[sempre de acordo com a antiga ortografia]

sábado, 25 de maio de 2013



Gulbenkian,
Falstaff sem grandeza


Tarefa dificílima e extremamente ingrata seria a incumbência de seleccionar os três grandes momentos do teatro lírico desde Monteverdi até aos nossos dias. Claro está que, só como mero exercício académico se aceita entrar num jogo que tal. Porém, uma vez aceite, não hesitaria partilhar uma convicção de muitos anos, ou seja, em pé de igualdade, colocaria Don Giovanni de Mozart, Parsifal de Wagner e Falstaff de Verdi.

Sei que até esto
u muito bem acompanhado nesta opinião radicada há muitos anos. Também por isso, dificilmente perderia a oportunidade de assistir a qualquer récita, mesmo concertante, de alguma destas três óperas e, não raro, já tenho acorrido a determinados teatros expressamente para o efeito. Ontem, depois de muito ter hesitado, porque ainda estou longe da recuperação da fractura, lá me decidi a ir à Gulbenkian.

Ainda muito periclitante, apesar de não alimentar qualquer expectativa, lá fui. Enfim, depois de dois meses de jejum de música ao vivo, jamais escreveria que terá ocorrido alguma particular ofensa a Verdi, Boito ou Shakespeare, os três grandes «responsáveis» pelo autêntico monumento que se apresentava no palco da Fundação. Não senhor. No entanto, tudo aconteceu ao nível mediano que, de modo algum, merece uma obra de máxima referência.

Como a mediania não implica qualquer destaque, pois não o farei em relação à récita de ontem. Ou, melhor, se algum destaque tivesse de fazer, seria negativo, para uma semi-encenação que nada beneficiou a versão de concerto. E a verdade é que, à partida, o material disponível, desde os solistas, à orquestra e ao coro, até poderia ter rendido muito mais a contento. Mas o maestro Lawrence Foster «não deixou»…

Já dei a entender que, ao dirigir-me à Gulbenkian, sabia perfeitamente o que poderia esperar. Mas como sou a mesma pessoa que já assistiu a récitas perfeitamente antológicas desta ópera, não consigo impedir que a memória se interponha. Claro está que, algo longe de Mutti ou de Abbado, maestros que têm subscrito horas memoráveis de Falstaff ao longo das suas carreiras, Foster, mesmo assim, poderia ter dado atenção a particularidades da direcção desta obra pelos seus colegas.

Não vale a pena entrar no detalhe de análise dos momentos em que, por questões do tempo imposto, quase sempre mais rápido do que o adequado, o maestro comprometeu a grandeza da proposta do compositor. Mas não resisto a chamar a atenção, no segundo acto, na estalagem, para o terrível acesso de ciúme de Ford ou, no terceiro, no Parque de Windsor, quando Falstaff se vê confrontado com um impressionante exército de espíritos e de assombrações que o atormentam. São apenas dois exemplos em que, um ritmo ligeiramente mais acelerado do que o conveniente, foi o suficiente para prejudicar o efeito pretendido pelo compositor.

Esta é, de facto uma ópera que exige pinças sofisticadíssimas para nela se pegar. Aqui, de modo algum, estamos perante As Alegres Comadres de Windsor, ópera cómica que, quarenta anos antes, Otto Nicolai tinha composto em puro estilo Biedermeier, obra puramente convencional, que o toque de génio de Verdi ultrapassa de longe. Até um crítico tão verrinoso como George Bernard Shaw, que apenas acedeu ao Falstaff de Verdi através de uma redução a piano, desfez-se em elogios, escrevendo que não é mera ópera mas um autêntico «drama musical», resultante da sobreposição dos génios de Verdi, Boito e Shakespeare, aproximando-a de Wagner. Apenas lembro esta apreciação porque, ontem, com Foster a dirigir, não estive perante a radical e absoluta grandeza que se depreende das palavras de Shaw, e, muito mais, me pareceu estar no ambiente de Nicolai…

Já que aludi a Abbado, não esqueço que, no quadro do Festival da Páscoa de Salzburg, em 2001, seu penúltimo ano à frente da Berliner, dirigiu uma fa-bu-lo-sa Falstaff, na encenação eficacíssima de Declan Donellan, entre outros, com Ruggero Raimondi (que também vi noutras produções da mesma ópera) no protagonista, Lucio Gallo em Ford Massimo Giordano, Fenton, Carmela Remigio ou Dorothea Röschmann, respectivamente em Alice Ford e Nannetta. Claro que jamais esquecerei a celebérrima última cena em que, com ritmo endiabrado, saltavam dezenas de pratos sobre a mesa que se ia desdobrando a toda a largura do palco do Grosses Festspielhaus. Enfim, outro planeta…

Finalmente, porque também referi Mutti, gostaria de vos propor um excelente registo da, récita completa, com os seguintes intervenientes: Ambrogio Maestri, Falstaff; Roberto Frontali, Ford; Juan Diego Florez, Fenton; Ernesto Gavazzi, Doctor Cajus; Paolo Barbacini, Bardolfo; Luigi Roni, Pistola; Barbara Frittoli, Alice Ford; Inva Mula, Nanetta; Bernadette Manca di Nizza, Mrs Quickly; Anna Caterina Antonacci, Meg Page; Walter Valdi, taverniere. A Orquestra e os Coros do la Scala, dirigidos por Riccardo MUTI, durante o Festival Verdi, em Busseto, no dia 4 de Outubro de 2001.

Boa audição!


http://youtu.be/kFDYgvZWKtg
 
 
 

1 comentário:

Anónimo disse...

Também assisti a esta récita, sendo no entanto uma boa surpresa para mim, pois as óperas que tenho assistido no panorama nacional têm sido medíocres, no seu melhor. Concordo com a crítica à direcção de Foster, sendo esta uma ópera cómica pedia uma maior definição por parte do maestro em relação à abordagem.
Contrariamente, a seguinte récita de Otello o Maestro e tudo o resto estiveram em bom plano.
Embora não deva ser do agrado de muita gente, gostei da voz de Lester Lynch: forte, vigorosa e sem demonstrar dificuldade nos variados registos ou cansaço.
Em relação à "melhor versão", devo admitir que a minha versão favorita é a seguinte gravação da Decca (as minhas desculpas pela publicidade gratuita):
http://www.deccaclassics.com/en/cat/single?sort=newest_rec&PRODUCT_NR=4756677&SearchString=Falstaff&UNBUYABLE=1&per_page=50&flow_per_page=50&presentation=flow