[sempre de acordo com a antiga ortografia]

segunda-feira, 31 de dezembro de 2012




Mozart,
Sinfonia No. 41
 
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Desde o seu primeiro andamento, esta sinfonia é a continuação da precedente e, tal como já dei a entender, «resolve» as preocupações que a outra tinha expressado. O pathos e a ansiedade são agora ultrapassados. Trata-se de uma sinfonia de equilíbrio e ordem, de uma autêntica arquitectura que Mozart cria baseado nas suas convicções e em si próprio, uma obra cuja grandeza apenas reflecte um ideal, uma sinfonia «de realização», não de especulação.
 
O tranquilo diálogo do segundo andamento, um ‘Andante cantabile’ é deliberadamente diferente do segundo andamento da Sinfonia No. 40. Nenhuma ansiedade nem sombra de qualquer espécie. Sem pausas mas sem tensão, a partitura empurra o ouvinte em direcção à plena luz, como Tamino fará em relação à luz da sua iniciação.

Insisto na necessidade de sempre ter presente que Mozart compõe as três sinfonias num curtíssimo período, em pleno Verão de 1788, um tempo durante o qual mal sai de casa que importa relacionar com o texto da carta ao seu Irmão Maçon Puchberg . Neste contexto, para tentar entender a unidade de pensamento da trilogia, preciso é que relacionemos o último movimento desta ‘Jupiter’ com o primeiro andamento da Sinfonia No. 39 já que, assim procedendo conseguimos imaginar como, na sua oposição, mutuamente se complementam.

Para rematar a obra, Mozart regressa ao símbolo da dualidade e da oposição. Começando no caos inicial dos ritmos quebrados, na violência dos batimentos – numa palavra, em tudo o que o princípio deste tríptico tem a ver com escuridão, ansiedade e desordem – Mozart vai guiar-nos para a luz, força e beleza. 

 Em conclusão, não é difícil que, neste compósito e complexo dispositivo sinfónico, possamos ler um percurso maçónico em que, entre outros, tivemos um vislumbre da claridade da esperança através da transparência do primeiro tema da Sinfonia No. 39, seguindo-se a escuridão da No. 40, num combate sem tréguas, escorregando pelo desânimo, até à estonteante luz da última sinfonia.

Finalmente!

Cheguei ao fim do trabalho que me propus. É o fim de uma caminhada fascinante. Em determinados momentos, a circunstância de sermos tão gratificados por verdadeiras epifanias musicais, quase fazemos um esforço para não esquecer a evidência de todo um percurso composicional que só pode ser plenamente entendido se, constantemente, o formos relacionando com as obras, de todos os géneros que, entretanto, Mozart ia compondo.

Humilíssimo, curvo-me perante o génio. Ousei ler algumas entrelinhas do divino Mozart. Lá do Oriente Eterno onde repousa, perdoará ele o atrevimento, mesmo tendo em conta o propósito da divulgação que me pareceu pertinente nestas ligeiras páginas do facebook?

Enfim, eis a última gravação proposta que, como já estava anunciado, continua com a Filarmónica de Viena sob a condução de Nikolaus Harnoncourt.

Boa audição!

 



Mozart,
Sinfonia No. 40
 

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Sem dúvida que foi com duas orquestras em perspectiva que Mozart compôs as duas versões da sua Sinfonia em Sol menor KV. 550, obra cheia de neurose, intelectual e tematicamente a mais erudita de todas as suas grandes sinfonias. Não há uma única nota a mais, ou seja, a contenção é máxima, absolutamente nenhuma concessão à facilidade ou ao ânimo leve.
Muito frequentemente, é nítida a sensação de um violento e notório desespero que nos remete 
para o Romantismo. A primeira versão da peça, além dos habituais naipes de cordas, foi escrita para 1 flauta, 2 oboés, 2 fagotes, 2 trompas, uma versão em que – façam o favor de reparar bem – são precisamente as trompas que contribuem para um tom particularmente agressivo da música.

Em relação à versão inicial, na revisão da orquestração a que procede em Abril de 1791, Mozart introduz clarinetes na textura e reformula as partes de oboé, conferindo à obra um cariz mais nostálgico. De qualquer modo, quer numa quer noutra, o que ressalta é a economia do material.

Esta é uma obra em que todos os cânones vigentes são postos em causa. É uma obra em que é enorme o salto para o futuro. Ela é um marco na História da Música em geral e na História da Sinfonia em particular. Com a KV. 550, o compositor perturba as consciências formatadas para uma ordem que ele vem abanar como um terramoto. Perante este quadro de tantas evidências que apenas pedem atenção na escuta, parece impossível como a obra continua a ser lida e ouvida com a ligeireza com que, não raro, ainda reparamos e contra a qual Harnoncourt se rebelou.*

A partir de então, nunca mais o género sinfónico terá qualquer espartilho. Nesta sinfonia, Mozart protagonizou um salto para a Liberdade, abrindo a porta aos grandes sinfonistas do futuro, em especial, a Beethoven que ainda conheceu e acerca de quem tinha a melhor das impressões. Ouvir a KV. 550 continua a constituir um desafio à inteligência, um convite ao enriquecimento do espírito. E, se quiserem, no contexto da tríade em que figura como segundo momento – depois da Sinfonia No. 39 e a caminho da ‘Júpiter’ – representa um território sombrio, um momento em que tudo é posto em causa, até à resolução que a Sinfonia No. 41 vem anunciar.

Vou deixá-los, tal como já tinha anunciado no artigo precedente, com a leitura de Harnoncourt à frente da Filarmónica de Viena. É, de facto, uma abordagem impecável. Assim saibam entender-lhe a diferença relativamente a outras propostas.

Boa audição!

*Depois da publicação do próximo texto, com o qual terminarei este trabalho de divulgação das quarenta (quem esteve atento, sabe que não são quarenta e uma…) sinfonias de Mozart, acrescentarei umas nota sobre o que o Maestro afirmou acerca da KV. 550, considerando-a a sinfonia que mudou a sua vida.


http://youtu.be/AP3lJy9rVOc
 


Mozart,
o milagroso tríptico sinfónico


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O cúmulo canónico absoluto da sua obra sinfónica, KV. 543, 550 e 551 – obras que, inequivocamente, figuram entre as mais importantes e influentes compostas em todo o século dezoito – foram escritas num curtíssimo período de seis semanas ou pouco mais, durante o Varão de 1788, circunstância concludente a partir das entradas no catálogo pessoal de Mozart, respectivamente, datadas de 26 de Junho, 25 de Julho e 10 de Agosto.

Tradicionalmente, tem-se partido do princípio de que Mozart nunca tocou estas sinfonias. No entanto, tal não parece sustentável já que não só essa convicção é totalmente contrária à prática habitual do compositor, como também a rápida divulgação das obras, em especial das KV. 550 e 551, e o facto de ele ter revisto a KV. 550, juntando clarinetes à orquestração, sugerem que, de facto, foram apresentadas publicamente.

E não terão faltado oportunidades para o efeito. Lembremos a nota numa carta datada de Junho de 1788, por altura da composição da KV. 543, dando a entender que Mozart estava a planear uma série de concertos no futuro imediato, para além do facto de que concertos, em Leipzig em 1789, Frankfurt em 1790 e Viena em 1791, todos incluíam sinfonias.

Ainda que não deixe de ser tentador descartar a ideia romântica de que as derradeiras sinfonias representam uma súmula e o culminar da arte sinfónica de Mozart – é perfeitamente absurdo pensar que ele teria consciência de que estas seriam as suas últimas peças do género – no entanto, tipificam algumas características essenciais do seu estilo sinfónico que, sem dúvida, constituem o grande contributo para a sinfonia.

Naquele contexto, gostaria de salientar a perfeita noção da proporção e do equilíbrio estrutural, um vocabulário harmónico riquíssimo, o delinear da função através de material temático distintivo e característico e uma especial preocupação com as texturas orquestrais que, muito particularmente, manifestou na escrita extensa e idiomática para os instrumentos de sopro.





