[sempre de acordo com a antiga ortografia]

domingo, 30 de outubro de 2011



Para mudar de vida…

É bom não esquecer. Porque a memória é curta e a tendência para tudo confundir é uma constante, cumpre ter muito presente que, a montante da situação de penúria que se vive entre nós, há um quadro de referências nada simpático, mesmo muito pouco honroso, por vezes, pavoroso, bem diferente do que se passou noutras latitudes e que não é possível deixar de ter em consideração.


Entre outras pinceladas de tal quadro, recorde-se que Portugal se fartou de chafurdar na gamela europeia de iniquidades mal cheirosas, pelo que não podia deixar de integrar o grupo dos PIGS. É horrível, ninguém gosta da conotação com o animal – afinal, um bicho porreiro, bonacheirão, algo desconfiado, é certo – mas quem não quer ser porco não lhe veste a pele…

Sem pretender ser exaustivo, outra das referências do mesmo quadro tem a ver com a gestão errática, incompetente, indutora de não poucos e bem conhecidos crimes e casos de polícia, protagonizada por políticos do mais baixo calibre, aldrabões, ignorantes arrogantes.


O resultado de décadas do profícuo labor desta desqualificada gente ultrapassa o da generalizada mediocridade da classe política europeia. Não surpreende, nestes termos, que se evidencie a mais absoluta fragilidade da economia e finanças nacionais, bem espelhada na tremenda borrasca que sobre nós se abateu.


É um horror. Tem sido um horror, que os mais lúcidos de nós, temos vindo a tentar denunciar, clamando num deserto de cegos e surdos. E ainda mal acordámos do pesadelo. Contudo, se pretendemos que o nosso despertar constitua ponto de partida para a mudança, não haja a menor dúvida – e já o tenho escrito em várias ocasiões – é imprescindível que a comunidade nacional entenda a responsabilidade dos muitos autores do descalabro, a partir de que momento, durante quanto tempo e de que modo actuaram.


Avançar? Sem perceber?...

Estão indignados os cidadãos? Ou seja, sentem os cidadãos que uma cambada de energúmenos feriram a sua dignidade? Sentem os cidadãos que, no entanto, há que continuar a ser Portugal, mas sem cometer erros idênticos? Então urge perceber muito bem o que aconteceu. Alguém, neste caso, muita gente, fez alguma coisa muito errada, em determinados lugares, durante um certo período de tempo, com objectivos mais ou menos claros ou obscuros que resultaram no desastre que vivemos.

O horror tem, formas, caras, contornos definidos. É absolutamente crucial esclarecê-los para que, uma vez satisfeita essa necessidade de verdade, possa acontecer toda uma participação cívica que nunca foi vivida em Portugal. Só acontecerá a mobilização dos cidadãos para a mudança que importa concretizar, a caminho de outro paradigma, de outros modelos de vida mais verdadeira e consentânea com os recursos disponíveis e gerados, só acontecerá essa mobilização, repito, se soubermos ir tão longe quanto necessário à descoberta desses miasmas do horror.

Não se trata de procura mórbida dos culpados. Trata-se, isso sim, também como já tenho afirmado, de uma questão de dignidade, que se confunde com a inevitável resultante de pedagogia social de que todos os cidadãos lucrarão, em especial, as crianças e jovens. Não há outra solução ou, melhor, até haverá mas desperdiçar a oportunidade também seria a confissão de não ter estado à altura do momento.

De facto, aos mais novos, é preciso deixar a mensagem de que errámos mas soubemos despistar os erros e com eles aprender a ser melhores, para evitar a corrupção, o compadrio, a ignomínia, a fraude, a economia informal, a fuga aos impostos e todas essas chagas que temos agarradas à pele de um corpo social que, aparentemente, até muito bem com elas tem convivido…


quarta-feira, 26 de outubro de 2011


Efeméride mozartiana

Salzburg, domingo de 26 de Outubro de 1783. Primeira apresentação, na igreja St Peters, da Missa em Dó menor, KV 427. Esta data coincidiu com a ocasião em que Mozart – na altura, já instalado em Viena e casado com Constanze Weber – levou a mulher pela primeira vez a Salzburg, aproveitando para a apresentar aos seus amigos da cidade.


Na ocasião, a própria Constanze interpretou uma das partes de soprano da referida Missa. É interessante entender que a escolha de St Peters não é fruto do acaso. Trata-se de uma abadia, não dependente do arcebispado e, portanto do Príncipe-Arcebispo, conde de Coloredo com quem o compositor se incompatibilizara cerca de ano e meio antes.

Já agora vos digo que, em Salzburg, é um dos meus poisos favoritos. O ambiente de recolhimento é especialíssimo, algo que vários dos meus amigos católicos da cidade também partilham. A própria situação, de algum modo, recuada em relação à catedral e à igreja dos franciscanos, muito mais cosmopolitas, contribui para esse efeito.

Do mesmo perímetro, faz parte o famosíssimo cemitério de St Peters, com jazigos lindíssimos, estupendos trabalhos em ferro forjado. Paredes meias ficam as catacumbas, perto das quais, junto ao caminho que lhes dá acesso, numa mesma sepultura, estão depositados os restos mortais de Nannerl, a irmã prodígio de Wolfgang, bem como os de Johann Michael Haydn, compositor, tal como o irmão Joseph.


Muito mais poderia dizer-vos acerca deste lugar que prezo tão particularmente. Às tantas, uma efeméride musical arriscava-se a descambar em informação turística… Por isso, vos deixo com este maravilhoso excerto do Gloria da Missa em Dó menor que, temos a certeza, foi cantado, pela primeira vez, em público,também pela querida Constanze.*

*Para a audição, ou vão,directamente, ao YouTube – onde aconselho que seleccionem a gravação em que Leonard Bernstein dirige a Orquestra e Coros da Rádio Bávara – ou, então, visitam a minha página do facebook, com o bom acolhimento habitual...


terça-feira, 25 de outubro de 2011



Impressões musicais [IX]



Como verificam, estou um pouco atrasado. Depois do dia 18, já ocorreram outros eventos na Gulbenkian acerca dos quais vos darei nota. Por isso, desde ontem e nos próximos dias, aparecem umas impressões de enfiada. Não se espantem porque, depois, entraremos no ritmo certo.

3ª Feira, 18 de Outubro, 19,00 h – Arcadi Volodos, Recital de Piano. Grande Auditório da Fundação Gulbenkian.

Arcadi Volodos é um dotadíssimo pianista, acabado de entrar na casa dos quarenta, cuja carreira já acompanho há anos, umas vezes na Gulbenkian, outras em Sintra - enquanto a organização do Festival ainda tinha dinheiro para lhe pagar o caché... - e também em Salzburg, onde tais problemas de falta de dinheiro não se colocam com tanta premência até porque os nossos amigos austríacos fazem mesmo reflectir no preço dos bilhetes o real valor dos encargos.

