[sempre de acordo com a antiga ortografia]

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Caricaturas


O texto que sintradoavesso hoje acolhe no Notas Diárias não é de minha autoria. Apareceu-me como anexo de um e-mail que Ana de Oliveira acabou de me enviar após ter lido o escrito aqui publicado anteontem, acerca dos novos candeeiros da Volta do Duche, nele se inspirando para a peça que, sem o mínimo retoque, é reproduzida ipsis verbis e na íntegra.

O facto de alguém produzir um texto que, não sendo um comentário, adquire autonomia expressiva, mas sempre em articulação com um escrito da minha responsabilidade, suscitou-me a ideia que, hoje mesmo, ponho em prática. Haja outros autores, nas mesmas circunstâncias, que terei o maior prazer e o privilégio de poder dar-lhes vida, pondo-os a circular através destas linhas.

Naturalmente, impõe-se uma brevíssima apresentação da autora, cujo texto inicia esta nova rubrica que passo a designar como Caricaturas.

Ana de Oliveira
, nascida em Lisboa em 1949, residente em Sintra há quase quarenta anos, tem permanecido na Ilha de Jersey durante a última década, ao serviço de uma grande organização não governamental, operando como assessora para os sectores de saúde, educação e integração das minorias étnicas.

Para além destas funções, Ana de Oliveira tem desenvolvido assinalável actividade artística, concebendo peças cuja estrutura integra uma interessante miscelânea de têxteis, cerâmica, desenho e pintura, um domínio em que foi iniciada pela nossa grande amiga Maria Almira Medina.

Também é, ela própria, a autora de Shatush, um interessante blog em língua inglesa, que recomendo vivamente para terem uma ideia dos artefactos que já andam na posse de alguns coleccionadores. Aliás, neste preciso momento, Ana de Oliveira tem expostos trabalhos seus, subordinados ao enquadramento Textiles and Mixed Media no sofisticado ambiente The Harbour Gallery and Studios, a mais prestigiada das galerias de Jersey.

………………

Às voltas com a Volta


Pequena moradia germinada com quintal, entre Vila Verde e Terrugem. São onze da noite. Frente à televisão, pregados à telenovela, "o técnico", Maurília, a mulher (ou melhor, neste caso, a esposa) e o rebento, Ruben José que devora uma tablete de chocolate e cada pitada da cena erótico-picante em curso.

De repente, "o técnico” lembra-se do catálogo duma dessas grandes superfícies com secção de equipamento para jardins. Levanta-se, vai ao bolso do casaco, rapa do dito, volta a sentar-se, folheia-o durante uns segundos, sem ponta de ânimo, num desassossego.

Acode a esposa, com desvelo...
- Afinal, o que se passa? Estás para aí entupido com alguma. Nem uma pessoa pode ver a porcaria da televisão descansada. Mas que cara de preocupação! E logo nas minhas ventas…

Responde "o técnico”, com a disposição que se imagina.
- Tenho de escolher a porcaria duns candeeiros lá p’ra Sintra. Já me andam a chatear por causa desta gaita. Podias dar uma ajudinha…

Maurília, pega-lhe nas folhas. Mexe, remexe, volta atrás. Rapidamente se decide.
- Olha, eu gosto deste.

O técnico, muito a propósito:
- Não sei… hummmmm…

E lá vão, humm daqui, humm dali… gosto mais, não gosto, detesto…

Ruben José, que é quem manda lá em casa, continua de olhos esbugalhados com a marmelada que vai naquele ecran. Por fim, sempre com o boné da ordem, desperta de tanta gula, para logo botar opinião. Dá um salto, mete-se no meio dos pais e, ainda com o dedo todo lambuzado de chocolate, aponta e esganiça.
- Eu quero este. Este! É lindooo…

"O técnico" achou que o puto é que tinha razão. A respectiva esposa concordou. Ainda acrescentou:
- Sabes uma coisa? Até gostava dum assim pr’ó quintal… Vê lá mas é se dás um jeito e, à conta, encomendas mais um p’rá gente…

Ana de Oliveira

……………………….

Ah!, é verdade, Ana de Oliveira já está a preparar o seu regresso a Sintra, ainda durante este ano. Por muito bem que possa estar e ser considerada em Jersey, pessoas com estas capacidades fazem falta por cá. Embora isto não esteja lá muito bem…

3 comentários:

Spirale disse...

Deus nos livre, mas eu acordo ciclicamente com suores frios só de pensar na hipótese. Há que estar atento. Muito atento! Mas a verdade é que todos nós corremos o risco de ser um "Ruben José" ou de ter um "Ruben José" no nosso seio.

(Chamo no entanto a atenção para o facto de haver nomes piores, e os Rubens, no fundo, quando nascem não têm culpa. Esta só pode ser, até ver, imputada aos pais e ao seu bom gosto.)

