda violoncelista que viria a ser sua mulher.

Tantas foram as vezes que assisti a concertos sinfónicos por ele dirigidos, à frente de tão prestigiadas orquestras, como a English Chamber Orchestra, Philarmonia Orchestra de Londres, a Orquestra de Paris, de Chicago, Filarmónica de Viena, Staatskapelle Berlin, a sua West-Eastern Divan ou, ainda, a Orquestra do Festival de Bayreuth, só para lembrar alguns exemplos, que teria dificuldade em datar essas ocasiões sem recorrer a agendas ou aos programas.

Naturalmente, em Salzburg, tenho-o visto e ouvido com muita frequência, devendo-lhe momentos assombrosos de belíssimo recorte, em especial quando resolve promover obras de novos compositores. Tenho assistido a várias estreias mundiais em que Barenboim faz questão de falar, de explicar e descodificar a peça antes de iniciar a execução, verdadeiras lições de grande música.

É um homem que sabe imenso e que, além disso, tem carisma e uma invulgar capacidade de comunicação. Neste contexto, jamais esquecerei, no fim de Janeiro de 2004, durante a Mozartwoche, a sua autêntica conferência de improviso, em pleno concerto no Grosses Festspielhaus de Salzburg, apresentando uma nova obra de Isabel Mundry, Panorama ciego para piano e orquestra. Um portento.

Faço parte de uma equipa que está a produzir e a realizar um documentário sobre a Senhora Marquesa de Cadaval. Daniel Barenboim – aliás como uma série de outros grandes intérpretes do mais alto gabarito mundial, que beneficiaram do patrocínio de Dona Olga Álvares Pereira de Melo – não nos regateou a gentil participação, concedendo-nos graciosamente o seu imprescindível testemunho, numa conversa que se seguiu ao ensaio do Concerto para piano no. 2 de Liszt, que veio tocar na Gulbenkian em fins de Outubro de 2006.

Contudo, não foi a primeira nem única ocasião em que falei pessoalmente com ele. Lembro-me muito especialmente da primeira, em Luzern, por altura do Festival, no ano de 1981 – quando nem ele nem eu tínhamos quarenta anos e agora já vamos nos sessenta e tal… – no Hotel Schweizerhof, onde ambos estávamos alojados, hotel onde a organização do festival promovia matinées musicais, uma das quais, precisamente, com Barenboim ao piano.

Mais recentemente, em diferentes lugares, tenho assistido a iniciativas que o envolvem onde o cumprimento e troco impressões de circunstância no meio de tantos anónimos como eu. Portanto, o mínimo que poderei dizer é que se trata de alguém cuja carreira acompanho há muito tempo, um músico que atingiu a mais alta craveira de avaliação, um dos tais galácticos a quem só pode exigir-se o máximo e o melhor.

Ora bem, é neste ponto que as coisas se estão a complicar nos últimos tempos em que tenho assistido a alguns dos seus recitais ou concertos como pianista. Escrevo apenas do que, no ano em curso, já pude testemunhar em Salzburg e em Lisboa. No dia 1 de Fevereiro, em Salzburg, coube-lhe encerrar o ciclo de recitais da Mozartwoche com um programa em que interpretou várias peças de Mozart, desde o Andante com cinco variações em Sol Maior, para piano a quatro mãos, KV 501, desta feita, a meias com Elena Bashkirova – com quem também tocou Cinco peças para Orquestra de Schönberg, em versão para dois pianos – à Sonata em Do menor, K 457 e Fantasia em Do menor, K. 475.

Como pode verificar-se pelo simples enunciar das obras, tratava-se de um conjunto muito exigente. Em especial no que se refere à Fantasia, não se sentiu a música fluir entre dinâmicas, tempi, afectos e disposições de alma que, a um tempo, devem parecer frágeis e pungentes, ameaçadores e agressivos. Barenboim ficou aquém dessa expressividade que um executante do seu nível não pode deixar de propor, sem quaisquer equívocos. Notei-lhe até uma certa rudeza no ataque a alguns acordes, pormenor que um dos meus vizinhos à direita me dizia mais parecerem provindos de máquina de costura…

Muito mais recentemente, em Lisboa, no início da temporada da Fundação Gulbenkian, veio ao Coliseu, no passado dia 21 de Setembro, fazer os dois Concertos para piano no. 2 em Fá menor, op. 21 e no.1 em Mi menor, op.11 de Chopin. Esteve algo precipitado, com falta de subtileza e chegou a desentender-se com o Maestro Foster, aliás, algo a que eu já tinha assistido, há três anos, durante a sua interpretação do mencionado Concerto de Liszt, no Grande Auditório da Av. De Berna.

Passados dois dias foi o descalabro com um recital totalmente dedicado a Chopin, nomeadamente Fantasia em Fá menor, op. 49, Nocturno em Ré bemol maior, op. 27 no. 2, Sonata para Piano no. 2, em Si bemol menor, op. 35, Barcarola em Fá sustenido maior, op. 60, Três Valsas, Berceuse em Ré bemol maior, op. 57 e Polaca em Lá bemol maior, op. 53. Aqui fez vários erros de palmatória e, ainda mais grave, fez concessões à facilidade para ganhar o favor dos ignorantes. E não entro em pormenores.

