[sempre de acordo com a antiga ortografia]

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Porque toda a carne é como a erva, e toda a glória do homem como a flor da erva.
A erva seca e a flor cai.

1. São Pedro 1, 24



Pedro Maria,
meu neto e pretexto


Hoje, dia em que faz seis anos, o Pedro Maria ainda não compreende estas que são palavras sábias e perenes. De algum modo, no entanto, por via dos valores e princípios que, à sua volta, vão sendo observados, tanto pela família mais próxima como alargada, sempre tem ele vivido e, espero bem, pela vida fora, continuará a viver no respaldo e ao abrigo daquelas ideias-chave, em epígrafe.

A transitoriedade e o carácter efémero da vida constituem matizes de um mesmo quadro de referência, nos termos do qual o apelo ao lúcido e inevitável despojamento da matéria é coisa absolutamente decisiva, para ser atendida e posta em prática em todos os tempos, de tal modo que prevaleça o espírito e que, liberto este das amarras dos bens tangíveis, possa aceder à Arte, à Beleza, ao Conhecimento, como sublimes atributos da própria ideia da divindade.

No aniversário de um menino que me é tão querido, em dia de celebrar o futuro, penso nos meninos que, aqui perto e em todas as latitudes, também hoje, vivem e morrem a anos luz destas preocupações. E, de facto, assim é porque nos vamos esquecendo de que “(…) a glória do homem é como a flor da erva (…)” O santo homónimo do meu neto bem deixou este pensamento à posteridade mas os tempos não vão propícios à sua assunção…

A propósito, sim

Por uma série de afinidades e conotações, não consigo deixar de relacionar a reflexão que convosco partilho com uma peça fundamental do romantismo alemão musical tardio. Trata-se de Ein deutsches Requiem, op. 45 de Johannes Brahms (Hamburg, 1833-Wien, 1897) obra datada de 1868 que, apesar do título, não reveste a forma da canónica missa que, muito naturalmente, se associa ao conceito de requiem.

Neste caso, Brahms procedeu a uma tão livre como criteriosa selecção de estratos da Bíblia, traduzidos para alemão, que, nada tendo a ver com o latino ordinário da missa de defuntos, nos remetem para uma visão despojada, necessariamente mais serena da existência humana, talvez mais próxima da mundividência cristã protestante, ainda que o compositor não fosse crente.

Hoje, dia especial de celebração da Vida – que, com a minha marca, apesar de mim, continua no Pedro Maria – em mim, o são convívio com a Morte, outra face da dicotomia. O homem crente que sou, conjuga-as no trilho de uma síntese triádica, em que ambas se articulam com a Música, a Arte que me é mais próxima e que, como toda a Arte, mais me aproxima do sublime.

Se puderem, acompanhem-me numa audição de Ein deutsches Requiem. Pode não ser hoje mas não deixem de o fazer. Hão-de compreender, estou certo, a razão de vo-lo aconselhar, como mais uma peça do puzzle que muitos de nós vamos jogando ao longo da vida, na tentativa de nos libertarmos do acessório. Se conseguirem chegar onde é possível, também estarão o Pedro Maria e todos os principezinhos deste mundo e do outro…

5 comentários:

Pedro Soares disse...

Caro Dr. Cachado,
Parabéns à criança e à família. O seu texto é muito bonito. Mas só o Dr Cachado é que ia lembrar-se de falar da morte no aniversário do garoto... Sem grandes poesias vejo os seus netos e os meus dentro de alguns anos a sairem do país à procura de destino mais
promissor talvez por
essa Europa fora.
É preciso educá-los para isso
porque em Portugal já se percebeu
o que podemos esperar.
Abraço,

Pedro Soares

Saraiva Trigo disse...

Já uma vez tinha referido o Requiem alemão do Brahms. Fui verificar que foi a propósito do aniversário de D. Fernando II. É uma obra muito especial. Obrigado por ter recordado.
Saraiva Trigo

Anónimo disse...

Parabéns,avô!Bendito neto,cujo avô é este homem que admiro profundamente e que tenho por amigo.Parabéns ao Pedro Maria e que tenha o privilégio de poder continuar a ter por perto,este avô,por muitos e longos anos,pois assim a maior e mais importante aprendizagem da vida,já está garantida à partida.
Margarida Mota

Rosário Peres disse...

Mensagem muito interessante. Às vezes, as coisas muito pessoais, podem e devem ser partilhadas.
Rosário Peres

Anónimo disse...

A morte também é vida porque sobrevive no outro ou outros... Ou melhor na realidade nada morre, pelo menos na sua totalidade - a erva seca ou as flores que caem ajudam à formação de novas ervas e de novas flores...

mpm