[sempre de acordo com a antiga ortografia]

domingo, 29 de julho de 2012

 
 
 
[Texto publicado no Jornal de Sintra em 27 de Julho de 2012]

Dr. Saraiva
mais um testemunho


Embora já o conhecesse de vista, porque morávamos não muito longe, só a meio da década de sessenta, quando estava a terminar o secundário, é que tive o ensejo de contactar com ele. Andava eu já no último ano do Liceu, no D. João de Castro, ao Alto de Santo Amaro – escola agradável, simpática, tranquila, conhecida até por uma certa liberalidade de costumes, em particular, vejam lá, por ser um liceu misto, com meninas frequentando os sexto e sétimo anos – quando o Dr. Saraiva foi indigitado e assumiu as funções de Reitor.

As novidades não se fizeram esperar. Pouco depois, autorizava ele o funcionamento de uma Pró-Associação de Estudantes, coisa que, repito, precisamente a meio dos anos sessenta, era mesmo excepcional. Igualmente excepcional e, de algum modo, em atitude que lhe terá sido cara como homem da comunicação, o despacho favorável do projecto de um programa de rádio que, de imediato concretizado, emitia muita música durante o intervalo maior do turno da manhã, através de altifalantes dispersos pelos corredores e pátios.

Carismático

Foi numa certa manhã do princípio do segundo período lectivo em que, tendo faltado a professora de Português, o Dr. Saraiva nos entrou pela sala de aula, completamente de surpresa. Rapidamente, quebrou o gelo inicial. Pouco depois, sobre mim, o único elemento masculino daquela turma de Filologia Germânica, senti o seu olhar penetrante. De pé, com a cabeça bem erguida, agigantando-se a reduzida figura sobre o estrado:

“Como é que vocês aguentam isto?! Que frio de rachar! Nem tiro a gabardina! Ó rapaz, toma lá a chave, vai lá abaixo ao meu gabinete, procura a "Mensagem" do Pessoa, em cima da secretária – não podes enganar-te, é uma encadernação muito boa, a carneira verde, que logo te salta à vista – e traz-ma para podermos trabalhar”. Tão sintomaticamente quanto quiserem entender, ao expressar o pedido, que era uma ordem, segurava o cigarro 'Marlboro' com todos os dedos da mão direita. Claro que o rapaz era eu, o chefe, pois claro que, por aqueles dias, onde houvesse um galo, não cantavam as galinhas...

Cumpre esclarecer que, da "Mensagem", tinha eu uma opinião muito verde, tão imberbe quanto os meus dezasseis anos. O Caeiro e o Campos, esses sim, correspondiam ao Pessoa que eu amava, enquanto o ortónimo, o da Mensagem, esse achava-o eu cinzentão, nacionalista. Pois o Saraiva, sabendo perfeitamente para quem falava, parecendo adivinhar as reservas de todos os que pensavam como eu, dissipou os preconceitos que toldavam o entendimento da obra, restituindo o direito a uma leitura enxuta.

Em meia hora conquistara-nos. Estávamos rendidos ao seu feitiço. De facto, embora habituados a privar com bons e alguns excelentes professores, o que nem eu nem as minhas colegas estávamos habituados era àquele autêntico espectáculo, em que as linguagens verbal, facial, gestual e corporal compunham uma figura fascinante. Apenas uma colega destoava quanto à impressão geral causada pelo Dr. Saraiva naquela turma de finalistas pré-universitários. Inapelavelmente, há quase cinquenta anos, logo o classificou: – Demagogo!, disse ela.

Eficaz

Passariam apenas umas poucas semanas para que, muito directamente, viesse a perceber como o Dr. Saraiva levava a sério e não protelava qualquer assunto que exigisse o exercício da autoridade que lhe competia como Reitor. Conto muito rapidamente. A professora de Português, cuja falta originara a tal aula de substituição, era tão fraca docente e faltava tanto que suscitou um inusitado movimento da nossa turma. Chegámos à conclusão de que, pura e simplesmente, não poderia continuar a ser professora de alunos que, dentro de poucos meses, teriam de enfrentar duras provas de exames de Português e de Literatura Portuguesa, inclusive de acesso à Faculdade de Letras.

