[sempre de acordo com a antiga ortografia]

sábado, 24 de março de 2012

Nacional-socialismo musical [I] *


A partir de hoje, entramos num universo temático em que consideraremos algumas notas indispensáveis à compreensão do modo como os nacional-socialistas do III Reich encaravam a música, ao serviço dos seu...s mais evidentes propósitos, em especial, no que se refere à tão proclamada necessidade de «recuperação» de uma suposta, remota e perdida pureza de contornos desta arte.

Assim, pedir-vos-ia que me acompanhassem na abordagem de dois momentos da história daqueles alemães e turbulentos anos trinta – em primeiro lugar, as "Jornadas musicais do Reich" e, seguidamente, a exposição "Música Degenerada" – que antecederam a eclosão do conflito armado no final da década, apesar de constituírem prova acabada e evidente de um tremendo choque que minava a vida cultural do país, perversamente caído nas malhas do totalitarismo na sequência de um processo eleitoral democrático.

1.As jornadas musicais do Reich

As Jornadas musicais do Reich (Reichmusiktage) que, a partir de 1938, substituem as anteriores "Tonkünstlerfeste", da Associação musical alemã (Allgemeiner Deutsche Musikverein, ADMV), proclamam a vitória das ambições totalitárias de Goebbels no domínio da música. De acordo com a vontade do Ministro da Propaganda, era suposto que proporcionassem uma visão de conjunto sobre a vida musical do Reich nacional-socialista, funcionando como ponto de referência para a sua evolução.

Goebbels definiria os princípios desta estratégia, no grande discurso sobre política cultural, pronunciado no encerramento das Jornadas de Düsseldorf. Anteriormente, a imprensa já tinha sublinhado o grande interesse de Goebbels pela música, por exemplo, no artigo intitulado 'O Dr. Joseph Goebbels: relação com a música e seus mestres', publicado em 1934, no Boletim oficial dos músicos do Reich.

Através de tal documento se evidencia como o ministro, para além de tudo o mais, se afirmava próximo de Richard Wagner. O autor do artigo, Paul Büllow, esclarece que “(…) ele conhece Wagner de cor! (…)”, afirmando que, no seu discurso sobre Os Mestres Cantores, em Bayreuth, em 1933, Goebbels acrescentara “(…) das coisas mais sublimes (…) alguma vez ditas acerca daquela obra, a mais alemã e a mais profunda de Wagner.

No discurso de 28 de Maio de 1933 em Düsseldorf, Joseph Goebbels propunha-se, nada mais nada menos, do que definir a essência da música alemã. Reparem como ele expressa o primeiro dos designados 'Dez Princípios' da criação musical alemã: “(…) A essência da música não reside nem no programa nem na teoria, nem na experimentação, nem na estrutura. A sua essência é a melodia. É a melodia que eleva os corações e revigora as almas; o povo canta-a, porque se grava facilmente na memória e, de modo algum é de gosto inferior ou censurável. (…)”

Para Goebbels, a música depende essencialmente do sentimento; nela, o que fala é a alma (Seele), e não a razão, o entendimento (Verstand). Também o próprio Hitler se exprime, mais ou menos, em termos idênticos, no mesmo ano, durante o Congresso do partido em Nuremberga: “(…) Não é o entendimento intelectual que deverá guiar o músico mas uma irrupção do sentimento musical (…)”

A tónica colocada na esfera do sentimento constitui como que um eco da hostilidade do nacional-socialismo em relação à Aufklärung, no conceito de «esclarecimento» que coincide com o de «Iluminismo» alemão. Não se esperava que os membros da Volksgemeinschaft, ou seja, da «comunidade do povo», debatessem questões políticas, antes deviam, pura e simplesmente, confiar na ideologia nacional-socialista.

A grande música, como a de Richard Wagner e de Anton Bruckner, servia para estimular esta atitude – diria – religiosa. Para Goebbels, não restava a mínima dúvida de que a música tem uma relação directa com as questões raciais. Senão, atentemos no terceiro dos já referidos 'Princípios':“(…) Tal como as outras artes, também a música provém de forças misteriosas e profundas, enraizadas na índole nacional (Volkstum), não podendo corresponder à necessidade e ao irreprimível instinto musical de um povo, se não for concebida e administrada pelos herdeiros deste carácter popular. Opostos por natureza, o judaísmo e a música alemã estão em contradição radical. (…)”

O sentimento, aqui considerado como elemento primeiro na música, vê-se completado pela pulsão, enquanto «irreprimível instinto musical», e pela noção do natural. A vida afectiva e a natureza pulsional do homem têm, portanto, o seu fundamento na raça. Os nazis, uma vez que concebem a Arte como expressão «da alma duma raça» e, ao mesmo tempo, fazem da pureza da raça o seu cavalo de batalha – ao ponto de criar vários «institutos de higiene racial» nas universidades – excluem os judeus da concepção e da administração da música germano-ariana.

