Festival de Sintra 2010*
Durante alguns anos, pude considerar este Festival como o mais sofisticado produto cultural de Sintra. No entanto, nas últimas edições, devido a uma programação extremamente controversa, aconteceu aquilo que não devia e, como já tive oportunidade de largamente justificar,* nomeadamente, a partir do momento em que, sem válido critério, se decidiu a inclusão dos designados contrapontos.
Tanto quanto julgo poder dar conta, tudo se desenrolou à revelia dos conceituados directores artísticos das vertentes musical e de bailado, respectivamente, Dr. Luís Pereira Leal e Mestre Vasco Wellenkamp cuja competência, mesmo em tempo de vacas magras, sempre cuidou e foi no sentido de não suscitar qualquer quebra de qualidade.
Volto aos contrapontos. Se, como parece, a intenção era a conquista de novos públicos para o Festival, o modo como se concretizou não podia ser mais polémico. De facto, o programa transformou-se num saco de gatos onde tudo cabe, sem preocupação de coerência interna, ignorando que a necessidade de articulação harmoniosa dos eventos tem de obedecer a uma inequívoca lógica temática, de compreensão imediata e legível.
E, na realidade, o que tem sucedido era evitável. É perfeitamente possível conciliar o respeito pela tradição, os pergaminhos do Festival e a demanda de novas audiências, através das mais diversificadas iniciativas, mas sempre em íntima relação com algo que tem faltado definir, isto é, um tema geral, que funcione como abóbada do espaço onde todos os eventos hão-de interagir e conviver numa desejável interdependência.
É neste contexto que, mesmo para a edição de 2010, ainda seria possível anunciar a unidade temática que funcionaria a montante das atitudes de animação cultural, hoje em dia, indissociáveis da realização de qualquer festival. Porque não envolver um ciclo de cinema e/ou exposição, teatro, concursos de alunos das escolas de música, conferências, oficinas de expressão plástica, corporal, dramática, etc,?
Julgo poder opinar que, em função das gerais restrições de ordem financeira impostas pela situação de crise global, não será previsível programar, por exemplo, algo de semelhante à corajosa iniciativa do Senhor Presidente da Câmara, quando convidou o Prof. António Damásio a proferir uma Conferência de Abertura numa das anteriores edições do Festival de Sintra que esgotou a lotação do Centro Cultural Olga Cadaval.
No entanto, é perfeitamente previsível e programável, a possibilidade de convidar um ou mais musicólogos da nossa praça - têmo-los de alto gabarito - para se pronunciarem acerca de assuntos afins da comemoração das aludidas efemérides que, em articulação com o tal tema central que urge anunciar, constituam momentos fortes de informação e de formação do público que for possível cativar.
Num tal quadro de referência pode continuar-se a promover os concertos e recitais nos palácios, quintas ou igrejas locais, e, por outro lado, acolher públicos de todas as idades, dos mais diversos perfis, tanto nos auditórios e salas de ensaios e polivalentes do Centro Cultural Olga Cadaval, como noutros locais mais afins, dando continuidade à realização dos concertos das bandas mas, sublinho, sempre na submissão ao grande tema geral que presidiria à edição.
Não é difícil, num ano em que, por exemplo, se comemora os cento e cinquenta anos do nascimento de Gustav Mahler ou o dos bicentenários do nascimento de Chopin e Schumann, partir para um desafio abrangente que tenha em consideração as ressonâncias românticas e o quadro de privilégio onde, em Sintra, se desenrolam os eventos.
Assim se poderá reanimar o Festival de Sintra, polivalente, multifacetado, mais formal numas circunstâncias e menos noutras. Quanto aos contrapontos, pois sim senhor, mas interligados, lógicos, inteligíveis e inteligentes, preservando a fama e o proveito que granjeou ao longo de décadas, de muito empenho e dedicação, que não podem continuar sendo postos em causa com a ligeireza dos últimos anos.