E, arvorados à condição de delegados da turma, para falarem com o Reitor acerca da melindrosa questão, lá foram o chefe e uma colega. Infelizmente, não disponho de espaço para entrar em detalhes. Contudo, fiquem sabendo que, em quarenta e oito horas – estão a ler bem, sim senhor – dois dias depois, tínhamos uma nova professora! Nem por um segundo pôs o Dr. Saraiva em causa a seriedade da nossa denúncia que, a um tempo, era tão desconfortável e tão digna, pela exigência da qualidade do ensino a que tínhamos direito. Certamente, certificou-se ele das nossas razões. E, sem qualquer alarde, actuou. Escolhida pelo Dr. Saraiva, a substituta era magnífica. Fez-nos trabalhar o que não podem imaginar. Recuperámos tudo o que era necessário e entrámos na Faculdade preparadíssimos para os estudos universitários.

 Visionário
 

Agora, continuando na primeira pessoa, o meu testemunho salta até ao fim da década de setenta, quando já era Técnico Superior do Ministério da Educação. Não tardou muito para que tivesse de me debruçar sobre o maior projecto editorial português, a designada 'Colecção Educativa', privilegiado instrumento do Plano de Educação Popular, a cargo do Ministério da Educação Nacional, primeiramente, através da Direcção-Geral do Ensino Primário e, mais tarde, pela Direcção-Geral da Educação Permanente.

Naturalmente, tinha as características de um produto da última fase do Estado Novo. E, tanto assim era que, antecedendo a página de rosto de todos aqueles livros, que se contavam por muitas e muitas centenas de milhar, havia citação de um discurso de Oliveira Salazar. Todavia, quem concebera o projecto –nem mais nem menos do que o Dr. Saraiva, então Ministro da Educação do último gabinete do ditador – pedira e obtivera a colaboração de insuspeitos nomes das Letras e Ciências portuguesas, tais como, entre muitas dezenas de notáveis, José Régio, Vitorino Nemésio, Matilde Rosa Araújo, Tomás Ribas, Ana Hatherly, Henrique Barrilaro Ruas, Rómulo de Carvalho, etc, etc.

A 'Colecção Educativa' pretendia ser um grande veículo de divulgação do Saber, capaz de chegar às camadas populares menos letradas e, sem compromisso de qualidade, abranger a esmagadora maioria das áreas do conhecimento. Nalguns casos terá conseguido, noutros resvalaria para uma perspectiva paternalista. Mas, dos referidos Plano e Colecção, o que prevalece é a concepção de um visionário, de um divulgador visionário, de um homem que, mais tarde, ao fim e ao cabo, em plena vigência do regime democrático, se notabilizaria não como historiador mas como divulgador, um eficientíssimo divulgador da História.

Então, a sua atitude durante a crise académica de sessenta e nove, que também vivi? Bem pode dizer-se que se tratou de uma crise dentro de um sistema que era «a crise» institucionalizada... Ficam para outra ocasião as minhas histórias desses dias. Chegado ao fim da vida, José Hermano Saraiva confessava o seu maior defeito a Fátima Campos Ferreira, que lhe colheu a última entrevista. Reconheceu-se como um petulante, nem mais nem menos, tal qual lhe apontava o notabilíssimo e tão saudoso Prof. António José Saraiva, seu irmão. Saraiva, o petulante? Ou, com essa confissão e reconhecimento, mais uma lição de alguém que foi professor até ao fim?


domingo, 22 de julho de 2012


quarta-feira, 18 de julho de 2012

 
 
 
=NOTÍCIA DE ÚLTIMA HORA=
 

 PARQUES DE SINTRA MONTE DA LUA, ESTUPENDO EXEMPLO DE SUCESSO NA GESTÂO DOS MAIS SOFISTICADOS BENS DO PATRIMONIO EDIFICADO NACIONAL.

É com o maior prazer que passo a divulgar uma notícia que acabo de receber destes meus amigos a quem estão confiadas as maiores riquezas do concelho. Claro que, desde já, lhes envio os meus mais sinceros parabéns. 
 
Palácios Nacionais de Sintra e Queluz e Escola Portuguesa de Arte Equestre passam a ser geridos pela Parques de Sintra – Monte da Lua

Sintra, 18 de Julho 2012

– Foi hoje aprovado em Conselho de Ministros o Decreto-Lei que entrega à Parques de Sintra – Monte da Lua, S.A. (empresa de capitais públicos) a gestão do Palácio Nacional de Sintra e do Palácio Nacional de Queluz, bem como a da Escola Portuguesa de Arte Equestre.

Com esta decisão, a Parques de Sintra passará a ser responsável pela salvaguarda, valorização e divulgação destes dois importantes polos culturais, à semelhança do que já acontecia com o Parque e Palácio da Pena, Castelo dos Mouros, Parque e Palácio de Monserrate, Convento dos Capuchos e os recentemente recuperados Chalet e Jardim da Condessa d’Edla.