De qualquer modo não deixa de ser interessante assinalar que, só na Gulbenkian, será possível assistir a um recital por um destes galácticos, como Volodos, por doze euros e meio… Mas vamos ao que interessa, senão lá se vai a meia dúzia de parágrafos que me pediram por cada evento. Já sabem que não entrarei em detalhes biográficos, que encontrarão na net, pelo que passo já às peças e a umas notas acerca da sua interpretação.


Escolheu um reportório eminentemente romântico, começando por nos propor a Sonata para piano em Lá menor, D.784 de Franz Schubert (1797-1828). Datada de 1823, emparceira com outras peças da maturidade do compositor, tais como as famosas Fantasia Wanderer ou Sinfonia nº 8, Incompleta e, ainda que tenha recebido o epíteto de ‘Grande Sonate’ não tem a dimensão das de quatro andamentos, como a D 959, em Lá Maior, por exemplo.

Volodos foi pródigo na transmissão de toda a carga emocional da peça, nos mais variados registos do primeiro andamento, Allegro giusto, em que prevalece uma introspectiva melancolia. Seguidamente, no Andante, soube pôr em evidência toda a intrincada rede de melodias, recorrendo a pausas profundíssimas, quase no limite do suportável, para que no Allegro vivace final concedesse a sensação de ansiedade, a caminho do recolhimento e da interiorização de impressões suscitadas por eventuais estímulos e desafios poéticos.

Seguidamente, abordou os três Intermezzi, op. 117 de Johannes Brahms (1833-97), obra dominada por um cariz bucólico, contemplativo, nostálgico, num ambiente que, por vezes, raia o universo de uma certa tristeza, algo dolorosa, servida por uma linguagem tradicional. De facto, continuamos no romantismo, já finissecular, pós wagneriano. Contudo, este mundo de Brahms nada deve ao demiurgo de Bayreuth, aqui referido como pólo de outro germanismo, ainda que coevo.

Finalmente, a pièce de résistance, deste recital de Volodos, a célebre Sonata em Si menor, de Franz Liszt (1811-1886) por muitos considerada a obra-prima deste compositor e, inequivocamente, uma das mais importantes e exigentes, da pianística de todas as eras, peça monumental, com cerca de meia hora, num só andamento, embora com seis indicações de tempo, um sucessivo cardápio de todos os recursos do virtuosismo ao serviço de um conteúdo que não se afasta do ambiente das outras obras interpretadas neste fim de tarde.

Felizmente, posso comparar com outras ocasiões em que Volodos interpretou esta obra, de 1853, meio do século e meio da vida do compositor. Desta vez, se possível é afirmá-lo, ainda conseguiu cavar mais no terreno fértil de Liszt, foi mais fundo, mas sempre muito refinado, com pinças em cada nota, especialmente nos lento assai inicial e final, um verdadeiro tratado, sempre em suspenso do efeito que conseguiria arrancar de certas notas, ou acordes, que todos conhecemos, mas à espera da surpresa.


Com todos estes tão subjectivos parâmetros de apreciação, claro que é muito alta a minha avaliação do recital de Volodos. Sabiamente, proporcionou-nos três momentos muito distintos de uma estética, a romântica, riquíssima, praticamente inesgotável, nos seus inúmeros matizes.

A satisfação plena só não aconteceu devido a tosses, pigarros e quejandos efeitos do tabaco e da idade, perfeitamente incompatíveis com a Música. Como sabem ou calculam, acontece sempre. Mas nem sempre acontece que tenhamos a mesma condescendência… Enfim, atribulações de quem privilegia este contacto directo com a Arte.

PS:

1. Na edição do facebook, este mesmo texto termina com a proposta de audição da Sonata em Si menor de Liszt, interpretada por Volodos, em Bruxelas, uma semana antes de se ter apresentado em Lisboa no recital que comentei. Trata-se de uma gravação clandestina que está disponível no YouTube. Se quiserem acreditar, na Gulbenkian ele ainda esteve melhor... Vale mesmo a pena ouvir.

2. Só agora me dei conta de não ter reparado que, antes do recital ao qual hoje me refiro, deveria ter escrito sobre a récita de ópera em São Carlos. Fá-lo-ei da próxima vez, desobedecendo à ordem cronológica.



segunda-feira, 24 de outubro de 2011

A pedido de várias famílias

Confiantes na minha opinião, alguns amigos e conhecidos sugeriram que publicasse umas pequenas notas de divulgação e impressões, acerca da música que vou ouvindo nos auditórios onde passo uma boa parte da minha vida. Não pretendem o tipo de crítica que, durante anos, semanalmente, produzi em centenas de páginas do Jornal de Sintra – especialmente com textos exclusivos sobre o que acontecia em Salzburg – mas apenas três ou quatro parágrafos, tão ligeiros quanto possível.

Sugerem-me, em suma, que não perca tempo com referências biográficas, nem dos compositores nem dos maestros e solistas, sem me preocupar com os curricula das orquestras e outras notas a que, hoje em dia, se pode aceder na internet. Ainda me convenceram com a ideia de que, eventualmente, os meus escritos poderão ter a vantagem de serem completamente descomprometidos em relação à clique musical da capital. Pois bem, se têm estado com atenção, até já dei início.

Muito informalmente, comecei esse tipo de trabalho que, sem qualquer intuito de sistematização, apareceu nos meus meios de comunicação, portanto, no blogue sintradoavesso e no facebook. Assim sendo, recordarão que, tão somente acerca de programação musical da Gulbenkian, a partir do fim do mês passado, já publiquei textos acerca de Die Schöpfung / A Criação, Hob.XXI:2, de Joseph Haydn (29.09.11); La finta giardiniera, K.196 de Wolfgang Mozart (02.10.11) e, ainda, acerca da Integral dos Quartetos para Cordas de Dmitri Chostakovitch, (9, 11, 12, 16 e 17.10.11).

Em tão pouco tempo, já me referi a sete (VII) eventos, i.e., recapitulando, uma Oratória de Haydn, uma ópera de Mozart e cinco concertos de música de câmara de Chostakovitch, em interpretações do mais alto gabarito. No entanto, até ao presente, já assisti a mais quatro concertos e a uma récita de ópera, sobre os quais me apresso a dar conta, para bom cumprimento da encomenda referida no primeiro parágrafo. O melhor, nestas coisas, é seguir a ordem cronológica.

Impressões Musicais [VIII]*

5ª Feira, 13 de Outubro, Orquestra Gulbenkian, Sol Gabetta, violoncelo, Lawrence Foster, maestro. Auditório a três quartos da lotação. Naquela noite, a primeira obra interpretada – que, para todos os efeitos, costuma funcionar como introdução ao concerto e para aquecimento da orquestra – foi a Valsa-fantasia, para orquestra, em Si menor de Glinka (1804-57). Trata-se de uma peça curta, originariamente escrita (1839), com referências a alguma música sacra ortodoxa, melodias de recorte orientalizante e de manifesta sensualidade. Interpretação escorreita.

