[sempre de acordo com a antiga ortografia]

terça-feira, 26 de agosto de 2014




Duas histórias verdadeiras [nem por isso muito singulares]

 

I. Na terceira pessoa [do singular]

 

Separou-se da mulher poucos meses depois de o filho ter nascido. A partir dos seis anos e até a criança fazer dez ou onze, não se lembra exactamente, vi-a uma tarde por ano. Sempre por altura das férias grandes, uma tia do miúdo trazia-o até à estação dos comboios. Umas vezes, ao Rossio, para irem até Sintra, outras, ao Cais-do-Sodré, para seguirem até Cascais. Comprava-lhe um gelado, perguntava como iam as coisas na escola e pronto, não sentia qualquer curiosidade, não tinha saudades, nenhuma afinidade. Ser ou não ser seu filho, era absolutamente indiferente. Pediu que não o trouxessem mais. Deixou de o ver. Pura e simplesmente, até das feições do rapaz se foi esquecendo, daquela cara que, reconhecia-o, era muito parecida com a sua. Passaram vinte e tal anos. Noutro dia, a tal tia veio-lhe com a notícia de que já era avô de uma menina. Como era possível se, replicou, nunca fora pai.

 

II. Na primeira pessoa [do singular]

 

Meu caro, sou um homem muito duro. Num almoço de família, zanguei-me com o meu filho. Proíbi-o de voltar a pôr os pés na minha casa, proibi-o de voltar a dirigir-me qualquer palavra e disse à minha mulher que a deixava, a ela e à casa, se desse algum passo para falar com o filho  ou com as netas – foi por discordar da educação delas que cortei relações – e, lá vão dez anos, sem nunca mais ter visto semelhante gente. Veja bem como eu sou. Dei aquele passo e foi definitivo. Nos primeiros tempos custou-me um bocado mas, como tenho razão, ainda sinto mais força pela decisão. Meu caro, em questões de princípios não podemos vergar. Perante os filhos, perante seja quem for. Por isso, ando de cabeça direita em todo o lado. A mulher chora, mas, para arrumar com o assunto, só lhe pergunto se quer que me vá embora. É remédio santo para vivermos em paz e sossego.
 
 

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