PS:
1. No passado dia 3 do corrente, acerca desta questão, troquei impressões com um grande melómano, íntimo da Sra. Marquesa de Cadaval, que, durante muitos anos, foi figura de absoluta referência no Festival de Sintra. Confirmou totalmente o que aqui subscrevo, manifestando o seu profundo desgosto em relação à inequívoca descaracterização de uma iniciativa que, a nível nacional e, em certos casos, mesmo internacional, já era um marco da vida musical.
2. Penso que, no futuro, a vertente de Bailado do Festival deveria tornar-se independente, de tal modo que Sintra pudesse vir a encarar a hipótese de promover uma pequena temporada, noutra altura do ano, mais propícia, aproveitando a altura em que as companhias igualmente se deslocam em tournée.
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* Para além de uma série no «saudoso» Jornal de Sintra, vd., entre outros, os seguintes textos sobre o assunto no sintradoavesso:
- Festival de Sintra 2009, palmarés comentado, 11, 12, 13 e 14 de Junho de 2009;
- Vengerov maestro, um equívoco, 15 e 16 de Junho de 2009;
- Alcobaça, a Festa da Música, 17 de Junho de 2009;
- Revisão da matéria, 18 de Junho de 2009;
- Espinho, Estoril e Póvoa de Varzim, festivais culturais, 6 de Julho de 2009;
- Grandes festivais, 7 de Agosto de 2009.
NB: - Com pequenas alterações, trata-se do texto publicado no nº 1 do Correio de Sintra de 1 de Março de 2010.
4 comentários:
Olá João. A primeira versão desta prosa foi publicada no novo Correio de Sintra e não 'da Cidade'. Abraço.
Viva João,
Pelos vistos não desistes desta luta a favor do festival de Sintra. Francamente acho que não vale a pena. A organização do festival tem gente que não percebe nada do que é programar uma coisa destas e que já prejudicou Sintra e o seu festival sem apelo nem agravo. Como escreveste agora e já nos anos passados, nem o Pereira Leal nem o Wellenkamp têm qualquer culpa do descalabro a que se chegou. Mas, infelizmente, não denunciaram a situação, o que é verdadeiramente de lamentar porque assim autorizam também que aquela barafunda dos «contrapontos» descaracterize o festival que, na actualidade, está irreconhecível. Eu admiro a tua insistência mas prevejo que vai prevalecer a ignorância de quem programa os contrapontos, alguém de quem só se conhece o atrevimento da ignorância. A tua luta não te leva a parte nenhuma. O Festival de Sintra, como se diz informalmente, "já foi". Hoje nada é ou, quanto muito, uma sombra remota do que foi em tempos: um festival discreto, de boa qualidade e com momentos tão excepcionais que tinha os melhores do mundo! Não vais conseguir seja o que for, deixa que os ignorantes afundem o festival definitivamente. Há-de caír de podre, sem patrocinadores, numa altura em que qualquer cêntimo é regateado. Talvez mais tarde renasça com outra gente, com gente culta e informada.
Um abraço,
José João Arroz
Neste ano o programa já tem que estar feito e concerteza com concertos para bebés à mistura com uma ópera patusca e uma daquelas peças de teatro que não lembra a ninguém. E ainda se queixam que o público não aparece...
Joaquim Carmo
Caro João,
Como Vês, afinal volto à carga.
As coisas têm sido muito bem apontadas. O que se trata aqui é da programação do Festival de Sintra e em especial dos "contraponto" e da sua falta de qualidade em relação ao resto da proposta do festival em geral. Aquilo não é um saco de gatos, é uma barafunda total onde até cabem concertos para bebés à mistura com
as coisas mais desconexas como o Requiem de Mozart sem qualquer relação com a ópera. Ora o que tens reclamado é a necessidade de relação interna de todos os eventos e que estes tenham qualidade. Eu próprio já escrevi sobre isto ou no ano passado ou há dois anos. Não me culpo por não ter dado o meu contributo. Estou para ver se este ano continua a mesma história.
Abraço do
José João Arroz
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