Mozart,
Sinfonia No. 39

 

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Sinfonia em Mi bemol Maior obedece a uma orquestração em que os oboés estão ausentes, circunstância que condiz com solução idêntica do anterior Concerto para Piano KV. 482. A tonalidade é uma das favoritas do compositor a qual tem sido interpretada como assumindo, a um tempo, a dupla perspectiva de suficiência e terna nostalgia, para além de ser a mais presente na música maçónica de Mozart.

Esta é uma daquelas sinfonias que remonta ao padrão mais habitual dos quatro andamentos com o restabelecimento da solução Menuetto/Trio na terceira secção. O ‘Allegro’ inicial é um ‘Adagio-allegro’, portanto, novamente precedido por uma lenta introdução, especialmente notável pelo seu tema cantante legato. O andamento lento é o ‘Andante com moto’, em Lá bemol, um movimento lírico perturbado por grandes e súbitas manifestações em tonalidades afins.

Quanto ao ‘Menuetto/Trio’, parece-me evidente afirmar uma «tendência» para soar a Schubert, com a evidente proeminência das partes de clarinete na secção do Trio. Termina com um ‘Allegro’ que não podia ser mais complexo e complicado, especialmente original e inoivador na escrita para a secção das trompas.

A interpretação que vos proponho – não só desta mas também das outras duas sinfonias do tríptico – é a do Maestro Harnoncourt com a Filarmónica de Viena. Por razões muito pessoais, fiquei particularmente ligado a estas leituras cuja pertinência tive oportunidade de confirmar por ocasião do ano jubilar mozartiano de 2006, em que Nikolaus Harnoncourt foi o convidado de honra do Mozarteum para as comemorações dos 250 anos do nascimento de Mozart.

Tive o raríssimo privilégio de assistir à gala matinal – abertura oficial muito restrita, no Mozarteum, apenas por convite, que é preciso não confundir com a gala da noite no Grosses Festspielhaus – em que Harnoncourt, num discurso absolutamente espantoso e memorável, explicou porque estas e, em especial, a KV. 550, era a sinfonia da sua vida. Já publiquei esse testemunho interessantíssimo pelo que basta procura-lo no arquivo.

Boa audição!


http://youtu.be/9CpA7tlVqN4


segunda-feira, 24 de dezembro de 2012


 

Tribunal Constitucional:
- Acuda!


Oportunamente, parte significativa da opinião pública se expressou no sentido de que, afinal, o governo tinha encontrado uma solução muito talentosa para que o Estado se financiasse em cerca de dois mil milhões de euros, com o patriótico objectivo de cumprir o estabelecido com a Troika, até que o Tribunal Constitucional veio estragar tudo. Enfim, uma chatice. Já toda a gente estava descansadíssima, com os chupistas dos funcionários públicos e pensionistas a resolverem um assunto tão incómodo, e zás, aconteceu o que não devia…

Comparado com o slôgane os ricos que paguem a crise, isto é muito mais sofisticado. Durante anos e anos, incomparavelmente mais do que os grandes detentores do capital, os trabalhadores da Administração Pública têm sido perfeitamente diabolizados, como se, na sua actividade, estivesse sediado todo o mal que consome as entranhas do Estado, tanto a nível nacional como local.

O que será preciso fazer para demonstrar que, tanto no sector público como no privado, aliás, como em todas as latitudes, há excelentes, bons, regulares, maus e péssimos trabalhadores?

A menos que, através da referida diabolização, se pretenda justificar a atribuição das culpas pelo estado a que as coisas chegaram aos cidadãos, cuja exposição e características de enquadramento laboral, se revelam mais a jeito para a imposição das mais gravosas medidas, de tal modo que os benefícios decorrentes possam abranger toda uma sociedade tranquilizada por procedimento tão judicioso...

Basta! É altura de dizer não ser possível continuar com esta atitude, verbalizando um discurso tão contundente quanto melindroso. Será que, em relação a pretensos privilégios dos trabalhadores do sector público, já nos esquecemos de que, durante décadas, ganharam significativamente menos do que os do privado? E quanto à estabilidade do posto de trabalho? Se alguma vez aconteceu, meus senhores, já foi… Veja-se o que aconteceu com professores – atenção, não os contratados, que não tinham vínculo com a Administração, mas aos profissionais dos quadros! – que iniciaram o ano lectivo em curso sem funções atribuídas e com o lugar em risco?

Já nos esquecemos de que, na sequência do processo de descolonização, este país acolheu dezenas de milhar de funcionários públicos provenientes das ex-colónias que inflaccionaram os quadros da «metrópole» e que, a médio e longo prazos, tiveram a consequência perversa do retardamento da progressão nas carreiras, durante dezenas de anos, dos funcionários que cá estavam e que tão prejudicados foram? Portanto, já nos teremos esquecido de que, no seu seio, discreta mas eficientemente, os funcionários público resolveram problemas sociais gravíssimos, que teriam atingido proporções inusitadas não tivesse sido um tão exemplar e profundo sentido patriótico e de sacrifício?

Já nos esquecemos de que uma grande maioria dos trabalhadores do sector público é bastante mais qualificada do que a restante, uma vez que é o Estado que tem de suprir os vencimentos de centenas de milhar de licenciados indispensáveis ao funcionamento da sua máquina administrativa? Médicos, professores, milhares e milhares de engenheiros, veterinários, arquitectos, investigadores, juristas, magistrados, diplomatas, militares, etc, etc, todos  licenciados?

Num país marcado por uma incomensurável cultura de desleixo – em que o sector público, muito mais do que o privado, está sujeito a um escrutínio de inequívoca visibilidade – dá um jeito incrível generalizar e potenciar exponencialmente os sinais e sintomas menos positivos para que, bem explorados por opinion makers mal informados, mal intencionados e, nalguns casos, mesmo desonestos, sejam apresentados à comunidade como os bodes expiatórios ideais.

Pois claro! Eis os funcionários da Administração Pública. Pois claro! Eis os pensionistas, credores de verbas que lhes foram sonegadas, lesados por quebra de contrato, já que tais dinheiros tinham sido confiadas ao Estado, nos termos de contrato celebrado de bona fide, para que, ao longo de dezenas de anos, o mesmo Estado pudesse ter beneficiado com a sua capitalização, na presunção de que a sua pensão estava coberta e segura, jamais prevendo que a pessoa de bem que, em princípio o Estado é, tão descarada e inopinadamente, deixasse de honrar o seu compromisso…

Eis, uns e outros, transformados em indefesa mas perfeita vítima, imolada no altar de uma comunicação social, lamentavelmente, tão deficiente, tão falha de profissionalismo que, entre nós, de maneira alguma, cumpre o papel de quarto poder que lhe está reservado nas sociedades democráticas. Ao fim e ao cabo, é a mesma comunicação social que muito pouco ou nada faz no sentido da sistemática e objectiva denúncia da economia paralela vigente, estimada em cerca de um quarto da riqueza gerada a nível nacional! 

Ora bem, aquele tenebroso mundo, que tanto  abrange as actividades biscateiras como as mais sofisticadas,  que tem artes de se subtrair ao fisco através dos mais requintados  canais fraudulentos,  é, precisamente, o  do mesmo sector privado – animado pelos escandalosos, maldosos e confusos discursos dos membros do executivo governamental, avultando os do próprio Primeiro Ministro – que mais se acicata em apontar o dedo aos pensionistas e aos funcionários da administração pública a nível nacional e local, indefesos perante a  promoção das mentiras mais vis.

Claro que «programa» tão sinistro não é de agora. Alguns políticos, que bem conhecemos de anteriores executivos, nos trouxeram até tão baixo nível, em que bancarrota se confunde e coincide com a mais escandalosa ausência de princípios e de valores. Mas o actual governo bem pode orgulhar-se de tudo estar fazendo no sentido de promover as atitudes mais negativas e menos correctas, minando os mais nobres valores comunitários e inviabilizando o futuro. Que, para o efeito, também esteja a sobrecarregar os pensionistas e trabalhadores da função pública, a um ponto absolutamente vergonhoso e aviltante, eis o que jamais deveria acontecer.

Acuda o Tribunal Constitucional! Mais uma vez!...
 