A Parques de Sintra não recorre ao Orçamento do Estado, pelo que a recuperação e manutenção do património que gere são asseguradas pelas receitas de bilheteiras, lojas, cafetarias e aluguer de espaços para eventos. O Conselho de Administração da Parques de Sintra seguirá, nos novos palácios, a política de gestão que tem utilizado com sucesso nas outras propriedades do Estado que tutela, procurando, através de investimentos que permitam a sua valorização, atrair mais visitantes e receitas, e continuar a salvaguardar o património de forma contínua e crescente.

No caso dos Palácios de Sintra e Queluz, a Parques de Sintra compromete-se a entregar anualmente ao Estado (à Direção Geral do Património Cultural), a receita líquida de bilheteiras e lojas apurada em 2011 e, também, 10% do aumento de receitas que conseguir em relação a cada ano anterior. Este novo modelo de gestão assegura que o Estado não só deixa de ter encargos com os palácios, como mantém as receitas que deles retirava e partilhará a subida de receitas que a Parques de Sintra alcançar.

António Lamas, Presidente do Conselho de Administração da Parques de Sintra – Monte da Lua, considera que “esta é uma prova de confiança e visão estratégica por parte do Governo, que demonstra o reconhecimento da qualidade do trabalho efetuado pela Parques de Sintra até ao momento, mas também um grande desafio e esforço para a empresa, que deverá realizar os investimentos nestes palácios, que há muitos anos não eram realizados, e mantê-los, com 90% do aumento das receitas que conseguir. Isso dependerá de mais visitantes, que a animação e divulgação comum dos polos culturais de Sintra permitirá, e de uma gestão eficaz, tirando partido da experiência adquirida e da capacidade técnica das equipas da empresa.”

Entre algumas das medidas previstas, que representam os benefícios de uma gestão empresarial conjunta, encontra-se a venda de bilhetes combinados para os vários parques e monumentos, o estabelecimento de circuitos turísticos que liguem todos os polos culturais geridos pela empresa, a promoção conjunta dos mesmos juntos dos diferentes públicos-alvo, e uma maior facilidade e rapidez na realização de obras de beneficiação e restauro que um estatuto empresarial permite.

Quanto à Escola Portuguesa de Arte Equestre, sediada nos Jardins do Palácio de Queluz, que era um departamento da Fundação Alter Real, o desafio consiste em realizar, de forma mais dinâmica, eficaz e sustentável, a sua principal missão, que é contribuir, através do treino e exibição, para a promoção do cavalo lusitano de Alter. Com a sua transferência para a Parques de Sintra, o Estado e a Fundação deixarão de ter encargos com a manutenção da Escola, para o que a empresa deverá reabilitá-la e dar-lhe maior projeção, promovendo a sua atuação mais alargada e intensa, sobretudo no eixo turístico de Sintra-Queluz-Belém.

No Palácio Nacional de Sintra, para além da recuperação e abertura ao público dos jardins envolventes, as primeiras prioridades são a promoção da sua visita e divulgação de forma articulada com a dos palácios e parques geridos pela Parques de Sintra, e a melhoria das condições de acolhimento de visitantes, nomeadamente instalando pontos de repouso e cafetarias que permitam visitas mais prolongadas e agradáveis.

O Palácio Nacional de Queluz requer obras de restauro de interiores, coberturas, fachadas e jardins, algumas urgentes, para o que é indispensável o recurso a fundos europeus. Como no Palácio de Sintra, é também necessário instalar em Queluz infraestruturas que permitam acolher melhor os visitantes e tornar mais atraente a sua estadia. Para incrementar o número de visitas a este palácio é prioritário integrá-lo em circuitos turísticos que envolvam o acesso aos vários valores culturais oferecidos em Sintra

A recuperação das instalações e a preparação de novos espaços para atuação da Escola Portuguesa de Arte Equestre em Queluz são prioritárias, assim como é urgente criar condições para que possa oferecer espetáculos em Bélem, zona de tradições equestres e a mais visitada do país.

A Parques de Sintra herdará os contratos de fornecimento e manutenção existentes nestas instituições, e os colaboradores que nelas operam atualmente poderão celebrar com a empresa contratos normais de trabalho ou acordos de cedênciade interesse público, mantendo o regime decorrente da relação jurídica de emprego público de que sejam titulares.
 
 
 

sexta-feira, 13 de julho de 2012





Sintra,
Museu Nacional da Música?

