[sempre de acordo com a antiga ortografia]

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014



Mozart e Salieri,
lenda e ópera


Este desenho inscreve-se na lista daqueles que, tão frequentemente, romancearam traços biográficos e alimentaram lendas que fermentam à volta de Wofgang Amadeus Mozart. Faz parte da «colecção» em que pontifi
ca aquela gravura de Pierre Roch Vigneron (1789-1872) que mostra uma carreta transportando um caixão, apenas acompanhado por um cãozito, gravura que fazia parte do espólio de Beethoven que a guardou como recordação simbólica do enterro de Mozart.

Nada mais falso, já que há descrições factuais do cortejo fúnebre, sabendo-se quem acompanhou, quem organizou (o próprio Barão Gottfried van Switten) e, mais surpreendentemente, o texto do próprio epitáfio – aliás publicado num jornal de Viena – na medida em que Mozart jamais foi sepultado em vala comum mas, isso sim, numa campa onde se manteve durante dez anos.

Neste caso, trata-se de um crayon baseado na peça de Pushkin. Pushkin ficcionou, escreveu uma peça de teatro, repito, Literatura do género dramático, através da qual parte de uma lenda, nem mais nem menos do que fomentada pelo próprio Beethoven... Na sequência de Pushkin, Rimski-Korsakov compõe a ópera homónima (1898) e, mais recentemente, o dramaturgo e guionista britânico Peter Schäffer, escreve a peça "Amadeus" que seria levada ao cinema por Milos Forman.

Nada, absolutamente nada, de concreto, documentável, existe que possa cimentar qualquer suspeita afim do que a ficção alimentou. Pelo contrário, há, isso sim, provas do maior respeito mútuo entre Salieri e Mozart.

A ópera

Permito-me duvidar que tenham tido o privilégio de ouvir qualquer gravação e, muito menos, de assistir a qualquer representação das duas cenas de “Mozart e Salieri”, pequena ópera de Acto único, cujo libreto foi quase totalmente extraído da homónima peça de Alexander Puskin.

Vem a propósito manifestar quanto, à limitada escala das minhas possibilidades, me tenho esforçado no sentido de repor a verdade histórica em relação à suposta rivalidade entre Mozart e Salieri. Aqueles que têm lido os meus textos acerca da matéria sabem que não se trata de tarefa fácil. É que, logo à partida, foi o próprio Salieri quem se encarregou de propalar a ideia de que teria sido o assassino de Mozart.

Com a caligrafia de Beethoven foram encontradas algumas notas manuscritas – não cartas, como inicialmente se chegou a supor – meros papéis dentre os muitos de que o grande surdo se servia para comunicar, em que registou aquela convicção de um senil e demente Salieri, o mesmo Salieri que fora seu brilhante professor. Estava lançada a lenda e fazia caminho galopante.

Reparem que, em 1830, apenas passados cinco anos sobre a morte de Salieri, já Puskin tinha publicado a peça referida. Nesta saga de fictícios elos, eis que aparece Rimsky-Korsakov.

Todos estiveram no seu direito de fantasiar e de ficcionar o que muito bem lhes deu na real gana. Nada nem ninguém os obrigava ao respeito pela Verdade. Embora a Arte possa coincidir com a Verdade, tal não é condição necessária. Dá que pensar, isso sim, que a geral ignorância de uma época, precisamente a nossa, tivesse acolhido, como verdadeiros, alguns passos, quer de Salieri quer de Mozart, que nada têm de biográfico e que, aliás, não era suposto que tivessem…

Voltemos à esquecidíssima ópera, hoje em dia tornada pouco mais do que mera curiosidade. Em Moscovo, na sua estreia russa, em 1898, o barítono de serviço, assumindo a personagem de Salieri, foi o mítico Fyodor Shalyapin. Histórico também é o documento cujo visionamento agora vos proponho, já que se reporta à primeira apresentação da obra em Nova Iorque no Chamber Opera Theatre, numa produção excelente que contou com Joseph Shore e Ron Gentry, dois formidáveis cantores, como terão oportunidade de verificar.

Trata de uma raridade. Vale bem a pena dedicar-lhe o melhor da vossa atenção. Rimsky-Korsakov, é um gigante que bem merece o destaque. Não hesitou ele em incorporar directas referências a "Don Giovanni" e à "Missa de Requiem" de Mozart na partitura, atitude de humildade que também não pode deixar de se assinalar.

Bom visionamento, boa audição!

http://youtu.be/QdMUBz55Ly8
 
 
 

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