 

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

 
Mozart,
Sinfonia No. 38


Esta Sinfonia em Ré Maior, Praga, KV. 504 está datada de 6 de Dezembro de 1786, ou seja, mais de três anos depois de ter composto a precedente, a No. 36, em Dó Maior Linz, KV 425. Como se verifica, saltou a numeração porque se veio a concluir que a No. 37, em Sol Maior KV. 444/425ª era obra de Michael Haydn (irmão de Joseph Haydn) à qual Mozart apenas fizera uma introdução.

Foi estreada em Praga, em 19 de Janeiro de 1787, na mesma altura em que a ópera As Bodas de Fígaro gozava de sucesso estrondoso. Orquestrada para 2 flautas, 2 oboés, 2 fagotes, 2 trompas, timbales e cordas, a sinfonia está estruturada em três andamentos, o primeiro dos quais Adagio.Allegro, com uma introdução grandiosa, de ambiente grave e trágico, a lembrar a Abertura de “Don Giovanni”, numa tensão dramática que o ‘Allegro’ vem resolver em clima luminoso.

Seguidamente, o Andante, em Sol Maior. Mais uma vez, aquela gama de cores que nos permite viajar entre o sorriso e a lágrima, a sofisticada ironia, sempre a polaridade mozartiana. E, terminando, Finale: Presto. O espírito reinante é o de As Bodas de Fígaro, bem evidente no motivo dos violinos, no dueto Susana-Cherubino quando este salta pela janela no II Acto. Contudo, novamente, um grande contraste, com o trágico mozartiano irrompendo no desenvolvimento, alternando entre tensão e calma para finalizar exuberantemente.

Mozart está na plenitude da sua mestria como sinfonista. Trata-se de uma obra extremamente equilibrada, numa ideal harmonia de proporções. Passados dois anos, seguir-se-ia a grande tríade das últimas sinfonias junto das quais esta No. 38 bem pode figurar ao mesmo nível de inspiração genial.

Desta vez, outra gravação de referência absoluta, num dos melhores serviços prestados a esta peça de Mozart. A orquestra é a Filarmónica Checa, sob a direcção de Sawallisch, nos bons tempos da etiqueta 'Supraphon'.

Boa audição
!

http://youtu.be/iHkc-tqKz3M

 

sábado, 15 de dezembro de 2012

 
 
Mozart,
Sinfonia, No. 36
 

Entre 31 de Outubro e 3 de Novembro de 1783, Mozart e sua mulher Constanze, dirigindo-se a Viena provenientes de Salzburg, ficaram hospedados em Linz no palácio do Conde Thun, um grande amigo e admirador do compositor. Desafiado pelo anfitrião a dirigir um concerto no dia 4, Mozart compõe, em tão pouco tempo, esta peça para a ocasião em que, naturalmente foi estreada sob a sua direcção.

Vale a pena determo-nos um pouco na análise de cada andamento. A abrir, com um ‘Adagio. Allegro spiritoso’, Mozart escreve, pela primeira vez, uma introdução lenta numa sinfonia. Alfred Einstein, um conhecidíssimo estudioso da obra mozartiana, referia ser heróica no início e que, depois de um clima claro-escuro, nos faz passar da mais doce nostalgia à mais profunda angústia.

É verdade e, não deixemos jamais de ter em consideração, tão verdade que, de facto, esta é uma das fundamentais características de Mozart, ou seja, uma permanente polaridade que, não raro, como acontece no desenvolvimento do longo tema do ‘Allegro’, nos transporta através de enorme diversidade de climas espirituais.

O ‘Andante’, em Fá Maior, é um verdadeiro assombro no qual, da repetição do tema de siciliana – bastante longo, terno e nostálgico – se eleva do registo grave uma escala inusitada, quase um mistério, ‘piano’ e ‘staccato’. O terceiro andamento, ‘Menuetto’, é visivelmente dançante, marcado, no trio, por um diálogo estupendo entre o oboé e o fagote.

Finalmente, o ‘Presto’, vibra de alegria, de entusiasmo e de subtileza. Hão-de reparar que o terceiro tema será retomado por Mozart no segundo andamento do seu “Concerto para piano no. 27, em Si bemol Maior”, KV 595. Não é coisa rara, não só em Mozart mas também noutros compositores, revelando uma sábia gestão de ‘conteúdos’…

Não há quem não reconheça nesta sinfonia ainda a influência de Haydn mas o espírito é declaradamente mozartiano e, em geral, no território da sinfonia, a escrita contrapontística de Mozart revela requintes de originalidade sem precedentes.

Deixo-vos com uma interpretação absolutamente recomendável e de referência máxima, pela Columbia Symphony Orchestra, sob a direcção do mítico Bruno Walter.

Boa audição!
 

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012




[Transcrição do artigo publicado na edição de hoje do Jornal de Sintra]

Festival de Sintra 2013

Ao contrário do que possa parecer, as considerações que pretendo propor aos leitores aparecem na altura mais certa. Olhem que não é cedo para as partilhar. Na realidade, antes do fim do ano, e, praticamente a seis meses do início da próxima edição, afigura-se-me correcto conjecturar acerca de algumas das linhas de força de um importante acontecimento que, há mais de cinquenta anos, marca o calendário cultural da nossa comunidade.

No contexto da história mais recente do Festival de Sintra, a programação para 2013 continuará a concretizar-se num quadro de sério constrangimento de ordem financeira. Naturalmente, tal circunstância não poderá deixar de afectar importantes aspectos da concepção desta iniciativa que, cumpre não esquecer, além de sofisticado produto cultural de Sintra, também ocupa destacada posição na oferta cultural nacional.

A generalizada crise que o país enfrenta tem suscitado indesejáveis consequências, tanto em relação à disponibilidade dos meios a envolver pela entidade organizadora como à dos mecenas institucionais e das grandes empresas dos sectores público e privado que, há mais ou menos tempo, patrocinam o Festival. De qualquer modo, continua a impor-se que, independentemente do aludido e tão negativo quadro restritivo, não seja posta em causa a qualidade e a dignidade das propostas constantes da programação.

Portanto, à partida, em vez de suscitar a ideia de que se pretende resolver o velho problema da quadratura do círculo, o limitativo painel de referências antes deverá desencadear respostas que articulem e conjuguem a necessidade de assegurar a permanência de uma inquestionável dignidade das iniciativas, acicatada e impulsionada por uma austeridade que só pode assumir-se como alavanca para a manutenção da sua qualidade.

Estão à prova a proverbial capacidade de adaptação, não só da Direcção Artística do Festival mas também de todos os restantes responsáveis, no sentido de que, cada vez mais e com maior acuidade, sejam apresentadas e concretizadas as propostas mais adequadas aos condicionalismos do tempo difícil que vivemos. À prova, afinal, estamos todos. Todos, de facto, nós incluídos, como público que não pode deixar de ser solicitado para atitudes de frequência e de avaliação dos eventos, também elas adequadas à natureza das propostas.

Linhas de força

Tudo leva a crer que, a exemplo de anos anteriores, ao longo de uma quinzena, incluindo dois fins de semana da estação estival mais propícia à concretização de algumas iniciativas também ao ar livre, o Festival de Sintra 2013 jamais se poderá alhear das grandes efemérides musicais do ano, o bicentenário dos nascimentos de Richard Wagner (22.05.1813-13.02.1883) e de Giuseppe Verdi (10.10.1813-27.01.1901) bem como o centenário do nascimento de Benjamin Britten (22.11.1913-4.12.1976). No entanto, é perfeitamente natural que, além de obras destes compositores, acolha outras que a programação detalhada vier a considerar pertinentes, ainda que não implícita ou explicitamente relacionáveis.

Não será necessário recorrer a capacidades divinatórias para prever que a selecção das peças daqueles três grandes mestres dos séculos dezanove e vinte há-de contemplar, necessariamente, as contingências gerais determinadas, quer pelas tradicionais características que vinculam o Festival de Sintra a um determinado figurino em que a pianística, a música de câmara instrumental e vocal são marcas indeléveis, quer pelas mencionadas restrições de ordem material.

Consequentemente, inevitável se revela que, para incluir obras de Verdi, de Wagner e de Britten, o programa deva privilegiar a componente da música de câmara e integre um considerável número de peças cuja apresentação seja possível através de reduções a piano ou a agrupamentos de câmara, já que a sua orquestração original exige meios absolutamente incomportáveis. Por outro lado, a vertente vocal, nomeadamente, árias e duetos, poderá ser confiada a vozes solistas com acompanhamento instrumental ao piano.