Numa semana toda dedicada aos seus Quartetos para Cordas, Chostakovitch também estaria presente com o Concerto para Violoncelo e Orquestra nº 2, op. 126, estreado em Moscovo em 25 de Setembro de 1966, dedicado ao mítico violoncelista Mstislav Rostropovitch (que eu tive a felicidade de ver e ouvir interpretar este mesmo concerto, em Salzburg). Julgo que, nesta obra, o maior contributo do compositor se traduz ao nível da enorme paleta da grelha rítmica e na articulação e integração dos recursos harmónicos, em especial nos andamentos médio e final.

É um concerto que exige ao solista um empenho absolutamente sem tréguas, com imensas explosões de ânimo violento, ressonâncias à música popular de pendor cigano, referências militaristas e marciais, bem como motivos de lirismo inexcedível a que Sol Gabetta, a violoncelista argentina, correspondeu de forma comovente, numa interpretação dionisíaca, muito mais exuberante que a de Rostropovitch a que já me referi, ou à de Janos Starker a que também assisti. Aplausos muito vibrantes.

Finalmente, a Sinfonia nº 4, em Fá menor, op. 36 de Tchaikovsky. Sem me internar em detalhes de ordem biográfica, é fundamental ter em consideração que esta obra, composta entre 1877-78, coincide com um período muito sombrio da vida do compositor, durante o qual se casou com Antonina Milyukova, em 18 de Julho de 1877, dela se tendo separado apenas umas semanas depois. Foi na música, precisamente nesta sinfonia, que Tchaikovsky deixou as marcas mais profundas desse tempo.

Há um tema, o do destino, que permanece ao longo dos quatro andamentos, concretizado pelas trompas e fagotes, logo no Andante sostenuto inicial. O ambiente sempre reinante é de uma evidente melancolia introspectiva, que o compositor tenta compensar com o recurso a vislumbres de melodias da tradição popular. Porém, nunca é superado um certo reduto de autocomiseração. No meio de tudo isto, que não é pouco como caldo de enquadramento, Tchaikovsky propõe melodias avassaladoras, com fortissimi, tutti vibranti que, para qualquer orquestra, são prova de fogo.

A propósito de fogo, deixem que me refira ao andamento final, Allegro com fuoco que, por manifesta responsabilidade do Maestro, resultou numa quase amálgama do som produzido pelas percussões e metais dos registos mais graves. Àquilo que ouvi chama-se, meus caros amigos, falta de subtileza. E, sem margem para qualquer dúvida, a responsabilidade é do dirigente, que pediu aos músicos o que não devia e que, certamente, o compositor não pretendia.


*A numeração corresponde, portanto, ao oitavo evento da temporada que tenho vindo a comentar. Os textos que se seguirem obedecerão à ordem agora enunciada.

Kadafi, Sócrates, Amado & Cª



Perante aquelas imagens tão degradantes do fim do ditador líbio, muito gostaria eu de saber o que, por estes dias, pensam e sentem uns certos figurões da nossa praça, decisores políticos, ao mais alto nível da hierarquia do Estado, nomeadamente, os anteriores Primeiro-Ministro e Ministro dos Negócios Estrangeiros que, por várias vezes, ultrapassaram o que, para efeito das relações entre Estados, pode ser considerado como a bitola da conveniência, para se encontrarem formal e informalmente com um político tão controverso.

Em nome de Portugal – é bom não esquecer – aqueles senhores aceitaram o convite, sentaram-se à mesa e banquetearam-se na companhia de um sujeito que, dificilmente, alguém apertaria a mão por uma questão meramente protocolar. E, tanto quanto me recordo, na altura, só Ana Gomes, embaixadora de carreira, teve a coragem de dizer e escrever, preto no branco, o que pensava da atitude de Luís Amado, quando foi comemorar já não sei quantos aniversários – se não me engano, seria o quadragésimo – da «revolução» líbia, sob a tenda do farsante.

A circunstância de haver outros governantes internacionais que tiveram idêntico comportamento não atenua, de modo algum, a decisão dos referidos membros do Governo de Portugal. Aliás, se alguma coisa significa tanto dislate é que reina a maior falta de nível entre os líderes mundiais que, paradoxalmente, foram eleitos, por povos soberanos e considerados esclarecidos, em Estados Democráticos de Direito. Dá que pensar e não deixa de ser altamente perverso.


sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Natureza-morta,
outras faces da realidade


Ontem, na Galeria de Exposições Temporárias da Sede da Fundação Calouste Gulbenkian, houve inauguração da exposição A Perspectiva das Coisas, A Natureza-Morta na Europa, Séculos XIX-XX (1840-1955), tratando-se da segunda parte da iniciativa que, entre Fevereiro e Maio de 2010, se subordinou ao mesmo título, abrangendo os séculos XVII e XVIII.

Estamos perante uma organização exemplar, nos termos da qual a exposição funciona mesmo como privilegiado lugar de formação, como gostava de afirmar o meu amigo Christian Carrière, da Peuple et Culture de Paris que, há trinta anos, eu trouxe a Lisboa, ao Museu do Traje, para proferir uma conferência que tinha como tema aquela expressão.

Neste dispositivo, não constitui novidade que haja vários núcleos temáticos, enquadrando um determinado conjunto de peças, que jogam diálogos do maior interesse, cuja lógica interna faz parte do processo de acesso às obras e ao entendimento da proposta dos seus autores, enquanto estetas, manipuladores, transformadores da realidade.

A designação daqueles núcleos logo suscita a vontade de entrar no jogo. Deixo-vos, a título de exemplo, algumas das sugestões. Negociar a tradição: dádivas da natureza e artifícios. Jogos de relações: a natureza-morta enquanto forma. Exílios e outros: política, primitivismo e o eu interior. A essência das coisas: materialidade e imaterialidade. A crise do objecto: sonhos e pesadelos. Da cena de caça ao horror. Da perspectiva das coisas.

Ali se propõe um circuito no tempo, no espaço e, não menos importante, um percurso pelos meandros que cada visitante consigo transporta. É impossível que, no fim da viagem, alguém permaneça igual ao momento em que a iniciou. E, meus senhores, o principal desta mensagem, a raríssima possibilidade de apreciar obras-primas da pintura deste período, vindas das mais prestigiadas colecções, de Manet, Monet, Renoir, Van Gogh, Gauguin, Cezanne, Braque, Picasso, Juan Gris, Dali, Magritte, Matisse.

