[sempre de acordo com a antiga ortografia]

quinta-feira, 26 de novembro de 2015




Pintasilgo,
à frente do tempo


[publicado no facbook em 24.11.2015]

Durante a semana passada, tanto no "Jornal de Letras" como na Revista "Visão", Helder Macedo tem ocupado algum e merecido destaque. Porque sou um dos seus fiéis leitores e, só muito raramente, perderei alguma das suas intervenções, também desta vez tenho estado atento.

Uma das memórias que HM tem posto em comum é a que se refere a Maria de Lourdes Pintasilgo, Primeira Ministra de um governo que, em 1979, contou com ele como Secretário de Estado da Cultura. Ah como eu compreendo o seu entusiasmo que, no seu caso, é alimentado pelo privilégio de com ela ter trabalhado de perto.

Diferente foi o meu caso mas, de qualquer modo, estava muito próximo dela. Desde o 25 de Abril até hoje não conheci político algum que tanto me tivesse impressionado e, em 1986, aquando da sua candidatura à Presidência da República, até dei por mim atrás dela pelas ruas de Lisboa, de braço dado com a Maria do Céu Guerra, atrás do seu carisma inolvidável, como nunca mais me sucedeu.

Quando, em Julho de 2004, MLP morreu, senti imenso a sua perda e, em cima da hora, escrevi um texto que foi publicado, em 16 daquele mês e ano, no 'Jornal de Sintra'. Passo a reproduzi-lo, lembrando que estávamos em vésperas de ver Santana Lopes indigitado para o cargo de chefe do governo. Naturalmente, depois das «fugas» de António Guterrres e Durão Barroso, tal indigitação já ultrapassava a minha capacidade de encaixe...

Fica, isso sim, a memória de uma personalidade absolutamente excepcional que, senhora de uma lucidez fascinante, de facto, estava muito à frente do tempo.

__________________________________

Pintasilgo e os fariseus

Estava prestes a começar um dia de trabalho, participando numa reunião da Federação de Sindicatos da Educação a cujo Secretariado Executivo pertenço. Ia ocupar o meu lugar quando, algo de chofre, um companheiro me deu a notícia. Tinha morrido Maria de Lourdes Pintasilgo.

Por mais que, em termos meramente racionais, se imponha a inevitabilidade do fim, o que na realidade sucede é a dificuldade em aceitar, como coisa natural, que a morte me tivesse levado a amiga. O espanto, misturado com o choque, foram tão violentos que, de imediato, em sofrido amálgama, desfilaram a memória de vivências comuns e a partilha de ideais, o respeito e a admiração por quem formatava tantas das minhas referências, juntamente com a sua constante procura e o permanente encontro com a beleza, a música e a poesia no quotidiano, o franciscano desprendimento da matéria, a mais elevada noção de serviço...

E depois, subitamente, avassaladora, eis que a espiral do torvelinho me lançava na dimensão onde, apesar do encontro com os mais nobres valores, tudo bascula e resulta inevitável, irremediavelmente mais frágil, mais pobre. Assim, de repente, ainda no luto de António Sousa Franco, outro amigo do reino que não é só deste mundo, deixa-nos a Maria de Lourdes. No entanto, tão especial é o testemunho da sua vida que, pelo menos, aí nos fica o seu testamento político em altura que não podia ser mais propício à reflexão.

Não consigo, contudo, deixar de pensar em mais duas pessoas que, também como ela, reclamando-se da condição de católicos praticantes, exerceram as funções de Primeiro Ministro deste país. Como não pensar em António Guterres e Durão Barroso, esses dois grandes mestres da arte da fuga, que, com o maior despudor, no momento mais estratégico das suas pessoais e individuais motivações, ignoraram o interesse dos governados que tinham jurado defender, dando a entender que o faziam pelo superior interesse nacional ?...

Na realidade, o posicionamento cívico e político da Maria de Lourdes nada tem de coincidente com o destes dois perfeitos, completos e acabados fariseus. Foi sempre uma mulher empenhada nas causas bonitas, com invulgar investimento intelectual nos mais diversificados domínios das ciências e das humanidades, preparadíssima para enfrentar os desafios do seu tempo, ela que, invariavelmente, esteve à frente do tempo.

Num país que, entre outros desfavoráveis factores, apresenta uma pobreza endémica e estrutural, com mais de vinte por cento de pobres absolutos, neste Portugal que continua a ter a maior taxa de analfabetismo pleno e funcional de toda a União Europeia, Maria de Lourdes Pintasilgo elegeu como campos preferenciais de actuação, a promoção sociocultural das mulheres, a alfabetização, o combate contra a pobreza, a defesa da democracia participativa, a ecologia, as energias alternativas.

Enquanto católica, dela fica a memória de um permanente alinhamento com os sectores da Igreja progressista, de militante para quem a Fé era factor de maior exigência na qualidade do serviço aos outros. Pessoas como a Maria de Lourdes, o meu querido e saudoso Padre Alberto (que conheci no princípio dos anos sessenta, como professor do Liceu D. João de Castro, na paróquia de Belém e na Juventude Escolar Católica), os Padres Felicidade Alves, João Resina Rodrigues,
Elisete Alves, Gabriela Ferreira e gente mais nova, a Catalina Pestana, por exemplo, eram e são pessoas de tal estirpe e gabarito que, há mais de quarenta anos, se tinham adiantado ao próprio Concílio Vaticano II, instituindo atitudes e práticas de culto que, mesmo hoje, são consideradas revolucionárias.

Como é que, por oposição, não havia de me ocorrer o exemplo dos dois governantes que podem ter sido e virem a ser tudo o que a desmedida ambição lhes apontar sem que, jamais alcancem o estatuto de estadista que detinha Maria de Lourdes, como tal sendo considerada nos meios internacionais mais insuspeitos, juntamente e apenas com Mário Soares?

Estou certo de que os leitores habituais do Concelho Adiado compreenderão que tenha feito esta evocação da Maria de Lourdes Pintasilgo, cidadã a todos os títulos verdadeiramente excepcional, cujo último serviço à nação não foi acolhido. O conselho que o Presidente da República lhe solicitou não foi aproveitado, de nada serviu ter-se incomodado ao ponto de considerar que o país está a viver a pior crise desde o Vinte e Cinco de Abril.

Muito me pesa que a Maria de Lourdes tenha partido, necessariamente muito amargurada, apreensiva pela possibilidade de os destinos da nação serem confiados a um dos políticos menos qualificados, mais populistas, mais superficiais, o exemplo mais acabado de um hodierno conselheiro Acácio da nossa desgraçada classe política e pela mão de um padrinho que ninguém esperava que tivesse ali para os lados de Belém. Que desgosto não terá sido o seu?!

Quanto a nós, ao desgosto imenso de ter perdido uma referência vital, soma-se este de já pressentir em São Bento o poder da mais atrevida incultura, a galope na vacuidade de ideias, a ausência do sentido de Estado mascarada pelos fatos de bom corte, o charme pacóvio de um meia-tigela arvorado em chefe de governo, utilizado por astutos burgueses que dele se servirão para alcançar objectivos imediatos e prebendas.

 
 

 
 

Sem comentários: