[sempre de acordo com a antiga ortografia]

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

A pedido de várias famílias

Confiantes na minha opinião, alguns amigos e conhecidos sugeriram que publicasse umas pequenas notas de divulgação e impressões, acerca da música que vou ouvindo nos auditórios onde passo uma boa parte da minha vida. Não pretendem o tipo de crítica que, durante anos, semanalmente, produzi em centenas de páginas do Jornal de Sintra – especialmente com textos exclusivos sobre o que acontecia em Salzburg – mas apenas três ou quatro parágrafos, tão ligeiros quanto possível.

Sugerem-me, em suma, que não perca tempo com referências biográficas, nem dos compositores nem dos maestros e solistas, sem me preocupar com os curricula das orquestras e outras notas a que, hoje em dia, se pode aceder na internet. Ainda me convenceram com a ideia de que, eventualmente, os meus escritos poderão ter a vantagem de serem completamente descomprometidos em relação à clique musical da capital. Pois bem, se têm estado com atenção, até já dei início.

Muito informalmente, comecei esse tipo de trabalho que, sem qualquer intuito de sistematização, apareceu nos meus meios de comunicação, portanto, no blogue sintradoavesso e no facebook. Assim sendo, recordarão que, tão somente acerca de programação musical da Gulbenkian, a partir do fim do mês passado, já publiquei textos acerca de Die Schöpfung / A Criação, Hob.XXI:2, de Joseph Haydn (29.09.11); La finta giardiniera, K.196 de Wolfgang Mozart (02.10.11) e, ainda, acerca da Integral dos Quartetos para Cordas de Dmitri Chostakovitch, (9, 11, 12, 16 e 17.10.11).

Em tão pouco tempo, já me referi a sete (VII) eventos, i.e., recapitulando, uma Oratória de Haydn, uma ópera de Mozart e cinco concertos de música de câmara de Chostakovitch, em interpretações do mais alto gabarito. No entanto, até ao presente, já assisti a mais quatro concertos e a uma récita de ópera, sobre os quais me apresso a dar conta, para bom cumprimento da encomenda referida no primeiro parágrafo. O melhor, nestas coisas, é seguir a ordem cronológica.

Impressões Musicais [VIII]*

5ª Feira, 13 de Outubro, Orquestra Gulbenkian, Sol Gabetta, violoncelo, Lawrence Foster, maestro. Auditório a três quartos da lotação. Naquela noite, a primeira obra interpretada – que, para todos os efeitos, costuma funcionar como introdução ao concerto e para aquecimento da orquestra – foi a Valsa-fantasia, para orquestra, em Si menor de Glinka (1804-57). Trata-se de uma peça curta, originariamente escrita (1839), com referências a alguma música sacra ortodoxa, melodias de recorte orientalizante e de manifesta sensualidade. Interpretação escorreita.

Numa semana toda dedicada aos seus Quartetos para Cordas, Chostakovitch também estaria presente com o Concerto para Violoncelo e Orquestra nº 2, op. 126, estreado em Moscovo em 25 de Setembro de 1966, dedicado ao mítico violoncelista Mstislav Rostropovitch (que eu tive a felicidade de ver e ouvir interpretar este mesmo concerto, em Salzburg). Julgo que, nesta obra, o maior contributo do compositor se traduz ao nível da enorme paleta da grelha rítmica e na articulação e integração dos recursos harmónicos, em especial nos andamentos médio e final.

É um concerto que exige ao solista um empenho absolutamente sem tréguas, com imensas explosões de ânimo violento, ressonâncias à música popular de pendor cigano, referências militaristas e marciais, bem como motivos de lirismo inexcedível a que Sol Gabetta, a violoncelista argentina, correspondeu de forma comovente, numa interpretação dionisíaca, muito mais exuberante que a de Rostropovitch a que já me referi, ou à de Janos Starker a que também assisti. Aplausos muito vibrantes.

Finalmente, a Sinfonia nº 4, em Fá menor, op. 36 de Tchaikovsky. Sem me internar em detalhes de ordem biográfica, é fundamental ter em consideração que esta obra, composta entre 1877-78, coincide com um período muito sombrio da vida do compositor, durante o qual se casou com Antonina Milyukova, em 18 de Julho de 1877, dela se tendo separado apenas umas semanas depois. Foi na música, precisamente nesta sinfonia, que Tchaikovsky deixou as marcas mais profundas desse tempo.

Há um tema, o do destino, que permanece ao longo dos quatro andamentos, concretizado pelas trompas e fagotes, logo no Andante sostenuto inicial. O ambiente sempre reinante é de uma evidente melancolia introspectiva, que o compositor tenta compensar com o recurso a vislumbres de melodias da tradição popular. Porém, nunca é superado um certo reduto de autocomiseração. No meio de tudo isto, que não é pouco como caldo de enquadramento, Tchaikovsky propõe melodias avassaladoras, com fortissimi, tutti vibranti que, para qualquer orquestra, são prova de fogo.

A propósito de fogo, deixem que me refira ao andamento final, Allegro com fuoco que, por manifesta responsabilidade do Maestro, resultou numa quase amálgama do som produzido pelas percussões e metais dos registos mais graves. Àquilo que ouvi chama-se, meus caros amigos, falta de subtileza. E, sem margem para qualquer dúvida, a responsabilidade é do dirigente, que pediu aos músicos o que não devia e que, certamente, o compositor não pretendia.


*A numeração corresponde, portanto, ao oitavo evento da temporada que tenho vindo a comentar. Os textos que se seguirem obedecerão à ordem agora enunciada.

1 comentário:

Sintra do avesso disse...

Transcrição de comentários do facebook:


Luis Miguel Correia Lavrador ‎:))) Isto é serviço público, caro amigo

João Trindade Duro

A eterna paixão de ensinar. OBRIGADO

João De Oliveira Cachado

Essa do «serviço público», meu caro Luís, não deixa de ser engraçada. De facto, tenho escrito muitas páginas de 'impressões musicais' sem jamais ter sido remunerado. Nem me passa pela cabeça. Por muito satisfeito me dou, sabendo que um ou outro amigo vai ouvir uma ou outra das peças acerca das quais partilhei uma ou outra impressão. Hoje em dia, com a disponibilidade do YouTube, apenas se coloca a questão de encontrar uma leitura da(s) obra(s) pelo(s) intérprete(s) sobre quem me terei pronunciado. Até podem ter a sorte de encontrar uma gravação em que 'a coisa' tenha resultado melhor do que no momento em que assisti. Sim, porque, felizmente, a execução de uma peça musical é irrepetível.

Luis Miguel Correia Lavrador

Remunerado não será, mas bastante elogiado certamente :)

João De Oliveira Cachado

João, MQI, tu, a agradecer? Ainda por cima maiusculamente?! Ah, João, que sorte a minha por poder ter amigos como tu que também são leitores atentos. De uma paixão minha, falas tu. Não te enganas. No meu caso, a paixão pela Música coincide com a paixão de partilhar. Se, por acaso, na partilha, acontece passar um saber com que o outro vai beneficiar, então, não sei de quem será maior o privilégio. E tu sabes que escrevo estas palavras sem ponta de rectórica. Grande abraço

João Cachado