Ainda neste capítulo das linhas gerais, permito-me avançar com a sugestão de reintroduzir uma iniciativa que tanto sucesso alcançou no âmbito da 40ª edição, em 2005, quando a organização do Festival conseguiu a prestigiosa presença do Prof. António Damásio, que tanto público galvanizou para uma inesquecível tarde de vivência cultural em Sintra. Oxalá, mais uma vez, também no próximo ano, o Festival possa voltar a convidar alguém com perfil idêntico, a cargo de quem pudesse ser confiada uma Conferência de Abertura.

Vertente não formal e informal

A exemplo do que vem acontecendo de há uns anos a esta parte, veria como muito positiva a cada vez maior afirmação de uma vertente mais informal do festival, de acordo com a qual as propostas musicais não deixem de incluir, não só um importante pendor popular, concretizável através da presença de grupos corais e bandas filarmónicas de conhecidas associações do concelho, mas também, noutros contextos, uma preferencial articulação com a Literatura, Teatro, Cinema, Banda Desenhada e o audiovisual em geral, em atitudes de ateliê, de tertúlia, lugares para a partilha da informação, lugares de formação.

É extremamente pertinente que tudo possa ser equacionado e concretizado numa evidente perspectiva de animação cultural da comunidade, com o manifesto propósito de envolver as associações culturais do concelho cujo interesse e motivação forem detectáveis. De qualquer modo e, na estrita observância de conhecidos modelos internacionais que, infelizmente, ainda não foi possível replicar em Sintra, desta vez, com o tempo que ainda há para a respectiva preparação, talvez se consiga melhorar significativamente a vertente informal.

Aliás, no sentido de que, neste enquadramento de informalidade, tudo possa correr melhor do que em anteriores edições, basta que todas as iniciativas informais – para que, efectivamente, possam ser consideradas como «contraponto» à componente formal – se apresentem no estrito respeito das linhas de força programáticas do Festival, portanto, apenas afins e coincidentes com a comemoração das efemérides em apreço.

Considerações finais

Uma das mais-valias mais significativas e importantíssima marca identitária do Festival reside na possibilidade de realizar o maior número possível de eventos nas quintas e palácios de Sintra. Não tenho a menor dúvida de que o encanto vai manter-se com o correspondente deslumbramento. Ah, como certos espaços disponíveis são tão adequados ao acolhimento, entre outros, dos ambientes wagnerianos!...

Permita-se-me ainda mais duas notas. Primeiramente, uma particular chamada de atenção para a divulgação do Festival. A grande palavra de ordem é antecedência, a máxima antecedência possível, tentando atingir o público potencialmente interessado, em todas as oportunidades, através dos canais mais vocacionados para o efeito, não dispensando uma newsletter mensal, já a partir de Fevereiro de 2013, através da qual se vá criando a necessária expectativa em relação às propostas definitivas.

Em segundo lugar, a finalizar, uma saudação muito especial ao Dr. Luís Pereira Leal. Sem qualquer margem para dúvida, é um grande senhor das lides musicais em Portugal, que me habituei a considerar ao mais alto nível. Vão permanecer, por muitos anos, os ecos da sua actividade de direcção artística da Fundação Gulbenkian, casa de música que, a nível mundial, apresenta uma das melhores programações. A ele também deve o Festival de Sintra muitos dos sucessos de que pode orgulhar-se no seu palmarés. Para ele o maior reconhecimento, na certeza de continuarmos a beneficiar do seu saber, nestes tempos em que, não podendo convidar os galácticos que gostaria, sempre vai respeitando os pergaminhos do nosso Festival.

[João Cachado escreve de acordo com a antiga ortografia]
 
 

 
Efeméride europeia,
valha-nos Deus!
 
[publicado no facebook em 13.12.2012]


Faz hoje cinco anos o designado TRATADO DE LISBOA. Não se lembram? “Porreiro pá!”… Ah, assim, de certeza,não vos escapa a memória daquele alvar sorriso trocado entre os dois portugueses protagonistas de tão importante (??) evento… O Tratado, que levou cinco anos a ser negociado, jamais passará de documento ilustrativo de uma das mais significativas perdas de tempo da História da Construção Europeia. Tratado caduco, morto, morto. Um horror!

Julgo tratar-se de mais uma prova provada da falta de sentido de Estado dos líderes europeus. Ao longo de tanto tempo a queimarem as pestanas nas chancelarias, acabaram por parir um nado morto mas convencidos de que tinham gerado um produto diplomático do mais alto gabarito. Não se enxergam, de facto, a falta de discernimento é máxima.

Nunca os cidadãos europeus, por sua própria vontade, estiveram tão mal servidos de decisores políticos que, real e perversamente, desempenham os seus cargos na sequência de processos eleitorais regulares, em Estados Democráticos de Pedro Direitoois, então, comemora-se hoje a efeméride de um Tratado que, ingloriamente, está afectado por este triste determinativo conotado com a nossa capital que, assim, mais triste fica.

E, a propósito de factos tão importantes (??) quanto este de triste memória, não sei até que ponto é que, mais auspiciosa será a decisão que ontem resultou de uma reunião das instâncias europeias, no sentido de se instaurar – quando convier aos alemães, lá para 2014 – um mecanismo europeu de supervisão bancária.

Ou muito me engano ou, mais uma vez, outro português, para além de Durão Barroso, vai ficar intimamente relacionado com tão douta decisão. Claro, Victor Constâncio, pois quem havia de ser senão o actual Vice-Presidente do Banco Central Europeu que, depois de tirocínio tão demonstrativo das suas capacidades de supervisor nacional, nos casos do BPN e do BPP, está mais do que credenciado para a nobre missão europeia que dele se espera… Valha-nos Deus!

Um mundo de farsantes, este, o nosso. Permitam que o lembre da melhor maneira, com música, recorrendo à cena final do "Falstaff" de Verdi. Deixo-vos com uma excelente versão. Não vão precisar de tradução.Bom visionamento! Boa audição!

http://youtu.be/49oAEKQsdgc


Facciamo il parentado
E che il ciel vi dia gioia.

Evviva!

Un coro e terminiam la scena.
Poi con Sir Falstaff, tutti,
andiamo a cena.

Tutto nel mondo é burla.
L'uom é nato burlone,
La fede in cor gli ciurla,
Gli ciurla la ragione.
Tutti gabbati! Irride
L'un l'altro ogni mortal.
Ma ride ben chi ride
La risata final.
 
 

sábado, 8 de dezembro de 2012

 
 
Mozart,
Sinfonia No. 35


Esta é a primeira das seis sinfonias que Mozart escreveria em Viena. Mas nem todas seriam escritas «para» Viena. De facto, aquela que é conhecida como a “Haffner”, Sinfonia em Ré Maior, KV. 385, foi composta a pedido do pai, para comemoração da nobilitação de Siegmund Haffner, amigo de Salzburg.

Entretanto, é indispensável ter em consideração que vários factos da maior importância tinham acontecido entre as sinfonias de Salzburg e esta que hoje nos ocupa. O compositor não só se tinha mudado para Viena na sequência do seu desaguisado com o Príncipe-Arcebispo, Conde de Collordo, mas também ocorrera a estreia de duas notáveis óperas.

“Idomeneo”, em Munique, fora tão importante que, de algum modo, redefiniria o velho figurino da designada ‘opera seria’. Por outro lado “O Rapto do Serralho” que subiria ao palco, precisamente, no mesmo mês do qual data a sinfonia em questão, Julho de 1782, estabeleceria um marco fundamental para o sucesso do ‘singspiel’ alemão.

Portanto, Mozart acabava de criar as suas duas primeiras obras-primas do canto lírico e a sua confiança com a orquestra, conquistada com estas experiências, tornar-se-ia cada vez mais patente nas obras subsequentes.

A Sinfonia “Haffner”, em Ré Maior, é uma das suas peças mais calorosas, quatro andamentos cheios de génio com um final ‘Presto’ do maior virtuosismo que o compositor indicaria dever ser tocado o mais depressa possível.