[Texto publicado ne edição de hoje do Jornal de Sintra]


As instalações do antigo Casino de Sintra, contíguas ao centro Cultural Olga Cadaval, são de tal modo interessantes e importantes para a comunidade local, concelhia e, inclusive, a nível nacional, que se compreende perfeitamente o extremo cuidado com que a autarquia estará a perspectivar o seu futuro.

Se, de facto, o tempo urge, impondo-se apresentar uma solução a contento, por outro lado, cumpre estudar todas as hipóteses que se perfilem, evitando o risco de qualquer precipitação capaz de comprometer a viabilidade do dispositivo cultural em apreço.           

Uma vez terminado o protocolo que a Câmara Municipal de Sintra mantinha com a Fundação Berardo – que levou à constituição do agora esgotado projecto do Sintra Museu de Arte Moderna(1) – há quem considere que já seria tempo de tudo estar definido e definitivamente resolvido. Em posição mais prudente, na qual me integro, outros advogam a necessidade  de esgotar todas as sugestões  que têm surgido de vários quadrantes, consoante os mais diferentes interesses.

A propósito deste mesmo assunto, como estarão recordados os meus habituais leitores do Jornal de Sintra, na edição de 20 de Abril, tive oportunidade de avançar com uma proposta relativa  à possibilidade do funcionamento de um novo e diferente Museu de Arte Contemporânea que, ao fim e ao cabo, capitalizaria os créditos do importante trabalho ali desenvolvido durante década e meia. Com especial relevância, era avançada uma nova vertente de actuação privilegiando a articulação preferencial com prestigiadas escolas de artes plásticas nacionais e estrangeiras.

Museu crucial

Todavia, num momento em que ainda se acolhem propostas pertinentes para estudo subsequente, venho novamente à liça, não para desistir ou dar de barato a ideia anterior mas, isso sim, no sentido de acrescentar outra alternativa e suscitar uma reflexão que se me afigura tão equacionável quanto igualmente indispensável. Muito directa, objectiva e claramente, reporto-me à possibilidade da instalação do museu Nacional da Música no edifício do antigo Casino.

Aliás, quero acreditar que, como soe dizer-se, sempre em cima do acontecimento, o Prof. Fernando Seara até já é capaz de ter considerado esta hipótese. De facto, inevitavelmente, o Presidente da Câmara sabe que o Museu Nacional da Música está escandalosa e indignamente alojado na estação do metropolitano de Lisboa do Alto dos Moínhos. E, sempre muito bem informado, também saberá que poderia estar de malas aviadas para Évora não fosse a malfadada crise.

Aqui chegados, cumpre esclarecer que, em Maio de 2010, ainda em tempo que se julgava de vacas gordas, o governo de então pensou sediar o Museu Nacional da Música em Évora, mais precisamente, no Convento de São Bento de Cástris. Infelizmente, porém, tal iniciativa não se afigura sequer minimamente praticável.  Na realidade, tão lastimoso é o seu estado de conservação que a recuperação, sempre extremamente morosa, ao longo de vários anos, há-de traduzir-se num seríssimo investimento de muitos milhões.

Évora impraticável

A atestar a veracidade destas considerações, reparem que apenas uma pequena campanha de obras, por um período de seis meses, para mitigação da degradação do edifício, foi orçada em duzentos e vinte mil Euros… E ainda tenham em consideração que, questionado pela Lusa, em 12 de Março deste ano, Francisco José Viegas, Secretário de Estado da Cultura, foi peremptório ao afirmar que “(…) o processo está claramente bloqueado (…) pela necessidade de fazer muitas obras”.

E, para que não haja veleidades, a Directora Regional da Cultura do Alentejo, embora fervorosa adepta da solução, mas ainda mais cautelosa que o governante, adiantou ainda que, independentemente da transferência do Museu Nacional da Música, está em cima da mesa a hipótese de "uma pequena comunidade de monges, do Brasil", da ordem beneditina, poder vir a instalar-se numa parte de São Bento de Cástris…

Mas, permitam-me um parêntesis para colocar a questão: sabemos a que acervo nos estamos a referir? Pois trata-se de uma das mais ricas colecções da Europa com cerca de 1300 instrumentos musicais, na sua maioria de origem europeia, séculos XVI a XX. Instrumentos afro-asiáticos de tradição erudita e popular também constam do seu acervo, sendo de realçar os de etiqueta portuguesa, como o cravo de Joaquim José Antunes (1758), os violinos e violoncelos de Joaquim J. Galrão, as guitarras de D. J. Araújo e as flautas da família Haupt. Pelo seu valor e raridade merecem destaque outros instrumentos europeus, o cravo de Pascal Taskin construído em 1782 para o Rei D. Luís XVI de França, o piano (Boisselot & Fils) que Franz Liszt trouxe de França em 1845, o oboé de Eichentopf, os cornes ingleses de Grenser e de Grunman & Floth ou o violoncelo de António Stradivari que pertenceu e foi tocado pelo rei D. Luís. Conta também com importantes espólios documentais e acervos fonográficos e iconográficos.