A exposição abrange um período que termina em 1955, o ano da morte de Calouste Gulbenkian, assinalado por uma natureza-morta de Giorgio Morandi, datada daquele ano. É uma data artificial que, nos termos do prospecto de apresentação, os organizadores consideram “(…) simbólica da sua missão de reflectir e dar a ver a produção artística que interessou ao Coleccionador ou foi sua contemporânea (…)”.

Bem, não sei como a missão poderia ter sido mais bem cumprida… A grande Gulbenkian, de facto, não deixa os créditos por mãos alheias. O que ali está é mesmo do melhor do mundo e vai lá ficar até 8 de Janeiro de 2012, sendo esta uma daquelas exposições que bem merece se faça umas centenas de quilómetros para não perder. Vão por mim...

quarta-feira, 19 de outubro de 2011


Chostakovitch,
na Gulbenkian, epifania dos quartetos

Como tive oportunidade de anunciar, a Gulbenkian proporcionou ao público português, nos passados dias 9, 11, 12, 16 e 17 deste mês, a oportunidade de aceder à integral dos quartetos de Dmitri Chostakovitch, na interpretação do Quarteto Borodin, considerado o mais qualificado do mundo neste reportório.


É de propósito que acabo de escrever público português e não público da capital, já que esta proposta é de tal modo rara que, de facto, deveria ter suscitado interesse nacional, reclamando deslocações até Lisboa dos verdadeiros melómanos de todo o país. Seria assim em qualquer latitude civilizada desta nossa Europa. Infelizmente, e, como é habitual acontecer no Grande Auditório da Av. De Berna, o público acorreu muito escassamente e, apenas no último dia, compôs a sala.

É, inquestionavelmente, nestes quinze quartetos, que somam algumas das mais densas seis horas de toda a História da Música ocidental, que o compositor russo dá a conhecer a profundidade mais autêntica da sua personalidade, declaradamente, nos seus aspectos mais compósitos, eclécticos e controversos.

Naqueles excepcionais fins de tarde de glória, quem não veio até à Gulbenkian dir-me-á que pode aceder a este incomparável núcleo de peças da música contemporânea através das gravações disponíveis. Não contradirei. Claro que eu também as tenho. Mas, alguma vez, me passaria pela cabeça não estar presente, no preciso e irrepetível momento em que esta Arte se refaz, na verdade do directo, que jamais alguma gravação proporcionará?

Os quartetos abrangem quase quatro décadas, entre 1938 e 1974. Nestas peças está plasmada toda uma série de momentos da rica e biografia do grande artista e cidadão, que viveu constantemente na corda bamba, fazendo um percurso pessoal conturbadíssimo, com três casamentos, ao longo de um período em que, a nível político, tão determinante para a sua carreira, pontificaram Estalin, Khruschev e Brejnev.

Quem conhece a obra de Chostakovitch percebe o que pretendo partilhar. É que nas outras componentes da sua obra, nunca o compositor foi tão ao fundo de si próprio, atingindo esta seriedade e tanta verdade. Foi esta proposta de convívio na Arte que nos trouxeram os Borodin, agrupamento ao qual o autor confiou informações determinantes para a interpretação destas composições, que têm sido escrupulosamente transmitidas durante os sessenta anos de vida deste conjunto de câmara.

Ainda vamos no princípio da temporada 2011/12 e a Gulbenkian já averbou este tão marcante sucesso. Por muito tempo, vão ressoar os efeitos destas audições. Se querem saber, passada esta semana, sou um homem algo diferente. Estou muito mais rico, facto nada despiciendo neste período de austeridade e de recessão…


NB:
Se quiserem aceder a uma gravação, só têm de ir à minha página do facebook. Subordinada a este mesmo texto, lá encontrarão o primeiro andamento do Quarteto no. 15, precisamente pelo mesmo agrupamento. É uma verdadeira maravilha.

terça-feira, 18 de outubro de 2011



Sintra,
entre Pisões e Regaleira


Quero chamar a sua atenção para o despautério que ocorre a meio caminho, no percurso entre as Quintas dos Pisões e da Regaleira. Acompanhe-me até lá e não se deixe impressionar pelos primeiros passos que, de facto, são muito agradáveis.

Já deixou para trás o Lawrence´s, seguindo pelo passeio da direita, para alcançar a zona do gradeamento. Infelizmente, o empedrado, desnivelado, esburacado, não está melhor do que noutras tão aprazíveis como esta zona de Sintra. Dê-se por muito contente já que, nos últimos tempos, não tem havido mosquedo à volta dos imponentes contentores que, de vez em quando, estão a abarrotar, com embalagens e outro lixo à volta.

Não se adiante. Conceda-se o tempo bastante. A grade convida-o a debruçar-se. Faça-o que não se arrependerá. Durante o tempo que precisar, a vista vai descansar sobre aquele profundo anfiteatro verde, um tanto ou quanto caótico mas muito aprazível. Não raro, com alguma sorte, ouvirá o cantar de uns garnisés que, por ali, são useiros e vezeiros. A passarada é muita pelo que não lhe será difícil ser testemunha de algum recital. Será que o merece?...

Depois da pausa, poderá continuar. Vai passar ao portão de moldura renascentista da Quinta dos Pisões. Quando observar o trabalho de cantaria, não deixe de reparar, à sua esquerda, a média altura, na data de 1533. Este Palácio dos Pisões pertenceu aos Duques de Aveiro, constando que ali se terão reunido alguns dos conspiradores que pretenderam atentar contra o Rei D. José. Mais tarde, veio a fazer parte do vastíssimo património de Miguel David Gallway, o tal que se gabava de poder ir de Sintra a Mafra sempre pisando propriedade sua…

Do outro lado da estrada, a Fonte dos Pisões, ali instalada em 1930, e que nada tem a ver com a primitiva, idêntica à que hoje ainda existe junto ao Convento da Trindade, entre Santa Maria e São Pedro. Como vê, está desbotadíssima, com aquele ocre infestado de líquenes, escurecendo toda uma superfície que teria direito a outro estado se tivesse sido capazmente executada a última obra de limpeza e manutenção. Mas esse é outro peditório para o qual já contribuí devidamente…*

Ora bem, é uns metros mais adiante, mesmo junto a um pequeno portão verde, imediatamente anterior ao recinto da cascata da Regaleira, que pode deparar com o tristíssimo espectáculo que tive o cuidado de avisar logo no primeiro parágrafo deste escrito. Bem lhe disse que a primeira parte, esta que percorreu até agora, até era agradável.

Contudo, como vê, sem qualquer disfarce, essas pedras, aí deixadas de qualquer maneira, com desperdícios outros, a vala que atravessa a estrada, o horror da caixa que foi aberta e depois apenas coberta com saibro, um metro quadrado donde brota água, escorrendo rente ao passeio, são ingredientes de uma cena de terceiro mundo que parece não susceptibilizar seja quem for, tão habituada está a gente a coisas que tais.