Hoje proponho que ouçam e visionem a interpretação da Orquestra do Festival de Luzern, sob a direcção de Claudio Abbado, numa gravação do Verão passado. Certamente, passa a ser uma leitura de absoluta referência.

Boa audição!

 http://youtu.be/4yCYN7WZ_0I
 



[Transcrição do artigo publicado na última edição de 30 de Novembro do 'Jornal de Sintra']

Salzburg,
Getreidegasse*, a incomparável


Na verdade, só muito dificilmente, o assunto não deixaria de surgir à boleia da matér...
ia que vos tenho trazido à consideração nas últimas edições do JS, até porque o seu exemplo foi mesmo suscitado a propósito da Heliodoro Salgado. No entanto, uma advertência inicial se me impõe ao trazer a estas páginas algumas sumárias notas sobre uma das mais conhecidas e movimentadas ruas pedonais de todo o mundo.

Pois bem, tal aviso prende-se com o facto de, pura, simples e infelizmente, não haver a mais remota possibilidade de comparação entre as pedonais de Salzburg e de Sintra. Aliás, é tão escandalosa a diferença que, acreditem, me custa imenso fazer este exercício, que poderia designar, enfim, como de aproximação, se quiserem, entre duas situações cujo semelhança é tão antitética como o ovo e o espeto... Portanto, por favor, não queiram – até porque não podem – a partir destas brevíssimas impressões, encontrar quaisquer elementos afins de hipotética analogia.

Primeiramente, é preciso ter em consideração estar a referir uma rua que faz parte de uma zona imensa, totalmente pedonal, com salvaguarda para viaturas de residentes e prioritárias. Depois de atravessar o rio Salzach, através das Makartsteg, Stadtbrücke ou Mozartweg, as mais movimentadas pontes da cidade, forçoso é atravessar a Getreidegasse para aceder à Altstadt e a todas as mais famosas jóias da cidade baixa e alta, património da humanidade.

Significa isto que os seis milhões de visitantes anuais de Salzburg passam todos pela Getreidegasse e são obrigados a fazê-lo várias vezes por dia… Em qualquer altura do ano esta rua tem um movimento de peões perfeitamente inusitado. Compram, observam as montras, entram e saem de todo o género de lojas, passeiam, escapam-se à direita e à esquerda, pelos mais curiosos acessos, em direcção às ruas paralelas, através de túneis, cheios de lojas, também parte integrante de uma vasta área comercial, altamente requintada que, na maior das informalidades, convive com todo o género de animação urbana.

Vamos lá ver se consigo transmitir-vos uma ideia aproximada do que ali acontece diariamente. Têm presente os nomes das boutiques mais caras e sofisticadas? Em Salzburg não falta nenhuma e, na Getreidegasse, está instalada a maioria. Roupas, perfumes, sapatos, malas, chapéus, peles, chocolates, bebidas, canetas, relógios, de todas as grandes marcas austríacas e internacionais, ali estão sediadas.

Além do comércio multifacetado, também é a rua onde fica a casa-museu onde Mozart nasceu – na Hagenauerhaus – e outros edifícios, carregados de centenas de anos de uma História milenar, que tanto podem ser a antiga Rathaus, uma farmácia estupenda, a casa onde nasceu ou viveu outro grande compositor, a quem a cidade também imenso deve, como Heinrich Ignaz Franz von Biber, ou ainda uma Loja Maçónica bem identificada nos símbolos em alto relevo sobre o portão. E, pasmem, continua a haver gente ali residente.

Tratando-se de uma via com tal cúmulo de características, não surpreende que seja apontada como um dos casos mais importantes, também a nível mundial, como inequívoca reserva de espaço urbano preocupadíssimo com a defesa do património e paradigma de boas práticas neste domínio. Por exemplo, sendo o ferro forjado uma das mais presentes vertentes das artes decorativas da cidade – em especial no cromatismo amplo de gamas de verde, vermelho, amarelo foncé, bordeaux, dourado e prateado – as tais grandes marcas foram obrigadas a adaptar os seus letreiros exteriores à morfologia tradicional, com o mais famoso de todos, o da cadeia MacDonald’s de restaurantes, a destacar-se mesmo ao nível de caso de estudo internacional.

Porém, como em tudo na vida, não há bela sem senão. No Verão, o movimento das pessoas é demais, é incómodo e chega a ser insuportável. Há muitos anos, considerado como um amigo da cidade onde ninguém me encara como turista, também eu aprendi com os meus amigos como evitar a travessia da Getreidegasse, sem perdas de tempo, com voltas escusadas. É paradoxal, mas acontece, haver truques, expedientes, para não sofrer a agressões. Agressões de quê? Pois, de tantos… peões!

Num dos meus anteriores artigos, é verdade, chamei o exemplo da Getreidegasse à colação. Fi-lo, de facto, apenas com a intenção de sublinhar que, há muitos anos, o seu encerramento ao trânsito foi a coisa mais natural, pacífica e barata, nada tendo custado aos cidadãos uma vez que não sofreu a mínima mudança. Repito que, de modo algum, era meu propósito propiciar, insinuar ou, muito menos, promover qualquer comparação. Será que, perante a evidência do meu testemunho, poderei rematar com o clássico QED? Oxalá!

*Getreidegasse é um topónimo que nos remete para ‘Getreide’ = cereal e ‘Gasse’ = travessa, viela.



 
 
Mozart,
Sinfonia No. 34


Nesta sua KV 338, datada de 29 de Agosto de 1780, Mozart adequa-se ao modelo característico das festivas sinfonias austríacas em Dó Maior, recorrendo a uma orquestra de maiores dimensões do que a das obras imediatamente anteriores já abordadas – ao fim e ao cabo, por analogia com a designada ‘Sinfonia Paris’ de 1778 – com 2 oboes, 2 fagotes, 2 trompas, 2 trompetes, timbales e cordas.

O ‘Allegro vivace’ inicial coincide com a forma da sinfonia precedente, KV. 319, em Si bemol Maior, ainda que se tenha desvanecido a tentativa de colagem ao estilo francês. De facto, em vez disso, deparamos com um ambiente enérgico com mudanças constantes de Dó Maior para Mi menor ou Lá bemol Maior.

O andamento seguinte ‘Andante di molto più tosto allegretto’ apenas se sustenta nos fagotes como solução para os sopros solistas, terminando, já em ‘Presto’, numa expressão de grande espírito.

No derradeiro ‘Allegro vivace’ evidenciam-se as secções que adivinhamos terem sido particularmente destinadas aos virtuosísticos sopros vienenses.

Jaap Ter Linden dirige a Mozart Akademie Amsterdam.

Boa audição!
 
 
 
Mozart,
Sinfonia No. 33


Continuando a aceder à obra sinfónica de Mozart, aí temos já a sua trigésima terceira, a Sinfonia em Si bemol Maior KV. 319, datada de 9 de Julho de 1779, escrita ao passar por Salzburg, durante a sua viagem de regresso de Paris para Viena.

O plano inicial apontava para um peça em três andamentos mas, mais tarde, quando já estava em trabalho de revisão (juntamente com a sinfonia subsequente, em Dó Maior, KV 338) Mozart decidiu acrescentar um Minuetto/Trio. Deste modo, obras sinfónicas de características italianizantes, inscreviam-se no novo figurino, ao estilo vienense.

Com uma orquestração muito simples, compreendendo oboés, trompas, fagotes e cordas, o primeiro andamento, ‘Allegro assai’ evidencia traços de um futuro Beethoven, não deixando de ser interessante considerar que este compositor aproveitaria esta atmosfera de abertura da KV 319 como ponto de partida para a sua Sinfonia No. 8.

A continuação da análise muito sumária, remete-nos para o ‘Andante moderato’ seguinte, em Mi bemol, representando um momento de pacífica contenção, com uma recapitulação que evidencia os seus temas principais numa ordem inversa. O ‘Minuetto’ mais tarde acrescentado, lembra-nos influências de Haydn, enquanto que o ‘Allegro assai’ final é muito espirituoso e de refinado humor.

Continuo confiado à interpretação da Mozart AKademie Amsterdam e à direcção de Jaap Ter Linden.

