Barto, o de boa memória*
No que respeita a atitudes que, inequivocamente, possam contribuir para fazer perdurar a memória dos artistas que amaram Sintra, aqui viveram e, de modo especial, se relacionaram com esta terra, sabemos que, não raro, se fica muito aquém do que seria de esperar.
No entanto, neste ano, temos sido beneficiados com algumas alegrias, animando os dias mais sombrios e compensando-nos dos efeitos mais nefastos desta época tão difícil. Só de figuras de âmbito nacional, tivemos, no Verão, o caso de João Bénard da Costa e, como já terão percebido, neste contexto, venho ao vosso encontro com Bartolomeu Cid dos Santos, Barto, como era conhecido lá por fora. Não, não estava esquecido e a prová-lo, o modo lapidar como a Câmara Municipal de Sintra honrou a sua memória.
Antes, porém, de me reportar a tal ocasião, gostaria de lembrar que, em 2008, eu próprio apresentei à Assembleia Municipal de Sintra uma proposta no sentido de atribuir o nome do grande artista à Casa de Cultura de Mira Sintra que, ao tempo, estava prestes a ser inaugurada e, curiosamente, na mesma oportunidade que, também a CDU, aproveitaria para o efeito. Por razões que desconheço, a iniciativa não foi avante.
Entre nós, sintrenses, Bartolomeu Cid dos Santos deixou amigos indefectíveis, avultando o caso do Vereador Pedro Ventura, que merece o reconhecimento geral e o meu maior destaque. De perto, conheço as suas diligências no sentido de que a memória do homenageado perdure nesta terra que, discreta mas profundamente, ele tanto tinha no coração. Foi neste contexto que, no passado dia 5 de Outubro seria descerrada uma placa toponímica nas Escadinhas Fonte da Pipa, n.º 1, casa onde, nalgumas ocasiões, tive o gosto de privar com quem recordo com tanta saudade. Naturalmente, até porque não pude estar presente, a atitude da Câmara Municipal de Sintra sensibilizou-me sobremaneira.
Sintra, constantemente
Ao contrário do que se poderia concluir, não foi a melomania, em especial o gosto pelos dramas líricos wagnerianos, que tanto nos unia, o que mais nos fez aproximar. Deu ele o primeiro passo, precisamente por intermédio do Jornal de Sintra, através de um artigo que subscreveu, em simultâneo com uma carta que me dirigiu, a propósito do estado lamentável do centro histórico, algo que, na sua condição de residente na zona, ele muito lamentava.
Nestoutra minha singela evocação, a quarta desde que faleceu, gostaria de lembrar que Barto era homem de esquerda, senhor de fortes convicções políticas. Uma das causas que mais o mobilizava era a da defesa do património, questão bem real e concreta que, sendo perspectivada numa actuação integrada e abrangente, como ele também acreditava, pode contribuir para a mudança e para a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos. E bem demonstrativa do seu empenho neste domínio, se alguma prova necessária fosse, bastaria recordar o apoio pessoal à iniciativa da discussão dos problemas do bairro da Estefânea em que o tive, exactamente ao meu lado, na mesa que conduziu o aceso debate daquele no dia 22 de Março de 2004.
Sua Eminência Artística
Era um grande senhor da Cultura Portuguesa contemporânea. Mesmo em termos internacionais, é um nome incontornável da gravura, tão grande e significativo que os ingleses lhe souberam reconhecer o enorme mérito, admitindo-o como professor da célebre Slade School of Fine Arts de Londres, já no princípio dos anos sessenta. Ali se manteria até noventa e seis, altura em que se aposentou. Altamente honrosa foi a sua nomeação como professor emérito de Arte da Universidade de Londres e membro da Real Sociedade Britânica de Pintores e Gráficos. Não tenham dúvida de que, ao mais alto nível, só Paula Rego, estará à sua altura.
Detentor de um currículo espantoso, foi professor convidado e consultor de várias universidades europeias, fez inúmeras exposições por esse mundo. Sempre atenta, em diferentes oportunidades, a fundação Gulbenkian abriu as salas à sua obra. Em 2010, o Palácio Anjos, em Algés, onde está sediado o Centro de Arte Manuel de Brito, promoveu a exposição de um belíssimo conjunto de peças de Barto pertencentes à colecção do saudoso galerista. Fui lá várias vezes, em romagem de saudade. Confessara-me ele que, precisamente naquela grande casa, tinha passado a infância e ali aprendera a desenhar.
Não calculam como lá senti a sua presença. Que saudade eu sinto da sua companhia, da sua cumplicidade, de quando falávamos de projectos para Sintra. A propósito, julgo que a Câmara pode e deve continuar a lembrá-lo. Se assim o pretender, entre outros projectos, tem a hipótese de cumprir um sonho de Bartolomeu, ele mo confidenciou igualmente, ou seja, promover a recuperação da casa de Mily Possoz (1888-1967), sua querida e esquecida amiga. Tanto quanto sei, o Hotel Tivoli é o maior detentor de obras de Possoz. Pois bem, neste final de prosa, sem pretender ensinar o Padre Nosso ao vigário, que tal a ideia de cativar o Grupo Espírito Santo (Hotéis Tivoli-Sintra e Seteais), para o protagonismo de uma atitude mecenática em relação à casa de Mily Possoz?
* Texto publicado na edição de 9 de Novembro de 2012 do Jornal de Sintra
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