Eu vi quando e como a coisa começou, na passada sexta-feira, dia 14, a meio da manhã, pelas mãos de um piquete dos SMAS de Sintra. Nada me surpreendeu por o trabalho estar a ser feito à touxe-mouxe, na altura, sem qualquer sinalização, quando, repare-se, era preciso romper uma vala atravessando o alcatrão da estrada e, do outro lado, abrir a tal referida caixa… Enfim, bem à portuguesa, na variedade sintrense… O que não me passava pela cabeça, apesar de muito causticado por desmandos similares, é que, em primeiro lugar, a coisa fosse assim dada por concluída e que, cinco dias passados, ainda permaneça na mesma.

É uma vergonha! Como verifica, não estou a exagerar seja o que for. Mas os SMAS de Sintra dão-se ao luxo de nos cobrar tarifas absolutamente milionárias, perfeitamente incompatíveis com o cenário em presença. Vergonha seria para quem ainda tenha um pingo da dita. No caso vertente, não sei a quem me queixe. Estou farto de incomodar o Presidente da Câmara que, em última instância… Depois, tenho maior consideração pelo Vereador, Engº Baptista Alves, que também tem as costas muito largas…

Bem, para já, o primeiro manifesto da minha indignação já está apresentado. E você, que foi destinatário e cúmplice deste texto, já pensou a quem vai dirigir-se? Ou vai fazer como sempre, esperando que este ou outros escribas, armados em Don Quixote, tomem as suas dores e o representem nestas instâncias? Não acha que vai sendo tempo de participar nas denúncias e de pôr a funcionar a cidadania? Mexa-se! Valha-o Deus!...


* Ler o texto aqui publicado, em 27 de Agosto de 2009, Às fontes, às fontes, numa pressa...

domingo, 16 de outubro de 2011


Banco dos réus

País em que os índices de participação cívica são dos mais baixos entre os congéneres europeus, onde vigoram democracias plenas em Estados Democráticos de Direito, Portugal não surpreende por os cidadãos não controlarem as decisões políticas dos eleitos que têm exercido funções executivas nos sucessivos governos. Muito naturalmente, porque assim é, também não surpreende que, ao longo de tantos anos, e, em especial nos seis últimos, tantos recursos tenham sido delapidados, sob a capa da democracia, com uma série de governantes, em roda livre, a esbanjar sem qualquer freio.


Afirmar, num país como o nosso, que o julgamento dos decisores políticos está nas mãos dos cidadãos que, periodicamente ou em circunstâncias específicas, são chamados às urnas para exercerem os seus direito e dever de voto, não passa de pura falácia. E, por assim suceder, por não passar, afinal, de um princípio geral sem expressão de concreta eficácia, outras medidas terá de perspectivar a sociedade portuguesa se, como é justo que aconteça, pretender que sejam civilmente responsabilizados, os que por acção e omissão, de modo inequivoco, lesaram o país e os interesses da comunidade que juraram servir.

Para o efeito, aquilo que se designa como banco dos réus pode assumir a forma que, por evidente eficácia, mais convier aos cidadãos. Tanto quanto parece, não será preciso inventar qualquer nova instância ou entidade que se incumba de tão nobre quanto absolutamente necessária missão. É no Parlamento – até Rui Pedro Soares, que tantos arvoraram como protótipo do boy, não teve o mínimo decoro em o invocar como Casa da Democracia – que se deve apurar a responsabilidade de quem usou e abusou dos escassos bens de uma nação relativamente pobre, comprometendo o próximo futuro e o de, pelo menos, mais uma geração.

Na Casa da Democracia, são bem conhecidos os nomes desses figurões, damas e cavalheiros. Alguns saltaram do último Governo para continuarem a sentar-se no hemiciclo. Ali, ou no contexto de trabalho nas Comissões, quem mais nos ofendeu no passado recente, permite-se comentar, acerca das dificuldades que todos sentimos, intervindo com dichotes e palermices proporcionais à sua falha de qualidade, como se ainda não tivesse cessado, demasiado triste e tragicamente, o regabofe que protagonizaram em nosso nome.

Como sabem, muitos já deram à sola, para o estrangeiro. Enquanto há quem aproveite para estudar, outros fazem jus à sua vocação de grandes gestores, agora em África, no Brasil, integrando Conselhos de Administração de empresas com as quais já tinham tratado de se precaver quanto à possibilidade de assumirem tais funções… Outros há que, de facto, o melhor mesmo é procurarem safar-se lá por fora, não vá a fúria popular chegar-lhes a roupa ao pelo…

Como, há uns bons meses, tive oportunidade de assinalar, bastaria que o último Primeiro Ministro, de péssima memória, tivesse solicitado a ajuda externa, pelo menos, seis meses antes, para que as responsabilidades do país fossem hoje muito menos significativas. Actuar como actuou, não foi só incompetência. Constituiu um crime.

Agora, na sequência do que foi recentemente anunciado, ao orçamento de muitas casas, por exemplo, em que marido e mulher são pensionistas da Administração Pública, será sonegado o equivalente a oito vencimentos, nos próximos dois anos, para cobrir este e outros crimes. Não havendo escapatória possível, cá estaremos para verificar se, aqueles que nos colocaram nesta situação, conseguem eximir-se aos mecanismos da responsabilização civil que se impõe.

Não se trata de, morbidamente, ir à procura do culpado ou de qualquer vingança. Trata-se, isso sim, de perceber em que medida uma série de cidadãos eleitos não estiveram à altura das funções em que foram investidos, até que ponto se tratou de incompetência, de pura estupidez, de falta de sentido de Estado, até que ponto terá havido cupidez, favorecimentos, etc. Trata-se, meus senhores, de uma questão de pedagogia cívica.

Este é um momento oportuno para poderemos demonstrar aos nossos filhos, netos, às crianças e aos jovens alunos das nossas escolas que pretendemos mudar de vida. Tanto em sentido lato como mais restrito, a responsabilização dos decisores políticos faz parte dos mecanismos da democracia representativa. Há que lhes pedir satisfações. A avaliação da responsabilidade civil não é uma perseguição. É, isso sim, uma questão de dignidade.



sexta-feira, 14 de outubro de 2011


Seteais.
Ah, o tanque, Senhor…


A inqualificável destruição do tanque de Seteais, constituiu mais um sinal de um tempo de perfeito destempero, nos termos do qual o concessionário de um bem patrimonial classificado se permitiu perpetrar um autêntico crime com o beneplácito do Igespar, a entidade oficial do Ministério da Cultura à qual, por definição, está cometida a defesa da integridade física e imaterial das peças constantes do riquíssimo acervo nacional.