Cada vez mais me convenço que essa é sem dúvida uma das nossas cruzes. Faz parte do "ser" Português. É um desígnio do Senhor. Só pode. Deus nosso Senhor, um dia deve ter destinado Portugal aos Portugueses: "nobre povo", coisa e tal... grandes feitos, um país à beira-mar plantando, clima invejável, "Pátria do Sol"... ou será que era do "sal"? "País do Sul"..., sim, dessa recordo-me bem... É na parte do "Para a frente, Portugal", que as coisas nos últimos séculos têm andado um pouco torpes e difíceis. Já o D. Sebastião tinha um pouco de Ruben José, só pode... O último século então, foi pródigo em "Rubenzices".

Estou convencido de que quando Deus criou "Portugal" meteu os pés pelas mãos ao criar os "Portugueses". Se repararem, na equação bate tudo certo até chegarmos a esta variável que se tem revelado infelizmente, e para mal dos nossos pecados, uma constante. A nossa "cruz" é o "ser" Português. Porque o Português tem tanto de Ruben José, está tão "Rubenizado", que já não sabe o que há-de fazer - parece uma galinha tonta cuja cabeça foi cortada, mas que continua a correr às voltas pelo quintal...

É "karma". Tem de ser. Pecámos muito. Desperdiçámos muitas oportunidades. Temos muito para purgar. Até lá, corremos todos o risco de nos "Rubenizarmos" ou de nos irmos "Rubenizando". Ser Português, de e em Portugal, actualmente é isso: uma "Rubenzice" pegada.

Eu luto diariamente para não cair na tentação. É uma provação do Senhor. Só pode... Só pode. É o nosso fado. Mas, por vezes, dou por mim a pensar que mais dia menos dia, ainda posso concretizar o pesadelo de vestir um fato de treino roxo, pegar nos cães, na "famelga" suburbana, e levar todos "a passear", mais a marmita, para os jardins em frente aos Jerónimos.

É que pode acontecer a qualquer um quando menos se espera.
Atentem no nosso actual Primeiro-Ministro e no bom gosto e fina estética revelados nos "seus" projectos de engenharia, da década de oitenta, lá para as Beiras. (Ele não é Ruben, é só José, mas estou convencido que depois de alguma investigação jornalística do Sr. Cerejo, ainda chegamos à conclusão de que ele terá mudado o nome já em idade adulta.) Ora, sabendo pessoalmente como as coisas funcionam no sector e funcionavam na época, até era "normal". Era, e nalguns casos ainda é, a norma. Não tenho grandes dúvidas que o Eng. Sócrates prevaricou menos que muitos. São dele os projectos. Foram assinados por ele, logo são dele. O termo de responsabilidade, na qualidade de engenheiro, é dele. Os "abortos" arquitectónicos que ele assina? Bem, também são dele.
Aquelas "Rubenzices" provincianas infelizmente já nem destoam da paisagem. A paisagem portuguesa está "Rubenizada", salvo raríssimas excepções.
Fico aflito, isso sim, por saber que quem nos governa é um "Ruben", e nesse aspecto, já com "obra" feita. O problema, mais sério ainda, é que para substituir este "Ruben", temos em fila de espera outros "Rubens" ainda mais "Ruben".
E se um "Ruben" incomoda muita gente, muitos "Rubens" incomodam muito mais. Ou deviam.

Há meu ver existem duas opções: "Se não podes lutar contra eles, junta-te a eles" ou "água mole em pedra dura tanto bate até que fura"... Eu por enquanto opto pela segunda. Pode ser que devagarinho a coisa se vá "desenrubenizando".

Entretanto, como os tempos que se avizinham, em termos de "Rubenzices" não se mostram promissores, proponho que criemos o verbo "Rubenizar". Pelo menos estaremos a contribuir para "espicaçar" a língua portuguesa.

Spirale disse...

O "Há meu ver existem duas opções:" padece de um lapso, de uma "Reubenzice"... O "Há" não carece obviamente de "agá". :-)

Sintra do avesso disse...

Para Spirale,

Folgo imenso por tê-lo de volta. Como sabe, desta vez, não esteve a comentar um texto da minha autoria mas, isso sim, de Ana de Oliveira. É uma caricatura muito bem caçada que permitiu a Spirale a confecção de uma outra peça, contributo inequívoco para a história deste recente blogue que pode orgulhar-se dos «colaboradores» que tem sido capaz de recrutar.

Muito embora deva ser Ana de Oliveira quem, ainda mais, se regozijará com o texto de Spirale, não posso eu deixar de lhe dizer como chega a emocionar-me que alguém tanto se empenhe em retribuir impressões a quem arrisca vir a estas janelas escancarar o que lhe vai na alma.

Por outro lado, gostaria ainda de acrescentar que, certamente, como já terá reparado, os posts de ontem e de hoje se relacionam com um conhecido Ruben José aí da nossa praça, a quem Spirale se refere muito directamente.

Olhe, concordo com a sua proposta quanto a acrescentar ao léxico o verbo "rubenizar". Prometo, no entanto, fazer o possível por não o assumir nos meus escritos - em termos substanciais, entenda-se - e, desde já, fica o compromisso de o conjugar nas nossas «private jokes».

As melhores saudações e um abraço do

João Cachado