Nestas condições, perante a actual e próxima futura escassez de recursos afins de tão vultuoso investimento, difícil não será adivinhar que Museu Nacional da Música, em São Bento de Cástris, enfim, já foi… E, assim sendo, será  admissível que o sofisticado espólio do museu possa ficar condenado a permanecer naquele enquadramento do metropolitano, numa solução de perfeito e acabado terceiro mundo? E, ainda por cima, quando se dá a feliz circunstância de poder resolver a questão da melhor maneira e em tempo útil?

Adiar? Com que argumento?

Claro que não. Ora bem, neste adverso contexto à transferência do Alto dos Moínhos para paragens alentejanas, por muito simpática que se nos apresente tal possibilidade, eis que – na estafada mas conhecida expressão tão cara a certos decisores políticos – se apresenta a janela de oportunidade de Sintra. Não será preciso acrescentar seja o que for para se perceber que estamos todos a pensar na mesma coisa, ou seja, no nobre edifício da Heliodoro Salgado, traçado pelo Arq. Norte Júnior.

Tantas e tão manifestamente positivas são as características e vantagens daquelas instalações, quer ao nível do espaço quer do seu enquadramento, no coração da sede do concelho, num dos locais de maior visibilidade e acessibilidade, chega a parecer impossível tal solução exista de verdade e esteja disponível… E fiquem sabendo que o simples facto de ter começado a partilhar a ideia, em determinados círculos e circuitos culturais, acabou por suscitar enorme mas, afinal, natural interesse.

Indubitavelmente, Sintra tem recentes e remotas razões para justificar a pertinência de acolher um Museu Nacional da Música. Teria de remontar ao século dezasseis e, desde então, sem dificuldade, até aos nossos dias, para encontrar manifestos de prática musical erudita e noutros domínios caros aos estudos musicais. Só para deixar duas referências inquestionáveis, lembraria que, de algum modo, Alfredo Keil e Carvalho Monteiro, figuras tão presentes na memória de Sintra, estão indissociavelmente ligados à remota génese do Museu da Música.

Sonho? Incontornável…

Acrescentaria ainda, sem grande margem de erro, que, actualmente, apenas Sintra pode disponibilizar efectivos meios de concretização de tal projecto, com a evidência de uma qualidade que ninguém terá dificuldade em reconhecer em solução tão declaradamente defensável. Evidentemente, animado pela viabilidade da instalação que, em íntima articulação com o Centro Cultural Olga Cadaval, se apresentaria como caso perfeitamente único a nível nacional, desde já gostaria de partilhar convosco a proposta  de considerar, na estruturação do futuro museu, a existência de dois núcleos museológicos  que, em Sintra, não poderiam deixar de estar presentes: um, afecto ao Festival de Sintra e o outro à ímpar figura tutelar de mecenas cultural, da música em especial, que foi a Senhora Marquesa de Cadaval. Sonho, talvez, mas incontornável…

Naturalmente, tudo isto pressupõe a concretização de imensas tarefas. Muito bom seria que, uma vez considerada a sua pertinência por parte da CMS, um tal projecto pudesse considerar o envolvimento de alguns cidadãos, a título de trabalho voluntário. Pela minha parte, a exemplo do que já tenho feito, até mesmo no estrangeiro, no âmbito de projectos culturais que reservam um espaço para tarefas a desempenhar em regime gracioso, aqui me têm disposto ao máximo contributo, sabendo que há mais gente, muito qualificada, na mesma disposição.

Ah, é verdade, para que conste, também já há um lóbi a funcionar…

  

(1 )Logo que oportuno, me parece que a CMS poderia  considerar a conveniência de informar os sintrenses acerca da situação actual.



