[sempre de acordo com a antiga ortografia]

terça-feira, 25 de outubro de 2011



Impressões musicais [IX]



Como verificam, estou um pouco atrasado. Depois do dia 18, já ocorreram outros eventos na Gulbenkian acerca dos quais vos darei nota. Por isso, desde ontem e nos próximos dias, aparecem umas impressões de enfiada. Não se espantem porque, depois, entraremos no ritmo certo.

3ª Feira, 18 de Outubro, 19,00 h – Arcadi Volodos, Recital de Piano. Grande Auditório da Fundação Gulbenkian.

Arcadi Volodos é um dotadíssimo pianista, acabado de entrar na casa dos quarenta, cuja carreira já acompanho há anos, umas vezes na Gulbenkian, outras em Sintra - enquanto a organização do Festival ainda tinha dinheiro para lhe pagar o caché... - e também em Salzburg, onde tais problemas de falta de dinheiro não se colocam com tanta premência até porque os nossos amigos austríacos fazem mesmo reflectir no preço dos bilhetes o real valor dos encargos.

De qualquer modo não deixa de ser interessante assinalar que, só na Gulbenkian, será possível assistir a um recital por um destes galácticos, como Volodos, por doze euros e meio… Mas vamos ao que interessa, senão lá se vai a meia dúzia de parágrafos que me pediram por cada evento. Já sabem que não entrarei em detalhes biográficos, que encontrarão na net, pelo que passo já às peças e a umas notas acerca da sua interpretação.


Escolheu um reportório eminentemente romântico, começando por nos propor a Sonata para piano em Lá menor, D.784 de Franz Schubert (1797-1828). Datada de 1823, emparceira com outras peças da maturidade do compositor, tais como as famosas Fantasia Wanderer ou Sinfonia nº 8, Incompleta e, ainda que tenha recebido o epíteto de ‘Grande Sonate’ não tem a dimensão das de quatro andamentos, como a D 959, em Lá Maior, por exemplo.

Volodos foi pródigo na transmissão de toda a carga emocional da peça, nos mais variados registos do primeiro andamento, Allegro giusto, em que prevalece uma introspectiva melancolia. Seguidamente, no Andante, soube pôr em evidência toda a intrincada rede de melodias, recorrendo a pausas profundíssimas, quase no limite do suportável, para que no Allegro vivace final concedesse a sensação de ansiedade, a caminho do recolhimento e da interiorização de impressões suscitadas por eventuais estímulos e desafios poéticos.

Seguidamente, abordou os três Intermezzi, op. 117 de Johannes Brahms (1833-97), obra dominada por um cariz bucólico, contemplativo, nostálgico, num ambiente que, por vezes, raia o universo de uma certa tristeza, algo dolorosa, servida por uma linguagem tradicional. De facto, continuamos no romantismo, já finissecular, pós wagneriano. Contudo, este mundo de Brahms nada deve ao demiurgo de Bayreuth, aqui referido como pólo de outro germanismo, ainda que coevo.

Finalmente, a pièce de résistance, deste recital de Volodos, a célebre Sonata em Si menor, de Franz Liszt (1811-1886) por muitos considerada a obra-prima deste compositor e, inequivocamente, uma das mais importantes e exigentes, da pianística de todas as eras, peça monumental, com cerca de meia hora, num só andamento, embora com seis indicações de tempo, um sucessivo cardápio de todos os recursos do virtuosismo ao serviço de um conteúdo que não se afasta do ambiente das outras obras interpretadas neste fim de tarde.

Felizmente, posso comparar com outras ocasiões em que Volodos interpretou esta obra, de 1853, meio do século e meio da vida do compositor. Desta vez, se possível é afirmá-lo, ainda conseguiu cavar mais no terreno fértil de Liszt, foi mais fundo, mas sempre muito refinado, com pinças em cada nota, especialmente nos lento assai inicial e final, um verdadeiro tratado, sempre em suspenso do efeito que conseguiria arrancar de certas notas, ou acordes, que todos conhecemos, mas à espera da surpresa.


Com todos estes tão subjectivos parâmetros de apreciação, claro que é muito alta a minha avaliação do recital de Volodos. Sabiamente, proporcionou-nos três momentos muito distintos de uma estética, a romântica, riquíssima, praticamente inesgotável, nos seus inúmeros matizes.

A satisfação plena só não aconteceu devido a tosses, pigarros e quejandos efeitos do tabaco e da idade, perfeitamente incompatíveis com a Música. Como sabem ou calculam, acontece sempre. Mas nem sempre acontece que tenhamos a mesma condescendência… Enfim, atribulações de quem privilegia este contacto directo com a Arte.

PS:

1. Na edição do facebook, este mesmo texto termina com a proposta de audição da Sonata em Si menor de Liszt, interpretada por Volodos, em Bruxelas, uma semana antes de se ter apresentado em Lisboa no recital que comentei. Trata-se de uma gravação clandestina que está disponível no YouTube. Se quiserem acreditar, na Gulbenkian ele ainda esteve melhor... Vale mesmo a pena ouvir.

2. Só agora me dei conta de não ter reparado que, antes do recital ao qual hoje me refiro, deveria ter escrito sobre a récita de ópera em São Carlos. Fá-lo-ei da próxima vez, desobedecendo à ordem cronológica.



1 comentário:

Vitor Gonçalves disse...

Caro João,

É uma excelente iniciativa e um grande serviço aos amigos. Bem haja. Abraço reconhecido,
Vitor Gonçalves