Depois de 1933, mais nenhuma possibilidade lhes foi concedida no sentido de que fossem intérpretes, compositores, pedagogos, organizadores de concertos ou agentes da política cultural.

(continua)

*
Transcriçãoção do artigo, com o mesmo título, publicado na página de Cultura do 'Jornal de Sintra', em 23 de Março de 2012. Com periodicidade semanal, no dia posterior à sua publicação no referido jornal, continuarei a reproduzir os artigos que se seguirão neste mural do fb.

PS:Aqui têm o fim da ópera "Die Meistersinger von Nürnberg". São páginas de inspiradíssima música orquestral e de canto onde, tão abusivamente, os nacional-socialistas foram beber mensagens que alimentaram conceitos como os que Goebbels propala.

http://youtu.be/0vC-HI8x7Xg

Para vos permitir uma via de acesso facilitado ao discurso final de Hans Sachs, constante da gravação anterior, eis a tradução em Inglês:

"Beware! Evil tricks threaten us;
if the German people and kingdom should one day decay, under a false, foreign rule, soon no prince would understand his people;
and foreign mists with foreign vanities they would plant in our German land;
what is German and true none would know, if it did not live in the honour of German Masters.
Therefore I say to you: honour your German Masters, then you will conjure up good spirits!
And if you favour their endeavours, even if the Holy Roman Empire should dissolve in mist, for us there would yet remain holy German Art!"

De facto, como facilmente se verifica, era muito fácil aos nazis apropriarem-se desta mensagem...

2 comentários:

Sintra do avesso disse...

Transcrição do fb:

gostam:
António Filipe
José Manuel Anes
Isabel Oliveira
Chábeli de Castro-Camacho
Narciso Bernardo
Conceição Neto
Luis Miguel Correia Lavrador
Ana Mandillo
Maria Fernanda F. Silva

João De Oliveira Cachado
Para vos permitir uma via de acesso facilitado ao discurso final de Hans Sachs, constante da gravação anterior, eis a tradução em Inglês:

"Beware! Evil tricks threaten us;
if the German people and kingdom should one day decay, under a false, foreign rule, soon no prince would understand his people;
and foreign mists with foreign vanities they would plant in our German land;
what is German and true none would know, if it did not live in the honour of German Masters.
Therefore I say to you: honour your German Masters, then you will conjure up good spirits!
And if you favour their endeavours, even if the Holy Roman Empire should dissolve in mist, for us there would yet remain holy German Art!"

De facto, como facilmente se verifica, era muito fácil aos nazis apropriarem-se desta mensagem...
há 8 horas

Luis Miguel Correia Lavrador
Bom dia, João. Pensei logo em Furtwängler e na sua controversa relação com o Terceiro Reich. Enorme abraço :)

http://youtu.be/​3rM96_RS1Os

Furtwangler conducts Die Meistersinger in 1942
www.youtube.com
Furtwangler conducts Wagner Die Meistersinger in 1942..

há 5 horas

Luis Miguel Correia Lavrador Quando ele conduz Wagner ou Strauss dá para esquecer o ambiente circundante? Onde está a força da Música? Tantas questões...
há 5 horas

João De Oliveira Cachado

Claro que pensou. E fê-lo por um mecanismo de conotação que, entre nós, wagnerianos, é inequivocamente automático. Pessoalmente, estou-me perfeitamente nas tintas para as interpretações que levaram a considerar Furtwängler comprometido com o regime totalitário do III Reich. Aquilo que conheço, leva-me a concluir que, isso sim, se arriscou às mais malévolas leituras das suas atitudes porque, de facto, decidiu permanecer em solo germânico durante a vigência do regime nazi. Era um maestro absolutamente inovador, extraordinário, tanto ou mais do que Toscanini que o admirava sobremaneira. Deixou leituras e interpretações antológicas, que tantos entendidos consideram , definitivas Em Salzburg, ainda hoje, Furtwängler é idolatrado por gente da música dos mais diferentes quadrantes. Na cidade, entre a Grosse Aula da Universidade (mesmo em frente ao Grosses Festspielhaus) e a traseira exterior da capela-mor da Kollegium Kirche, o magnífico templo de Fischer von Erlach, há um sereníssimo espaço, que nem sequer terá um hectar, onde pontifica uma estátua do poeta Friedrich von Schiller, que, precisamente, em homenagem ao mítico maestro, é o Jardim Furtwängler. É um dos meus locais preferidos. Mesmo em tempo de neve e gelo, depois de bem limpo um determinado banco que, há muitos anos, é um dos meus poisos na cidade, não queira saber o Luís quantas vezes por ali me tenho perdido e encontrado.
há 3 horas·


João De Oliveira Cachado

Ainda a tempo para lhe agradecer ter trazido Furtwängler a este espaço.
Grande abraço
há 3 horas ·




















Ana Mandillo

Maria Fernanda F. Silva

Anónimo disse...

https://www.facebook.com/events/365557313468555/