Homenagem da C. M. de Sintra a João Bénard da Costa


[Foi com este texto, publicado na edição do passado dia 6 do corrente, no ‘Jornal de Sintra’ que encerrei o ciclo dedicado à memória de João Bénard da Costa. Amigo da família, há dezenas de anos, aproveito esta pequena introdução para confirmar que a homenagem de Sintra tocou todos com especial emoção]


João Bénard da Costa,
Sintra em homenage
m

Durante mais de cinquenta anos, João Bénard da Costa viveu na «Casa do Parque», Rua Gago Coutinho, ao Monte da Estefânea, zona de grande sossego e algo retirada, mas bem no coração desta Sintra que, agora, tão oportuna e justamente, o homenageou.

Homem avesso à feira das vaidades, senhor de uma sofisticação que, de acordo com a sua concepção da vida, apenas se conjugava com a grandeza das coisas mais simples e verdadeiras, a evocação que ali aconteceu traduziu-se num momento de especial elevação, com todos os ingredientes par se lhe quadrar.

Foram convidadas e estiveram presentes dezenas de pessoas, algumas das quais, incluindo familiares, são figuras notáveis do meio cultural nacional. Pelas sete da tarde daquele dia de São Pedro, todos nos juntámos ali na rua, em frente do portão e junto ao muro onde, pouco depois, seria descerrada a placa evocativa. Para a partilha da palavra que se impunha, dois amigos de longa data, a mulher do homenageado e o Presidente da Câmara Municipal de Sintra.

Palavras ditas

Como não poderia deixar de ter acontecido, o que disseram e como o fizeram também constituiu um acto de cultura. Alberto Vaz da Silva iniciou com palavras de Jorge Luís Borges: “(…)Um homem propõe-se ter uma imagem do Mundo. Através dos anos povoa o seu espaço com zonas da terra, reinos, montanhas, baías, barcos, ilhas, peixes, salas, instrumentos, estrelas, cavalos e pessoas. Pouco antes de morrer descobre que este paciente labirinto de linhas e traços desenha a imagem da sua face (…)”

Num registo em que destacaria a virtude da simplicidade, concluiu com referências à categoria do Tempo e ao caminho que conduz à essência das coisas realmente importantes: “(…) Para João Bénard da Costa, só alcançando o vértice, nos libertaríamos e sentiríamos verdadeiramente protegidos. O mais simples era também o fundamental. (…)

Torna-se- nos ainda mais azado regressar a Borges e antecipar como, através de zonas da terra, sonhos, montanhas, baias, barcos, tubarões, salas de projecção, instrumentos, estrelas, cavalos e pessoas, se descobre o paciente labirinto de linhas e traços que desenha a imagem de uma face. O João encontrou a pura face.“

Seguiu-se Guilherme de Oliveira Martins que relevou as linhas condutoras do genuíno magistério de João Bénard, prodigamente presente quer na obra quer nas actividades em que se envolveu:

“(…)Lembrar João Bénard da Costa é dizer, antes de tudo, que a sua memória está bem presente em todos os seus amigos. E Sintra é o melhor lugar do mundo para recordar. Poderia também ser a Arrábida! O Espírito, como o vento, sopra onde quer!

O João é um dos grandes escritores do nosso tempo. As suas crónicas, os seus ensaios, as suas reflexões ligam de um modo único e inesquecível a vida e as artes, as pessoas e os talentos, os mistérios e a sensibilidade. Seguir as leituras que tantas vezes nos fez das obras de arte – desde a pintura ao cinema, da música à escultura, da arquitectura ao teatro – é um fascínio.

Hoje, quando regressamos aos seus textos, sentimos que o mistério da criação e da criatividade é algo de apaixonante. Há sempre algo para compreender melhor. Por isso, as paixões do João acompanham-nos, e são inesquecíveis, porque somos levados a partilhá-las com entusiasmo, desejo e lembrança! Muito obrigado! Continuaremos a lê-lo e a seguir os seus passos!”

Depois, Fernando Seara que, não se limitando a um envolvimento institucional, antes produziu uma série de considerações através das quais, também a nível pessoal, se comprometeu de modo inequívoco:

“Hoje descerramos uma placa evocativa.

Fazemo-lo numa dupla envolvência. Uma, como mandatário de deliberações institucionais e, uma outra, como anunciador de sentimentos da comunidade de todos vós, familiares, amigos, vizinhos ou, simplesmente, conhecidos. Num e noutro papel está patente a premissa de se registar com admiração, nos assentamentos da nossa lembrança, o nome de um homem que nos merece a eterna gratidão pelo seu contributo para com o bem comum.