Boa audição!
 

terça-feira, 27 de novembro de 2012

 
Fora do contexto

A propósito do artigo

http://reinodeklingsor.blogspot.pt/2012/11/que-autarquias-iremos-ter.html

da autoria de Fernando Morais Gomes, publicado no seu blogue 'No Reino de Klingsor', no passado sábado, dia 24 de Novembro, escrevi um comentário que, hoje, (vd. Mural de Fernando Morais Gomes) suscitou a Margarida Mota algumas palavras que avalio como descontextualizadas. Cito:
 
"Não gostei mesmo nada desta sua referência às pessoas que vão para a rua fazer figura de corpo presente,João,lamento ter de o informar que as pessoas que foram para a rua no sábado,debaixo de chuva intensa,sabiam muito bem porque ali estavam e o motivo que as levou a arriscar ficar doentes para se fazerem ouvir.Lamento muito que veja tudo sob esse prisma e que esteja a minimizar o valor de quem se manifesta e a valorizar aqueles que «supostamente»fazem estudos que não levam a nada ,nem tem esse objectivo sequer.Como as pessoas mudam,João..."
 
 
Eis a minha resposta:
Cara Margarida,

Lamento que as minhas palavras possam ter sido objecto de descontextualização tão flagrante. Por favor, tenha em consideração que são antecedidas de elementos essenciais no sentido de que a mensagem subsequente não seja interpretada como a Margarida o fez.

No comentário que subscrevi, a propósito do bom trabalho do Fernando Morais Gomes, considerei - ACERCA DE UM PROJECTO DE LEI DO REGIME JURÍDICO DAS AUTARQUIAS LOCAIS E DAS ENTIDADES INTERMUNICIPAIS, QUE A SER LEVADO POR DIANTE PODE VIR A BARALHAR AS RELAÇÔES DE FORÇA ENTRE DIVERSOS NÍVEIS DOS PODERES LOCAIS (FREGUESIAS, CÂMARAS E AS NOVAS ENTIDADES INTERMUNICIPAIS - que as dúvidas que ele formulava eram, e passo a citar as minhas próprias palavras "(...) mais que pertinentes mas, lá está, não vejo nem prevejo que, em sede própria da intervenção cívica, haja quem faça o trabalho de sapa, de estudo, reflexão, debate que a matéria deveria suscitar. Em Portugal, pelo menos no quadro da intervenção cívica, parece haver horror ao estudo. Aliás, goza-se, despreza-se, desconsidera-se o trabalho de estudo que sempre deve ser concretizado a montante de qualquer atitude.(...)"

Só depois deste enquadramento – repito, ACERCA DE UM ASSUNTO ALHEIO ÀS MOTIVAÇÕES QUE LEVARAM AS PESSOAS PARA A RUA NO SÁBADO PASSADO - é que escrevi as outras palavras que a Margarida Mota citou, i.e., “(…) Às tantas, na ausência desse trabalho, indevidamente preparados, mal esclarecidos, os cidadãos ou escrevem os maiores disparates nas redes sociais ou acabam por ir para a rua, fazendo figura de corpo presente em manifestações que, isso sim, deveriam engrossar com o esclarecimento cabal e a lucidez de quem a elas adere. (…)”

Não tenho a mínima razão para alterar uma vírgula que seja às palavras que escrevi, não só as que precedem a sua citação mas também as citadas por si. Penso exactamente assim. Naturalmente, haverá quem considere esta minha opinião como desalinhada, politicamente incorrecta ou algo congénere com que não estou nada, absolutamente nada preocupado. Não mudei absolutamente nada, sempre pensei assim, sabe quem me conhece que assim é.

Na realidade, lamento muito haver quem, não tendo feito o seu percurso individual de esclarecimento, escreva os horrores de primarismo com que deparamos nas redes sociais e que acabe por ir para a rua como «Maria vai com as outras». Na medida em que a intervenção cívica de tais pessoas – destas e não doutras – se limita a uma pobreza tão evidente, é que, em Portugal, a intervenção cívica é tão frágil e inconsequente. Como sabe, num país com os índices de escolaridade que o nosso evidencia, a montante destas atitudes, há escandalosas taxas de iliteracia e de analfabetismo, perfeitamente incomparáveis noutro qualquer país da UE.

Não poderia terminar melhor do que recorrendo ao comentário que Fernando Morais Gomes subscreveu, a propósito das minhas palavras, afinal, exactamente as mesmas que a Margarida considerou tão desconformes. Cito: “ Obrigado pelo seu comentário. Este e outros posts que tenho editado sobre a "reforma" administrativa têm uma intenção didáctica, e a de chamar à discussão de quem os leia, um tema que a todos devia interessar, para que se não tomem partidos só por maniqueísmo partidário e se analise o bom, o mau, o assim assim e a rasteira.”

Que ironia! De facto, nem de propósito. Em relação ao infeliz desentendimento que a minha mensagem suscitou à Margarida, o que o meu amigo Fernando Morais Gomes escreveu acabaria por assumir uma vertente profética que, de imediato se concretizou…
 


Sintra,
nos nossos cuidados


Chamo a vossa atenção para o comentário do meu amigo Fernando Castelo, publicado no facebook, na sequência do meu post “Heliodoro Salgado, ainda por resover, parte II” - artigo também aqui no sintradoavesso - já que a sua leitura é indispensável ao entendimento desta minha réplica. Eis a sua transcrição:

Fernando Castelo Meu caro, como tenho outras preocupações maiores do que a circulação de automóveis na Heliodoro Salgado, entre elas a ameaça de extinção de freguesias com inegáveis prejuízos para os seus habitantes e os mais de 22.560 desempregados para os quais a Câmara Municipal não responde com planos de desenvolvimento, vou colocar um ponto final nesta discussão, por ser estéril.
Essencialmente porque, sendo um inculto cidadão, não estou preparado para “contestar soluções propostas por qualquer pluridisciplinar e presumida equipa técnica”. Eles são técnicos, eu não. Tão pouco imagino que eles se expressassem assim a seu respeito.
Por outro lado, estranho a sua tendência para exagerar a importância da Heliodoro Salgado, inclusive posicioná-la como se tivesse influência relevante na circulação e acesso à Vila Velha.A Estefânia é um bairro lateral, como sabe, embora com passagens de acesso.
A Visconde de Monserrate tem algo a ver com a Estefânia? Nada. O mesmo se diz quanto à área do Lawrence’s.
Como sabe, também quem desce de Chão de Meninos a caminho do Centro Histórico passa ao lado. Quem vem dos lados de Colares e passa na Correnteza, passa ao lado e desvia-se para a esquerda ou direita como sempre. Quem vem de Mem Martins, sim, poderia seguir sempre em frente na Av. Das Forças Armadas em vez de andar às voltas. Mas também não passa pelo interior da Estefânia.
Se na Câmara Pestana, se invertesse o sentido do trânsito- descendo - seria uma excelente medida já que no final cortaria à direita e rapidamente chegaria ao IC16. Diminuiria o tráfego na Correnteza.
Pelo que escreve, o tema esteja a suscitar o interesse local (no caso de automobilistas, estou certo) e ainda bem. Talvez algum dos mentores saiba do fontanário neo-manuelino da Estefânia, de que há 5 anos se espera a recolocação. Um abraço,
 
::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::
 
Sintra,
nos nossos cuidados

 
Meu Caro Fernando Castelo,

para sistematizar a resposta, permita que o faça por temas, respeitando a ordem da apresentação do seu comentário. Assim:

1.Se há coisa com a qual não estou minimamente preocupado, a circulação de automóveis na Heliodoro Salgado é de certeza porque, pura e simplesmente não existe. Seria uma discussão estéril, perda de tempo inequívoca. Posso estar e, de facto, estou preocupado, isso sim, com uma estratégia de remediação para o infernal e labiríntico circuito que foi imposto como alternativa ao encerramento da Heliodoro Salgado, coisa radicalmente diferente. Tal estratégia, muito naturalmente, pressupõe o debate que for conveniente concretizar;

2.Para que dúvida alguma subsista, vejo-me na obrigação de citar os dois parágrafos finais do texto que o meu amigo teve a gentileza de comentar:

“(…) A exemplo do que aconteceu na Primavera de 2004, parece impor-se a necessidade de a designada sociedade civil promover umas novas Jornadas de reflexão sobre problemas da Estefânea em que, para além do cidadão comum, se possa ouvir a opinião de urbanistas, arquitectos, sociólogos e outros peritos. Saibamos adquirir as mais correctas noções de equacionamento das alternativas, sempre na perspectiva de que a Heliodoro salgado faz parte de um puzzle compósito e complexo, nunca como caso isolado.
Certamente que, também por essa via, tanto os cidadãos como os próprios decisores políticos locais, ficarão mais bem preparados para contestar soluções propostas por qualquer pluridisciplinar e presumida equipa técnica que, ao conceber uma estratégia de remediação para a situação da Heliodoro Salgado e do labirinto subsequente, volte a invocar, como patrona, a Nossa Senhora da Asneira de Sintra...”