Pesei cada uma das palavras que acabei de escrever. Crime, disse eu. Não, não se tratou de uma intervenção controversa, daquelas que, posteriormente geram alguma polémica que se desfaz na espuma dos dias. Não, transformar aquela peça – que, fazendo parte de um característico dispositivo de lazer, articulava com o próprio palácio, a escassas dezenas de metros de distância – numa prosaica casa de máquinas, foi coisa mesmo criminosa.


Mais, ter obtido autorização bastante para o efeito, com base na decisão de um organismo da Administração Central, que a justificava com o argumento de que a parte superior da referida construção seria transformada num espelho de água ilusionista, é algo de inimaginável mas, infelizmente bem real.

Os leitores que têm acompanhado este caso, lembrar-se-ão de que, em Novembro de 2008, o Arquitecto Assessor Principal Luís de Pinho Lopes, de facto, teve o desplante de subscrever e de me dirigir uma mensagem inequívoca que bem atesta a falta de gabarito de quem deveria ter posição substancial e substantivamente diferente da do destempero que passo a transcrever:


"Exmo Senhor,


Na sequência do v/ e-mail de 5 do corrente, venho esclarecer que a intervenção em curso no Hotel de Seteais obrigou à criação de um espaço coberto para abrigar as bombas de água para rega e para as da própria rede contra incêndios.
Cientes do impacto negativo que necessariamente adviria duma nova construção nos jardins, com essa finalidade, optou-se pela sua instalação no fundo do tanque poente, que se encontrava vazio e abandonado.

A construção em curso será coberta por uma laje impermeabilizada, a qual servirá de fundo a um espelho de água, criando no final da obra a ilusão de um tanque cheio.

Com os melhores cumprimentos.


Luís de Pinho Lopes
Arquitecto Assessor Principal
Instituto Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico, I.P.
Palácio Nacional da Ajuda


Aqui, 'preto no branco', bem espelhada a dimensão de a quanto pode chegar a pacóvia opinião instalada num gabinete oficial. [para facilidade de acesso, no fim deste post, segue a transcrição da minha resposta a qual também é constante do arquivo deste blogue].* Enfim, apesar da minha reacção – de autêntico David contra Golias, que me levou a outras diligências, inclusive, a reunião pública da Câmara Municipal de Sintra – a coisa continuou e fez-se, tal qual o Arq. Pinho Lopes dera a entender.

Posteriormente, desde então e até ao presente, adjacente à casa das máquinas, tem funcionado um género de zona de arrumos, viveiro, lixeira, nitreira, em que o desrespeito pelo espírito do lugar, pelas memórias do lugar, não tem adjectivos que o qualifiquem. É a trampa institucionalizada, ali na curva da estrada, a céu aberto, num descaramento que confunde quem por ali passa. Como é possível? Por favor, passem por lá, inteirem-se e reajam.

A Parques de Sintra Monte da Lua é a entidade que, em nosso nome, poderá intervir dando satisfação a tanta indignação de cidadãos cuja reacção, lamentável mas certamente, não se traduziu em públicas tomadas de posição. Bom seria que, em nome da História e da dignidade, pudesse a PSML desencadear medidas que levassem à reposição de estado inicial da peça que foi objecto de atentado tão ignóbil e que poderia constituir exemplo paradigmático do que, apesar da crise e da austeridade vigente, é possível fazer para não comprometer a integridade do património.

Pessoalmente, só tenho os melhores motivos para confiar no resultado da intervenção do Presidente do Conselho de Administração da PSML, Prof. António Ressano Garcia Lamas, que conhece o assunto em todas as suas vertentes, que comigo se escandalizou perante o despautério. Aguardo. Aguardemos com a esperança que ainda não nos abandonou, sabendo como podem ser longos processos como este.

_____________________________

*Eis a transcrição da minha resposta:


Exmo Senhor
Arquitecto Luís Pinho Lopes
Arquitecto Assessor Principal do IGESPAR

Senhor Arquitecto,
Acuso a recepção do texto que V. Exa. acaba de enviar, através de correio electrónico, acerca da construção de uma casa de máquinas em Seteais, construção essa que, segundo razão apresentada por V. Exa., decorreu da necessidade de, no contexto da intervenção em curso no Hotel de Seteais, criar "(...) um espaço coberto para abrigar as bombas de água para rega e para as da própria rede contra incêndios (...)".

Perante a necessidade em apreço e "(...) ciente do impacte negativo que necessariamente adviria de uma nova construção nos jardins (...)", o IGESPAR não hesitou em despachar favoravelmente a proposta de destruição de um tanque, instalado a poente da propriedade, aproveitando a sua estrutura para concretização do propósito supra enunciado.

Acabo de ler. Incrédulo e perplexo, leio e releio o texto. V. Exa. deixou-me completamente pasmado. Talvez, dentro de alguns dias, consiga eu classificar a atitude do IGESPAR. Todavia, neste momento, sinto-me incapaz de afirmar seja o que for, para além de adjectivar como incrível a ligeireza com que, de uma penada, sem que se lhe tenha colocado qualquer questão, a mínima dúvida, no âmbito de matérias afins da conservação, preservação e restauro, uma entidade com o perfil daquela onde V. Exa. exerce actividade, terá contribuído para a destruição do equipamento em causa.

Porventura, poder-se-ia ter pensado em, enterrar uma insignificante casa de máquinas, em qualquer canto da propriedade, solução que jamais contribuiria para a criação de qualquer impacto negativo, uma vez que, literalmente, remetida para o subsolo, não se veria. Afinal, o tanque estava mais à mão e quem se mostrava aparentemente preocupado com a criação de impactos negativos, num contexto que os não merece, acabou por destruir um bem patrimonial articulado com um edifício classificado. Para o efeito, travestiu-o, através de uma solução que, em termos estéticos, não só ofende qualquer noção de bom gosto, como também se posiciona contra o espírito do lugar.

Se, na Administração Pública, há serviços onde, quotidianamente, se lida com conceitos tão pertinentes, como o do espírito do lugar - tantas e tantas vezes invocado, sempre que se analisa os argumentos pró e contra de uma projectada intervenção, no contexto da fase de diagnóstico de situação - naturalmente, o IGESPAR evidenciar-se-á pela frequência.


Porque não se me coloca a dúvida de que o conhecimento de tão básico e comum conceito, faça parte do conjunto de instrumentos de análise que pressupõe actividade prática e quotidiana dos técnicos do IGESPAR, acreditará V. Exa. que é com a maior dificuldade, com inequívoco pudor, que ouso pôr em causa o discernimento que, a montante, terá justificado e prevalecido na decisão de destruir o tanque.

É que, Senhor Arquitecto, permita-me lembrar, o tanque, sumarissimamente referido por V. Exa. como vazio e abandonado, na realidade, fazia parte do tal espírito do lugar. Instalado a poente da propriedade, parte integrante do património da propriedade, também fazia parte de um património virtual, de memórias de milhares de sintrenses e forasteiros que, nas suas caminhadas à volta de Seteais, a caminho da Penha Verde ou de Monserrate, sempre ali se detiveram, numa especial relação com o local.

