- o que o luto não cala
Neste nosso desgraçado país que continua sendo tão manifestamente afectado pela enraizada cultura de desleixo - também fruto dos mais altos índices de analfabetismo e iliteracia da União Europeia - até que ponto será necessário lutar, no sentido de tornar eficazes os efeitos da intervenção cívica de denúncia, contra cada evidente caso que ponha em risco a segurança de pessoas, ao ponto de lhes causar a morte?
É uma questão que sistematicamente se me coloca e para a qual continuo sem resposta. Recentemente, Loures, Camarate, o horror das inundações, a morte em Belas. Por analogia, ocorre-nos o caso de Entre-os-Rios, que tanta e natural consternação causou, para que nos perguntemos se seria de esperar que o colossal processo de mediatização decorrente, em vez de acicatar a sempre latente atitude de voyeurismo, poderia desencadear a reacção cívica que se impunha.Esperava eu que afirmativa fosse a resposta àquela questão. E assim pensava, tendo em consideração aquilo que, sem presunção, julgo ser o meu profundo conhecimento da realidade nacional, em consequência da actividade como técnico superior do Ministério da Educação, durante anos e anos envolvido em projectos de intervenção integrada, em Trás-os-Montes e Alto Douro, Douro Litoral, Minho, Beiras, Alentejo e Açores, para além da zona metropolitana de Lisboa, em contacto directo com uma imensa diversidade de realidades locais.
Previa que uma calamidade, com a dimensão de Entre-os-Rios, não só acabasse por constituir um sério ponto de viragem, um definitivo alerta contra a chaga nacional que é a sistemática falta de manutenção de todo o tipo de infra-estruturas, mas também contribuísse para favorecer o fermento de uma atitude cívica inconformada e exigente, que não se satisfizesse apenas com o ressarcimento decorrente da recepção de indemnizações.
A verdade é que, num momento então propício e num terreno que era preciso ter explorado convenientemente, não apareceram as associações cívicas de diferentes perfis, fazendo o trabalho de mobilização afim da motivação e consciencialização para o envolvimento das populações, cuja concretização permanece totalmente pertinente, agora, na sequência deste infeliz episódio da intempérie dos passados dias 10 e 11 de Fevereiro.
Lágrimas de indignação
Conhecidas, lamentáveie e evitáveis causas, no âmbito da proverbial e fatídica cultura do desleixo, estão a montante das trágicas consequências do acidente de Belas. Naturalmente, não há entidade disposta a assumir a mínima responsabilidade e, muito pelo contrário, ao vislumbrar qualquer hipótese de que tal possa acontecer, logo trata de sacudir a água do capote...
Veja-se o caso da Câmara Municipal de Sintra. No dia 27 do mês passado, por ocasião da primeira reunião pública após a tragédia, o executivo municipal expressou pesar pelas duas mortes, fez um minuto de silêncio e o Senhor Presidente lembrou que aquela via é uma estrada nacional. Para bom entendedor... O Senhor Vice-Presidente enalteceu o empenho dos serviços municipais nas tarefas de remediação e o Senhor Vereador João Soares congratulou-se com o facto de a JF de Monte Abraão ter suportado os encargos com o funeral, esperando que o município tudo faça no sentido de minorar o sofrimento das crianças filhas das vítimas.
E pronto. Tudo resolvido. Como sempre, toda a gente de consciência tranquila. Entretanto, a família das duas jovens irmãs – que, duma assentada, perderam a vida em Belas - já anunciou a intenção de processar a Câmara Municipal de Sintra e a empresa Estradas de Portugal EP por homicídio por negligência, contando com o testemunho de pessoas que já se tinham queixado quanto ao péssimo estado em que o muro se encontrava.
Indignação consequente
No âmbito de uma tragédia que, assim, para sempre destroçou e enlutou uma família que podia ser a minha ou a vossa, quero manifestar a mais profunda admiração pela decisão que tomaram. Contudo, no dificílimo momento que estarão atravessando, adivinho como estas pessoas enlutadas gostariam de sentir a solidariedade consequente de todos os cidadãos que se indignaram perante a evitável perda destas duas vidas e não se conformam com expressões de pesar que não passam de formalidade de circunstância.
Com isto, e, através deste meu singelo contributo, apenas pretendo dizer da necessidade de dar público manifesto dos sinais de desconforto e de mal estar, suscitados por todas as ausências e omissões de atempada actuação dos serviços da administração central e local, que suscitaram os efeitos acumulados na origem do infausto acidente.
Estou em crer que, só deste modo, transformando em atitude cívica, responsável e consequente – aquilo que, assim não sendo, apenas entendo como lágrimas de crocodilo – estaremos à altura do momento de luto, incapazes de admitir atitudes que, escandalosamente, como no caso de Entre-os-Rios, acabem por ilibar os eventuais responsáveis.
1 comentário:
Dr João Cachado,
Há anos que acompanho a sua actividade no Jornal de Sintra. Principalmente, fui seu leitor durante o tempo em que escreveu sobre a vida musical. Quem me dera que voltasse a essa escrita que nunca mais teve lugar no Jornal.
Li nas letras pequenas no fim dos seus artigos que eles também são publicados neste blogue. Eu não sei nem me interessa como se trabalha com o computador. Quase com 70 anos, tenho mais que fazer. A minha mulher, mais dada às novas ferramentas, faz o favor de escrever esta mensagem para lhe dizer o seguinte:
- Reparei que alterou três vezes o seu artigo do dia 28 de Fevereiro acerca da tragédia de Belas;
- Concordo totalmente, ponto por ponto com o que escreveu;
- Espero que este artigo seja publicado no Jornal de Sintra porque ainda está a tempo e é muito certeiro e atingia outro público que como eu não trabalha com estas máquinas;
Estou reformado. Fui professor durante toda a vida. Felicito-o também pelas suas opiniões sobre o sistema educativo. Vê-se que sabe do assunto. Na realidade, a razão profunda dos fracos rendimentos deve encontrar-se ainda na grande taxa de analfabetismo em Portugal. Mas o que se está a passar no Ministério é uma loucura total. Ainda bem que não tenho de aturar esta situação que é do maior desgosto.
Se a minha mulher estiver para isso, voltarei a este contacto.
Com os cumprimentos,
José Luiz
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