E, depois da citação, apenas confirmar que tudo se passa no futuro, aliás, como é fácil constatar. Repare, e, sublinho “(…) qualquer pluridisciplinar e presumida equipa técnica que, ao conceber uma estratégia de remediação para a situação da Heliodoro Salgado (…)”. Portanto, como ainda não há qualquer estratégia de remediação, eu só podia estar a pensar no futuro, ou seja, se e quando qualquer equipa conceber um qualquer plano afim. Nessa altura, depois de todo o esclarecimento que se impuser, todos estaremos mais aptos a contestar ou a sancionar positivamente a sua qualidade e pertinência. Portanto, que não subsista qualquer ideia de que me estaria a referir aos técnicos e aos decisores autárquicos que nos deixaram como herança este lindo estado de coisas. É que, relativamente a esses, já me pronunciei oportunamente;

3.Autorizará o meu amigo que, neste derradeiro ponto, me pronuncie quanto a todas as considerações subsequentes ao segundo parágrafo do seu texto, já que observam a mesma e única unidade temática. E faço-o, muito sucintamente, apenas confirmando que o meu artigo observa uma perspectiva integrada de análise. Pois bem, nesse contexto, se o encerramento da Heliodoro Salgado provocou efeitos no tráfego de pessoas e mercadorias, quer a montante quer a jusante, então a aludida estratégia de remediação não pode deixar de contemplar toda essa rede de consequências. Mais, é nesse contexto de integração que as soluções terão de contemplar as outras medidas pelas quais me bato há tanto tempo, i.e., instalação dos parques periféricos e rede de transportes «integrada», encerramento ao tráfego de outros segmentos como será o caso da Volta do Duche, regime de cargas e descargas escrupulosamente observado, tolerância zero à prevaricação.

É por tudo isto que temos lutado. Como há tanto que fazer, é por tudo isto que se impõe continuemos a lutar, significando isto uma intervenção cívica a favor do bem de Sintra e nunca contra seja quem for.

Um abraço cúmplice
 
 

segunda-feira, 26 de novembro de 2012


Heliodoro Salgado,
ainda por resolver
[Parte II]

 


[Eis a Parte II do artigo publicado na edição de 23.11.12 do 'Jornal de Sintra'. De tal modo o assunto suscita o interesse local que já se pensa em organizar uma jornada de reflexão a exemplo do que aconteceu em 22 de Março de 2004. Não se pode perder mais tempo.]


"Ainda pior que o quadro precedente é o da Rua Capitão Mário Alberto Soares Pimentel que, para todos os efeitos, também faz parte da denominada zona pedonal da Estefânea. Trata-se de uma via tão inqualificável e já esquecida como afecta a peões, que nem vale a pena prosseguir com qualquer descrição a qual sempre ficaria aquém da dura realidade.

Entretanto, importa ter em consideração que, no âmbito da designada requalificação/reabilitação urbana da Estefânea (Projecto de 1999/2000) a outra parte intervencionada da Avenida Heliodoro Salgado não teve melhor sorte. Embora o paralelepípedo seja solução bem mais interessante que a dos mosaicos cinzentões, mais uma vez se verifica que, em termos técnicos, foi tão mal concretizada que, mesmo após uma tentativa de remediação, prevalece o perfil ondulante do pavimento, com as viaturas a baterem com o chassis na pedra…

Outro é o problema resultante da existência de um separador, entre as faixas ascendente e descendente, cujas dimensões suscitam dificuldades de circulação aos veículos pesados de transporte público. E a rotunda, com um jogo de água tão mal amado, que qualquer tentativa de o fazer funcionar resulta em inesgotável corrente de espuma gerada por detergente estrategicamente adicionado?
Não parece, mas foi possível que, no contexto da tal requalificação/reabilitação, não se tivesse aproveitado a oportunidade para: 1. equacionar a hipótese de operacionalizar a articulação do Centro Cultural Olga Cadaval e Casino com o parque de estacionamento adjacente ao edifício do Departamento de Urbanismo da CMS na Portela, a dois minutos de percurso a pé, solução esta que, com a anulação da ponte metálica, tudo comprometeu; 2.dotar o CC Olga Cadaval com o adequado dispositivo de cais de cargas e descargas em falta desde a alteração do edifício; 3. viabilizar um circuito expedito que permitisse o acesso dos veículos pesados transportando boas produções de ópera, bailado, circo, etc, que poderiam promover a viabilização económica do empreendimento.

Enfim, um encadeado de infelizes circunstâncias indissociáveis da análise do caso Heliodoro Salgado. É neste quadro, aliás, que cumpre perceber o que é feito dos veículos que transitavam pela artéria e que passaram a fazer os circuitos alternativos.
 

A montante e a jusante, onde anda ou pára o trânsito?

Para minha maior surpresa, ainda há quem consiga afirmar que, após o encerramento ao trânsito de viaturas, nunca mais houve as filas intermináveis desde Chão de Meninos até à Estefânea e a caminho da Vila, para aceder ao centro histórico. Mas, pergunto eu, será possível que a tais pessoas escape a evidência daquilo que, actualmente, de acordo com a sazonalidade dos afluxos, está a acontecer?

Abramos o compasso da análise e consideremos o que sucede a quem, vindo de Chão de Meninos, do IC 16 – via Lourel ou Tribunal – ou de Colares, pretenda aceder à Vila, durante os grandes feriados ibéricos, na Semana Santa, no Verão, nos fins de semana em geral e nos dias úteis, em hora de ponta. Comecemos por acompanhar os condutores que descem a estrada até ao Largo Afonso de Albuquerque e deixemo-los aí aguardando pelo nosso regresso, porque, tal como nós, neste exercício de análise que leva algum tempo, também eles vão ser obrigado a esperar.


Entretanto, vamos até à Portela onde, junto ao jardim, começou a acumular-se o trânsito, com o acréscimo do proveniente de Mem-Martins, exactamente porque, mais adiante, a rotunda fronteira ao apeadeiro da Portela, já está entupida de viaturas provenientes do IC16. Então, o que se passa? Neste local, a fila que, não raro, se inicia a meio da Av. General Firmino Miguel, vai subir a Av. Desidério Cambournac, descer até à rotunda da fonte cibernética, voltar a engrossar com o fluxo proveniente das estradas do Lourel e de Colares, chegando a deter-se na Rua Câmara Pestana, junto ao Centro Cultural Olga Cadaval.
A partir deste local, continua-se num pára e arranca, em fila que acrescenta os veículos provenientes da Rua António Medina Júnior, se prolonga pela Correnteza, mais engrossa no cruzamento com os provenientes de Chão de Meninos. Lembram-se de, há um par de parágrafos atrás, termos deixado uns desgraçados à espera? Pois é aqui que voltamos a encontrá-los, engrossando a fila que prossegue pela Alfredo da Costa, etc, etc.
Stresse institucionalizado

Até este ponto da Estefânea, já considerámos o que é habitual e comum, tanto nos dias de lazer como nos de trabalho. Daqui em diante, pensemos apenas nos forasteiros, turistas e nos condutores da volta dos tristes. Coitados!... Trânsito totalmente entupido no acesso à Vila, parado, paradíssimo, não conseguindo avançar na confluência da Visconde de Monserrate – onde quem provém de São Pedro e Santa Maria já desesperou - e, um pouco adiante do Lawrence's, incapaz de prosseguir à esquerda, quer para aceder à Pena, quer para continuar para São Pedro e Chão de Meninos, com os condutores e acompanhantes, nacionais e estrangeiros, suportando aquilo que não podem nem devem numa latitude civilizada.