Como bem sabem os técnicos do IGESPAR que, tão inadvertida quanto inopinadamente, terão avalizado a decisão de o destruir, aquele não era apenas um ingénuo tanque, num particularmente conhecido recanto da propriedade de Seteais. Tanto não era que bem o demonstra o equipamento de lazer, ainda hoje bem visível, à cota alta, apenas uns dois metros acima. Refiro-me, como V. Exa. e os técnicos do IGESPAR bem conhecem, ao balcão dotado de uma série de bancos, do tipo conversadeira, aliás, muito bem integrados e enquadrados por uma vegetação em íntima afinidade.

O tanque, Senhor Arquitecto, era parte integrante de um bem patente, inequívoco e evidente dispositivo de lazer que articulava com a restante propriedade. Verdade é que estava vazio. Não menos verdade é que estava abandonado, muito naturalmente, devido à incúria do concessionário do hotel, cujos objectivos não passavam pela preservação de tal equipamento.

Contudo, Senhor Arquitecto, tal situação de abandono que, em normais circunstâncias, animaria o proprietário - o Estado Português, agora localmente representado pela empresa de capitais públicos Parques de Sintra Monte da Lua - à necessidade da recuperação da peça, lamentavelmente, acabou por provocar uma atitude de inqualificável desprezo por parte do IGESPAR, afinal, a última entidade que se consideraria possível a patrocinar um tal desconchavo.

Como V. Exa. sabe, Senhor Arquitecto, para que seja considerado objecto a preservar, independentemente da sua eventual classificação, um bem patrimonial pode ser coisa bem simples, ingénua. De qualquer modo, sempre estará afectado por particular sofisticação e sempre, sempre relacionado com a história, com o espírito do lugar e em íntima articulação com as pessoas. Com todos estes items em presença, o simples facto de estar abandonado e vazio não podia ser lido, entendido, como peça a abater.

De facto foi abatido, irremediavelmente destruído o tanque. E tudo tem vindo a acontecer, ao longo de meses, apesar de ter suscitado um movimento de opinião, de o assunto ter sido levado a reunião pública do executivo autárquico e a sessão da Assembleia Municipal de Sintra, embora tenha sido enviada correspondência ao IGESPAR manifestando o desagrado da população e de ter sido presente queixa à UNESCO, junto da delegação portuguesa e em Paris, de terem saído artigos na imprensa e publicadas inúmeras mensagens na blogosfera.

Consumou-se a destruição. E, por fim, Senhor Arquitecto, como se não nos bastasse a ofensa de que fomos objecto - de ter sido subtraído à memória colectiva um bem que tanto significado tinha para a comunidade, substituindo-o por uma prosaica casa de máquinas - ainda se permite V. Exa., em nome do IGESPAR, vir desassossegar-nos com a confirmação daquilo que já sabíamos há muito, ou seja, que "(...) A construção em curso será coberta por uma laje impermeabilizada, a qual servirá de fundo a um espelho de água, criando no final da obra a ilusão de um tanque cheio."

Efectivamente, Senhor Arquitecto, para rematar tanta controvérsia, o IGESPAR não podia ter dado cobertura a solução tão polémica como a cosmética de um ilusionismo de tão flagrante mau gosto, que resvala nos limites do mais pacóvio novo riquismo, algo que, tão sincera e desassombradamente como todas as precedentes palavras, lhe confirmo que não esperava.

Há um facto consumado de destruição mas o assunto não está encerrado. E, a propósito, Senhor Arquitecto, encerrado, isso sim, e com o aval do IGESPAR, está o terreiro de Seteais, medida altamente discutível que não esgota o rol de infelizes decisões na zona. Há dias, convém lembrar, outra ofensa, desta feita ao Poder Local, na pessoa do Presidente da Junta de freguesia de São Martinho, a quem o concessionário do hotel se permitiu recusar a entrada no recinto, depois de o autarca se ter identificado e anunciado que ia em missão de esclarecimento.

Mesmo defronte, na Quinta do Vale dos Anjos, está em curso a designada reconstrução de uma casa de habitação, licenciada pela Câmara Municipal de Sintra, cujo processo já está nas mãos do douto Tribunal Administrativo local.

A história de Seteais, em particular a luta pela manutenção de um acesso público ao local, ao longo de mais de duzentos anos, salpicados de curiosas peripécias, faz parte da História e prossegue, nos nossos dias, com o acrescento destes lamentáveis episódios. No entanto, apesar dos erros de percurso, as instituições continuam a funcionar e, como outrora, com os cidadãos atentos ao desenrolar dos factos, honrando a dignidade de uma nobre herança, plasmada nas posições de tantos sintrenses, que José Alfredo da Costa Azevedo tão bem relatou.

Finalmente, cumpre destacar que o IGESPAR se tem dado ao cuidado de responder às tomadas de posição que lhe têm dirigido alguns cidadãos, entre os quais me incluo. Pela raridade da atitude, não deixo de a assinalar, ao subscrever-me,
Com os melhores cumprimentos,

João Cachado


quinta-feira, 13 de outubro de 2011


Seteais: o picadeiro?
- olhem, foi-se a tenda…



Há uma data de tempo que, novamente, ando para me juntar a todos quantos se manifestaram solidários com a minha denúncia, contra a instalação do picadeiro coberto, ao abrigo de uma improvisada tenda, de branco oleado, em terreno adjacente ao relvado de Seteais, que, flagrantemente, desrespeitava o espírito do lugar. Tratava-se de um evitável abastardamento, numa atitude inqualificável por parte do concessionário do hotel.

De facto, não vale tudo. Nem tudo está à venda e, coisas há, que nem preço têm. O grupo Espírito Santo não podia deixar de ter em consideração que aquele é um espaço classificado, que pressupõe uma actuação irrepreensível, no âmbito da defesa do património. Assim sendo, deveria ter tido o máximo cuidado quando, naquela sofisticada área, autorizou que se tivesse acrescentado um volume que, para todos os efeitos, passou a colidir com os bens objecto da concessão do Estado Português.

Como sabem, a empresa de capitais públicos Parques de Sintra Monte da Lua é a entidade que, em nome do Estado Português, da comunidade sintrense e dos cidadãos em geral, defende o património de Seteais, estando mandatada para articular com o concessionário, em relação a quaisquer problemas suscitados durante o prazo de vigência da concessão. Foi ao Prof. António Ressano Garcia Lamas, Presidente do Conselho de Administração da PSML, que, em nome de todos quantos se sentiam atingidos por aquela instalação improvisada, solicitei a intervenção que se impunha.

