[Transcrição do artigo publicado na edição de hoje, dia 1 de Fevereiro de 2013, no Jornal de Sintra]
De imediato, junto dos meus amigos, tentei saber detalhes da iniciativa mas ninguém estava ao corrente fosse do que fosse. Alguém me sugeriu que poderia tratar-se de campanha ao abrigo de organizações religiosas, sugestão que logo me levou ao contacto com os serviços da arquidiocese de Salzburg onde me informaram de que estava em curso uma recolha de fundos através da Caritas, na sequência da assinatura de um protocolo entre as duas congéneres austríaca e portuguesa.
Este episódio propiciou-me o ensejo de contactar várias pessoas que se manifestaram perfeitamente solidárias e felizes por poderem contribuir para o alívio das necessidades de tantas crianças portuguesas na actualidade. Por outro lado, ao esclarecer os contornos do estado de carência em que está mergulhado o nosso país, os meus amigos e conhecidos – que, afinal, através do meu frequente contacto, estão relativamente bem informados acerca do que se passa por lá – não deixam de manifestar a maior perplexidade, quando não escândalo.
Perplexidade
Para eles, europeus como nós, é difícil
imaginar que, em Portugal, haja milhares de crianças que vão para a escola com
fome ou mal alimentadas, crianças europeias, como as deles, que pertencem, como
as deles, a um país da União Europeia e da mesma zona Euro. Um tal quadro, bem
como o relativo a quem tem reformas
miseráveis, não conseguindo comprar os medicamentos indispensáveis ao controlo
da sua saúde, é impensável para os meus amigos austríacos. Para eles também a
maior surpresa quando lhes conto da miséria endémica e geracional que afecta
mais de um quinto da população portuguesa.
Ao falar-lhes sobre o que se passa na minha
própria família que, ao fim e ao cabo, até é privilegiada, e lhes conto que,
precisamente, minha mulher e eu, fomos inconstitucionalmente espoliados de
quase um terço do nosso rendimento anual, através do confisco de parte das
nossas reformas, ficam estupefactos. Pondo-os ao corrente de mais tropelias
contempladas pelo Orçamento de Estado deste ano, perguntam-me se as pessoas não
se revoltam e como é que podemos viver
minimamente sossegados se, tal como eu descrevi, os portugueses vivem sobre um
barril de pólvora…
Perguntam-me como pode isto assim ser, nalguns
casos, pior do que na Grécia. Lembro-lhes o que, tantas vezes, ao longo de
anos, lhes tenho dito acerca do analfabetismo em Portugal, com a pior taxa de incidência
de toda a Europa, ainda com dois dígitos, conto-lhes da iliteracia, da
consequente mitigada capacidade de intervenção cívica, razões a montante das
escolhas resultantes das eleições legislativas e autárquicas que, concretizadas
num aparente quadro democrático, acabam por perverter a própria ideia da
Democracia e comprometer a vivência da Democracia.
Falamos dos malefícios da Lei Eleitoral em
vigor. Conto-lhes da corrupção. Conto-lhes do caso do BPN e, perante os valores
astronómicos, boquiabertos, olham-me de olhos esbugalhados. E perguntam-me como
é que o meu testemunho pode ser tão horrível e pessimista se, na Áustria, o
caso português é apontado como sucesso, a par do da Irlanda. E, muito naturalmente,
chegados a este ponto, acabamos por abordar o caso da Imprensa nacional e
internacional.
Europa fragilizada
Falamos do mau momento que atravessa toda a
comunicação social europeia que, cada vez mais, perde independência face aos
grandes grupos económicos, acabando por ignorar princípios deontológicos e
transmitindo notícias enroupadas no figurino mais conveniente aos medíocres
decisores políticos europeus, títeres do poder económico-financeiro europeu e
mundial. Eis a Europa servida por uma medíocre ou má imprensa, incapaz de se
demarcar de medíocres e maus políticos, na ausência de verdadeiros estadistas,
ingredientes de uma situação que, afinal, de modos diferentes mas convergentes
e extremamente preocupantes, estão a afectar todo o espaço europeu e não só os pigs.
Em Salzburg, foi na «minha casa», em St.
Sebastian, que mais conversei acerca destes temas. St Sebastian fica muito
perto da casa que pertenceu a Stefan Zweig, mesmo ali ao lado, em Kapuzinerberg.
E Stefan Zweig, ainda hoje, de vivíssima memória na sua Salzburg, também veio à
baila. Em especial, por causa de “O Mundo de Ontem, Recordações de um Europeu”,
obra que, muito, muito tem a ver com as preocupações que, europeus dos nossos
dias, nós enfrentamos, tão fragilizados e agredidos como os das primeiras
décadas do século vinte. Há que o ler, reler, interpretar e colher a lição de
memórias tão brilhantes.
Certamente, lembram-se da celeuma que suscitou
a atribuição do último Prémio Nobel da Paz à União Europeia. Nada me arrependo
de ter saudado a decisão do Comité por considerar que tal circunstância se
transformaria em fortíssima chamada de atenção para a necessidade de resolver a
contento os problemas que a complexa situação actual apresenta e tanto desafia.
Ainda não tenho motivos para desconfiar de que
tais intentos se alcançarão sem trair os radicais e generosos valores e
princípios que levaram a trilhar um caminho iniciado com a Comunidade Europeia
do Carvão e do Aço, passando à
Comunidade Económica Europeia e que, por enquanto, resultou na União Europeia,
a vinte e sete.
Entre outros, Adenauer, Schuman, Monnet, Pais Fundadores da Europa a caminho da Federação
de Estados, jamais terão previsto que,
passado pouco mais de meio século sobre o início do seu movimento, haveria
crianças a passar fome em países deste continente tão próspero e culturalmente
riquíssimo. Não foi para isto que a Europa tantos recursos tem investido, ou
seja, para que a caridade assuma a solidariedade que Portugal deve esperar da
Áustria, que tem muito campo institucional para se manifestar.
A Europa está a funcionar mal, incapaz de
gerir as crises económica e financeira em que se deixou enredar. Impõe-se que,
em todas as instâncias, ao nível nacional, de cada Estado, e internacionalmente,
os representantes eleitos de todos os cidadãos europeus exerçam um mandato à
altura da estupenda herança de princípios e valores de que somos depositários e
que cumpre fazer render para benefício
de todos e, em particular, dos mais fragilizados.
[João Cachado escreve de acordo com a
antiga ortografia]
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