Diariamente? Quanto desconforto, quanta irritação, dinheiro e tempo perdido, quanta poluição acrescentada, quanta dificuldade para quem, proveniente de Cascais ou de Lisboa, pretenda chegar, por exemplo, ao Centro Cultural Olga Cadaval, à igreja de São Miguel, aceder a Monte Santos, ou à Escola D. Carlos I e Bombeiros, obrigado a atravessar este labirinto insano?! É tão enovelado o circuito que, aliás, se torna impossível verbalizá-lo em tempo útil, quando alguém precisa…

Em conclusão, as filas continuam, e de que maneira! E, já agora, ainda no contexto da aludida análise sistémica afim do diagnóstico da situação, não é difícil adiantar que uma das soluções a concretizar, em articulação com a requalificação das pequenas bolsas de parqueamento e da unidade pesada, prevista para o estacionamento de centenas e centenas de veículos, adjacente ao edifício do Departamento do Urbanismo, passará pela cada vez mais inadiável instalação dos parques periféricos.

Soluções

De acordo com aquilo que, durante tantos anos, tenho tido oportunidade de ventilar, urge implantá-los estrategicamente, junto às três entradas da sede do concelho, em Chão de Meninos, na Ribeira e no Lourel, dispositivos estes em íntima relação com os transportes públicos – que, no caso dos dois primeiros referidos, incluiriam funiculares com linhas complementares para acesso à Pena e regresso - dali saindo a caminho dos diversos destinos, transportes de tarifa integrada na verba a cobrar no momento do estacionamento. Sei que se trata de soluções já equacionadas cuja concretização, muito naturalmente, depende da disponibilidade financeira.

Lamento profundamente que, ao tempo em que tal disponibilidade se oferecia, os decisores políticos não tivessem estado à altura. Despenderam noutros domínios, porventura não tão estruturantes, as verbas que deveriam ter afectado a um projecto de contornos análogos, tão indutor de uma evidente melhoria da qualidade de vida dos residentes, facilitador dos acessos de visitantes e suscitando as consequentes mais-valias noutros contextos da actividade económica e cultural local. Agora, em tempo de vacas magras, bem pode opinar quem não soube dar resposta aos desafios do tempo.

Há alternativas? Claro que há. E sempre a favor dos peões. Basta conceber um projecto com todos os implícitos pressupostos, no qual, desejavelmente, todos possamos participar e intervir, nos termos do qual nos revejamos, como munícipes sintrenses e fregueses de Santa Maria e São Miguel, de São Pedro e de São Martinho.

A exemplo do que aconteceu na Primavera de 2004, parece impor-se a necessidade de a designada sociedade civil promover umas novas Jornadas de reflexão sobre problemas da Estefânea em que, para além do cidadão comum, se possa ouvir a opinião de urbanistas, arquitectos, sociólogos e outros peritos. Saibamos adquirir as mais correctas noções de equacionamento das alternativas, sempre na perspectiva de que a Heliodoro salgado faz parte de um puzzle compósito e complexo, nunca como caso isolado.
Certamente que, também por essa via, tanto os cidadãos como os próprios decisores políticos locais, ficarão mais bem preparados para contestar soluções propostas por qualquer pluridisciplinar e presumida equipa técnica que, ao conceber uma estratégia de remediação para a situação da Heliodoro Salgado e do labirinto subsequente, volte a invocar, como patrona, a Nossa Senhora da Asneira de Sintra...

 



Heliodoro Salgado,
ainda por resolver
[Parte I]



[Mais uma vez, um assunto que, só na aparência, pode ser entendido como restrito ao local. A exemplo do que tenho tentado evidenciar, a análise sistémica da questão faz-nos concluir que, muito naturalmente, o caso tem incidências a montante e a juzante. Eis a transcrição parcial do texto publicado na edição de 16.11.12 do 'Jornal de Sintra'.]



"(...) Naturalmente, recuso a ideia de, tão só, me deter no caso Heliodoro Salgado – cuja transformação em espaço pedonal não está em causa – na medida em que isso constituiria um afunilamento incompreensível em relação à metodologia de abordagem que tenho observado, que sempre privilegia uma análise sistémica.
(...) se bem se lembram, uma das questões focadas que, neste momento, mais me convém evidenciar, reportava-se à dificuldade com que se processam alguns fluxos de trânsito no coração da sede do concelho. Difícil seria deixar de replicar sem recorrer à estafada, mas eficaz, analogia entre a circulação sanguínea e os fluxos de pessoas e mercadorias nos circuitos urbanos.

De facto, como as avenidas, ruas e travessas obedecem à coerência e lógica do quadro fisiológico, claro está que a introdução na circulação de qualquer obstáculo – como foi o corte de uma artéria com a importância da Heliodoro Salgado – promoveu a mais significativa perturbação, induzindo uma lógica outra, com inevitáveis consequências ao nível da fluidez do trânsito das pessoas e mercadorias, quer a montante, quer a jusante.


Uma coisa é certa, ou seja, uma vez que tudo se modificou, preciso era encontrar uma solução que, sensivelmente, melhorasse as condições de operacionalidade do tráfego local. Ora bem, foi isso que, de modo algum aconteceu. Ao fechar a via, avançou-se para um labirinto de irracionalidades com efeitos nocivos a vários níveis.

Por isso, ao fazer um diagnóstico de situação, na perspectiva da análise sistémica, logo salta à vista que, ao tempo do encerramento da rua, as interdependências e as interacções seriam muito mais fortes e evidentes do que, em princípio, se terá concluído. Julgo que, com alguma precipitação, se fechou a Heliodoro Salgado, não cuidando das consequências de uma intervenção de tal escala, numa zona tão crítica da urbe. O resultado está à vista.
Pedonal mas sem peões...

A zona pedonal da Heliodoro Salgado está muito afectada, talvez ferida de morte desde o início. Além de esteticamente polémico, o projecto terá sido concretizado com manifestas e lamentáveis deficiências técnicas, num cúmulo de circunstâncias tão negativas que, consequente e infelizmente, jamais se poderá comparar com os espaços análogos que conhecemos noutros contextos nacionais e lá por fora.

A propósito de comparações e, a título de mero exemplo, apenas um parêntesis para breve nota a lembrar que, dentre as zonas pedonais mais famosas e sofisticadas do mundo, a Getreidegasse de Salzburg, é uma simples rua, com passeios laterais e tudo, como qualquer outra, onde automóveis e camions podem aceder e circular nas horas autorizadas para cargas e descargas, em que nada, absolutamente nada, foi alterado em relação ao espaço inicial, sem qualquer mobiliário urbano. Haverá solução mais corriqueira e tão barata?

Findo o parêntesis, volto à Heliodoro Salgado. Aqui, a imagem que me ocorre é a do sarcófago– imagem a que o meu querido e saudoso amigo Bartolomeu Cid dos Santos ripostava com a sua de necrópole… – que, desgraçadamente, já ceifou alguns dos comerciantes locais ali instalados ao tempo da alteração, depois de terem sido condenados à mais lenta das mortes. E, paradoxo dos paradoxos, cumulativamente, lida-se com a bruta evidência da gritante falta de gente a circular na artéria. [Hoje, terça feira, pelas dez e meia da manhã, contei onze pessoas atravessando-a sem se deterem.].


Então, na via liberta de automóveis, os peões conversando, convivendo, não era, precisamente esse, o grande objectivo do projecto?... E, como não, se nada convida à permanência? E, como não, se o pavimento chega a ser perigoso, com um historial bem recheado de episódios de valentes trambolhões? E, como não, se, em dias de chuva, devido à indesejável mas perversamente conseguida impermeabilização do referido pavimento, se formam linhas de grossa água que encharcam os pés de quem, contrariando a enxurrada, se aventure a subir a rua? E, como não, se o espaço conquistado para os peões é nitidamente inóspito, desagradável, cinzentão, nada tendo a ver com quaisquer conotações com os paradigmas de Sintra?

(Continua)