Agora, que o problema foi resolvido, resta agradecer. Faço-o numa altura em que, reconhecendo o estupendo trabalho que a PSML tem desenvolvido sob a liderança do Prof. Lamas, o Governo decidiu confiar à empresa, além do riquíssimo património que já lhe estava atribuído, a responsabilidade pelos Palácios da Vila e de Queluz, distinção com a qual também já me congratulei, precisamente, no penúltimo texto publicado.


É muito grande o prazer de poder escrever estas palavras. Infelizmente, ainda podia ser maior. É que, por outras razões, Seteais continua na berlinda… Amanhã voltarei ao lugar mas com outro assunto por resolver.

(continua)


*Consultar, no arquivo do blogue, os seguintes textos: Seteais, que espírito para o lugar? [14.01.2011] e Seteais, omissões pouco honrosas [17.01.2011].




quarta-feira, 12 de outubro de 2011


Seteais,
novamente a Quinta do Vale dos Anjos


Acabo de passar junto à Quinta do Vale dos Anjos. Se bem se lembram – e, se assim não for, só têm de consultar o arquivo do blogue – fui eu quem, pela primeira vez, denunciou a questão da construção da moradia do Engº Pais do Amaral, em frente ao Palácio de Seteais e a uma cota mais do que este edifício classificado.

Em conversa com o encarregado da quinta, confirmei que, parada há meses, a obra não terá continuado devido à falência do construtor. Observei alguns pormenores que me levaram a concluir ter sido a construção suspensa intempestiva, mesmo algo precipitadamente. No entanto, uma boa amiga, pessoa muito interessada na causa da defesa do património de Sintra, e, geralmente, bem informada, garantiu-me que a obra terá sido embargada.

Tal como, em tempo oportuno, tive oportunidade de explicitar, no caso vertente, não falta é motivo para embargar a obra. Infelizmente, desconheço qual terá sido o destino do processo de averiguações que foi presente ao Tribunal Administrativo de Sintra no sentido de apurar as circunstâncias que permitiram a concessão de licença de construção em local tão crítico, pelo que não disponho de meios para assegurar a veracidade desta informação.

Assim sendo, muito grato ficaria se, acerca do assunto, algum leitor tiver informações que possa e queira fazer o favor de a partilhar connosco. Por outro lado, neste, como noutros casos, muito beneficiaríamos se a comunicação social não largasse estas questões. Há três anos, na sequência da minha denúncia, Luís Filipe Sebastião, do Público, agarrou o assunto em grandes parangonas e página inteira daquele jornal. Não haveria maneira de repegar?

(continua)

quinta-feira, 6 de outubro de 2011




Monte da Lua,
sector público, graças a Deus!

Num tempo em que tanto se tem diabolizado o sector público e a gestão do sector empresarial do Estado, aparentes sedes de todos os males que afectam a sociedade portuguesa – como se, em compensação, no privado estivessem concentradas todas as virtudes afins da redenção da Pátria… – soube muito bem conhecer o teor de uma resolução que a Secretaria de Estado da Cultura divulgou na semana passada.


É com o maior regozijo que passarei a referir-me ao facto, concedendo-lhe o máximo que me conferem as limitadíssimas possibilidades do sintradoavesso, ou seja, um inequívoco e merecidíssimo destaque de primeira página. Afortunadamente, por vezes, apenas resta curvar-me perante o acerto de determinadas decisões oficiais, que não permitem qualquer leitura, mais ou menos pejorativa, no avesso ou de viés, que apouque a justeza da decisão.

No caso vertente, a coisa tem um sabor muito especial já que, estou certo, o impacte da sua concreta aplicação beneficiará Sintra de modo inequívoco. Enfim, depois deste intróito, já terão entendido que pretendo partilhar a notícia de ter sido alargada a mais dois palácios, o Nacional de Sintra e o de Queluz, a abrangência da gestão da Parques de Sintra Monte da Lua, que já era responsável por um património do mais alto gabarito nacional e internacional.

Antes e depois

Ao longo de quase uma dúzia de anos de existência, esta empresa cuja responsabilidade social está distribuída por capitais públicos provenientes dos sectores da Economia, Agricultura, Cultura e da Câmara Municipal de Sintra, demonstra cabalmente como é absolutamente determinante a qualidade das pessoas que assumem a administração, direcção e gestão das entidades.

De facto, os seus primeiros cinco anos, sob a liderança do biólogo Serra Lopes, resultaram em memória absolutamente desgraçada de uma actuação sem rumo, titubeante e lesiva dos interesses de Sintra. A propósito, convém não esquecer que os munícipes continuam desconhecendo o desfecho das investigações levadas a cabo pela Polícia Judiciária, no sentido de apurar as irregularidades que vieram a público.


O período subsequente, com o Prof. António Ressano Garcia Lamas como Presidente do conselho de Administração, vem-se pautando por passos certos, da maior competência, numa segura caminhada de muito, muito trabalho, invariavelmente coroado por sucesso, que tenho tido o privilégio de acompanhar, tão de perto e frequentemente quanto possível.

Ponta de esperança

Não me surpreende, sequer minimamente, que, no seu comunicado, a Secretaria de Estado da Cultura saliente como terá pesado para a decisão “(…) a eficácia da gestão da própria Parques de Sintra Monte da Lua, comprovada já por um crescimento de 18% nos seus resultados operacionais (…)”. Esta atitude de oficial reconhecimento não passa do corolário natural de sucessivos êxitos que colocam a empresa na galeria das melhores do país, apontando-a como referente exemplar.

Os fiéis leitores deste blogue, habituados às minhas referências encomiásticas ao Conselho de Administração da PSML e à motivadíssima equipa de colaboradores, que estimo como bons amigos, compreenderão a verdade da minha alegria. Porém, na condição de desassossegado permanente, não posso deixar de chamar a atenção para um assunto de grande preocupação que gostaria, não só de ver equacionado mas também a caminho de solução.


Trata-se da questão do acesso dos visitantes aos bens patrimoniais, tão importantes e sofisticados, sob custódia da PSML. Muitas vezes tenho sublinhado a ideia de que o próprio modo como se acede ao património já faz parte do acto cultural da visita. Independentemente da existência de pequenas bolsas de parqueamento de proximidade, neste momento em que a PSML também passa a tutelar os palácios da Vila e de Queluz, finalmente, poderei ter esperança no empenho da autarquia quanto à instalação dos parques periféricos de estacionamento, articulados com soluções integradas e expeditas de transporte público cobrindo estes e os outros destinos?


Pois será, precisamente, no contexto do serviço público que se perfilam as condições mais propícias e consentâneas com os interesses em presença. Deixem que alimente esta ponta de esperança. Não há crise nem troika que justifiquem mais adiamentos. A própria austeridade só pode ser alavanca da qualidade dos serviços que os cidadãos merecem. Em tempo de austeridade, soluções austeras. Não se pode é perder mais tempo.