Este registo de memória, vem ao encontro da nossa noção de homenagem, como forma intrínseca de reconhecimento da verticalidade, coerência e dignidade de toda uma vida e, consequentemente, dos percursos percorridos pelo Dr. João Pedro Bénard da Costa, enquanto criava e recriava o seu “Tempo”, num axioma constante de procura do conhecimento, do saber e da consciência, enfim do “Modo”. (…)

Cremos, deste modo, que é na leitura destas observações e destas particularidades, encontradas na sublimação de ser, simultaneamente, professor e critico, que podemos reconhecer o propósito do ensinamento da descoberta da lembrança. Ou seja, a substância que fundamenta a razão do enaltecimento nominal que estamos a fazer, hoje, aqui, neste espaço, num simples desiderato de homenagem de quem criou estados de alma e avivou consciências. De igual modo, e para finalizar, julgamos saber que com este registo de memória iremos dar voz a uma vontade e a um gosto de João Pedro Bénard da Costa de não se despedir e de, por aqui, ficar. Quanto a nós, somos de saber que ele há-de gostar disso, enquanto, por aqui, estiverem pessoas e momentos feitos de “fitas”, de quem tanto ele gostava.”

Ana Maria Bénard da Costa fechou com a contida emoção que se adivinha:

A homenagem que a Câmara Municipal de Sintra presta ao João, neste dia de S. Pedro , festa do Município, concretizada através da lápide que fica exposta na parede da casa em que vivemos os dois durante mais de 50 anos, é para mim, para a minha família e para aqueles que foram os seus maiores amigos e que pedimos para estarem aqui presentes , um momento que ficará nas nossas memórias e no nosso coração.

Numa ocasião como esta, a sua falta faz-se sentir com mais dor mas a recordação do que ele foi – e lembro agora especialmente o prazer que tinha de estar perto daqueles que amava, a sua alegria de viver, o entusiasmo e a paixão que punha nas diversas tarefas a que se entregou – torna-se também mais viva e mais presente.

E presente ficará o seu nome neste muro da Casa do Parque por onde espero venham a viver novas gerações de Bénard da Costa e por onde espero venham a passar novas gerações com os apelidos dos amigos que tanto preencheram a nossa vida.

O João sempre sentiu como um imenso privilégio viver em Sintra, estar rodeado por esta paisagem mágica, poder olhar para o Palácio da Vila e para a Serra antes da ida diária para Lisboa e sentir-se envolvido pelas brumas tão comuns nesta terra e que ele sentia como tão familiares.

Por tudo isto e por muito mais do que isto que me vai na alma mas que não sou capaz de transmitir em palavras, digo simplesmente, em meu nome, e em nome de toda a minha família e de todos os amigos, ao Senhor Presidente Da Câmara, Sr. Dr. Fernando Seara, à Senhora Directora do Departamento da Cultura e Turismo, Sr.ª Dr.ª Maria João Raposo, aos Senhores Vereadores aqui presentes e ao Mestre Avelino Baleia, o artista que produziu esta obra, Muito e Muito Obrigada.”

Palavras escritas

Sempre com a maior informalidade, a evocação continuaria mas, então, à volta da mesa, um pouco mais acima, em São Pedro. Quando terminou o Dia do Concelho, com esta avivada memória de João Bénard da Costa, estava mais rico o património virtual de Sintra. Sintra esteve muito bem na atitude de reconhecimento. Bem viva, esta homenagem também atesta o desejo de marcar o tempo com um inequívoco sinal de uma cultura que se vive. Estamos todos de parabéns.

Acicatado, não só por aquela subtil referência do Presidente Seara a O Tempo e o Modo, mas também com o objectivo de confirmar a justeza de tudo quanto se dissera acerca do João Bénard, logo me ocorreu que, num dos primeiros números desta «Revista de Pensamento e Acção», exactamente, o seis, datado de Junho de 1963 – cujo conteúdo total era subordinado à questão: Arte deverá ter por fim a verdade prática? – em artigo intitulado “O cinema é um fenómeno idealista”, escrevia ele um longo parágrafo que tenho muito presente desde a primeira hora em que acedi ao texto integral. Partindo da singularíssima especificidade da câmara de cinema, as suas palavras são transversais, abrangentes, tão certas e certeiras na adequada descrição da criação artística, que não resisto a transcrevê-las, sabendo de antemão como vão concordar com a minha opção de assim encerrar esta evocação:

“(…) A câmara é um instrumento. Quem a detém não se limita a ver; observa, contempla e fixa. Junta essas imagens às suas, próprias e passadas. Só assim elas formam um todo. Esse todo é uma visão. Porque pessoal, única e eminentemente subjectiva, capaz de ir ao encontro de outras, igualmente pessoais, igualmente únicas, igualmente subjectivas. Assim se pode processar o amor de uma obra. Uma comunhão, uma memória comum. Porque participamos numa confidência (toda a obra de arte o é). Porque fomos interlocutores. E aqueles que confidenciam, como aqueles que sabem receber essa confidência, entendem o que quero dizer. Só esses – na agudíssima distinção de Kierkgaard – passam do lembrar ao recordar. Toda a obra de arte, porque confidência, apela para uma recordação. O que recorda não sabe esquecer. Compartilha um segredo, segredo que é idealidade e, como tal, com peso, sentido e responsabilidade muito diferentes da memória comum, que guarda e não conserva. (…)”

[João Cachado escreve de acordo com a antiga ortografia]

segunda-feira, 2 de julho de 2012

 
Esquerda politicamente correcta

[Leram "Defender Portugal", de Miguel Sousa Távares, na edição do Expresso de anteontem? Aconselho vivamente. Naturalmente polémico, em particular, a sua parte 2 não pode ser mais coincidente e concordante com o texto que subscrevi, publicado no Jornal de Sintra, no dia anterior, 28 de Junho, que passo a transcrever].

 

**************

Esquerda politicamente correcta


Sob o império do politicamente correcto, atitudes que, até há poucos anos, não causavam qualquer controvérsia, actualmente, passaram a suscitar inusitada perplexidade. Por exemplo, no domínio do posicionamento político, é cada vez mais difícil ao cidadão afirmar-se «de esquerda» e, simultaneamente, manifestar opiniões não enquadráveis na estreita mas prevalecente noção de esquerda. É assim que, não raro, a tais ousadias (?) logo se aplica o rótulo do paradoxo…

Este início de século e de milénio vai sendo marcado pela incomodidade da assunção de qualquer opinião individual contra a corrente prevalecente. Muito naturalmente, tal circunstância nada abona na avaliação da qualidade do tempo que passa e, pelo contrário, confirma como a geral e manifesta ignorância, se evidencia em percentagem bem mais significativa do que noutras épocas.

De facto, não sendo pouca a ignorância vigente, ela também é directamente proporcional à menor elasticidade mental para o acolhimento de ideias e realidades aparentemente contrastantes que, pela sua natureza e características, induzem à generalizada avaliação dos seus autores como gente paradoxal.

Quando um cidadão, conotado com a esquerda, ousa confessar em público o seu catolicismo militante e se apresenta flagrantemente contra o designado casamento entre pessoas do mesmo sexo; e, em diferente registo, provavelmente ainda mais contundente, se atreve a declarar uma afición tauromáquica sem limites ou uma fervorosa simpatia pelo espectáculo do circo, então, muito dificilmente será entendido.

Porque, em geral, a esquerda politicamente correcta, sem pitada de sal ou de pimenta, muito limitadinha, coitada, quando não é ateia será agnóstica, patrocina o casamento entre homossexuais, assina todas as petições a favor da pura e simples extinção dos espectáculos circenses desde que incluam animais amestrados e, por fim, quanto à tauromaquia, perante o copioso folclore dos últimos anos, estamos mais que conversados…

Esquerda, de contornos abrangentes, sem peias nem antolhos? Ah, isso é outra coisa e bem mais séria, capaz de acolher católicos, militantes ambientalistas, combatentes de todas as causas progressistas, grandes intelectuais, artistas, todos constantes de uma lista tão preciosa que não omitirá os nomes de Picasso, Hemingway ou Orson Wells, que tudo davam por uma boa tourada, com touros de morte, e com todos os outros ingredientes de excesso, tais como bom vinho e bonitas mulheres, na festa dos sentidos.

Afinal, a partir dos exemplos anteriores, se bem quisermos concluir, naqueles titãs da pintura, da literatura e do cinema, tudo se conjuga e nada se exclui, tudo faz sentido e nada é avesso àquilo que só podemos considerar como gente inteira, nitidamente à esquerda e sempre na face da Verdade, pelos mais dignos e interessantes caminhos da Arte, da Beleza e da Liberdade.

Politicamente correcto? O que é isso? Certamente, algo que não estará muito longe da hipocrisia institucionalizada, radicado no receio da polémica, na recusa da lúcida reflexão e da análise dialéctica, de tudo quanto, ao fim e ao cabo, seja susceptível de exigir às meninges um adequado trabalho. Como assim não sucede, como espantar-se perante o resultante, invariável e boçal alarde de domesticada ignorância?