Acho que ainda não recuperei da experiência. É que não dá para acreditar como foi penoso ouvir alguém tocar aquelas peças tão toscamente. Sou daqueles que alinham numa justificação que se prende com falta de preparação. De facto, qualquer grande pianista não pode deixar de trabalhar muitas horas por dia, entre quatro/cinco e sete! E, manifestamente, Daniel Barenboim aparece com deficit de trabalho que, como todos sabemos, aplica noutras actividades ainda que ligadas à música.

No dia seguinte a este recital da Gulbenkian, tive uma reunião com os meus amigos do tal grupo de trabalho do documentário sobre a Senhora Marquesa a quem contei a minha mágoa. Perguntava-me o grande João Pereira Bastos, um dos homens que, na primeira pessoa, tem um impressionante palmarés de vivências ligadas à música erudita, que não tinha estado no recital, se o problema não seria meu, de tanta música que tenho os ouvidos cheios. Que lhe acontece, diz ele, às tantas, ficar um pouco condicionado.

Julgo perceber e saber ao que ele se referia. No entanto, neste caso, infelizmente, o problema não era mesmo meu. Ainda vem a propósito referir que, apesar do desconchavo, noventa e nove por cento dos presentes no recital da Gulbenkian aplaudiram freneticamente, como se tivessem acabado de escutar uma interpretação paradigmática. Aquela gente não sabe ouvir, nem sabe comparar, muito menos sabe distinguir e, por isso, é incapaz de concluir. Ou seja, se comprou o bilhete, se está presente e o artista é tido como magnífico, pois aplaude-se, magnificamente…

Não, assim, não pode ser. A Arte é o melhor que o Homem faz, não há disfarce, não há máscara possível. Ou tudo se passa no Absoluto ou não é. Como respeito muito Barenboim, não posso alinhar com fancarias ordinárias que não estão à sua altura. Não deixo é de considerar que, provavelmente, melhor seria que abandonasse a actividade de pianista.

1 comentário:

Eduardo B. Alves disse...

Meu caro João,

Já estava a ver que o Barenboim nunca mais aparecia. Noutro dia ainda o vi publicado e estava quase a fazer o comentário quando o retiraste. Compreemdo que o fizesses e porque o fizeste. A propósito, gostaria de dizer-te a minha discordância da tua decisão quanto ao apoio a Ana Gomes. Eu compreendo que o teu apoio foi à senhora e a mais nada. Mas duvido que aí em Sintra entendessem assim. Vão julgar que ao votares PS nas autárquicas estavas a dar apoio ao Partido Socialista. E isso não é nada bom para uma pessoa que se reclama constantemente da independência. Entraste num ambiente cinzento e tu és homem do dia claro. Desculparás mas sou muito frontal para deixar de não escrever isto claramente de maneira que todos os leitores percebam.
Eu não tenho nada a ver com Sintra, não voto sequer em Sintra mas como somos amigos não devo omitir o que sinto. Julgo que deves ter perdido a confiança de algumas pessoas que valia a pena manter. Mas enfim, tu é que saberás. Com respeito aos resultados nem sequer me pronuncio. Não tenho nada a ver com as vossas lutas embora gostasse de saber que Sintra poderia estar melhor. Para fechar a introdução, apenas um conselho: é de aguentar porque o "careca do Benfica" «só» pode ficar mais quatro anos...

Vamos ao Barenboim. Completamente de acordo. Só posso confirmar o mau desempenho dele no Coliseu porque não consegui arranjar bilhete para a Gulbenkian. Vim a saber que acrescentaram uns lugares no próprio palco, mas já não fui a tempo. É uma pena o que está a acontecer com este homem. Tu tens muito mais elementos porque todos os anos o tens visto por cá e ou no estrangeiro. Mas mesmo quem só o veja e ouça em Lisboa se apercebe do que tu manifestaste. Há um terreno que ele já está a pisar que é o do desrespeito pelo público. Escreveste e muito bem acerca das suas concessões a recursos de facilidade para enganar tolos e ignorantes. Mas já chegou a este ponto?
É uma pena. O público é ignaro. É escusado esperar dali qualquer coisa. Mas fica sabendo que um dia destes assisti a uma transmissão do canal "Mezzo" em que ele tocou uma série de reduções a piano de grandes árias de Verdi, no Scalla, e foi assobiado. Ouvia-se bem o som do desagrado.
Tem de perceber que não pode continuar esse caminho. Mas olha que, entre nós, só tu e o Henrique Silveira é que se pronunciaram e escreveram no sentido deste óptimo texto que trouxeste ao teu blogue. Mais uma vez repito que tornes independente um blogue só sobre assuntos musicais. É uma pena que este teu texto não alcance maior difusão só pelo facto de não ser este o enquadramento adequado.

Um grande abraço e obrigado.

Eduardo B. Alves