[sempre de acordo com a antiga ortografia]

terça-feira, 22 de outubro de 2013



Mafra, 22 de Outubro de 1730
Cerimonial da Sagração da Basílica


Preparem-se para uma leitura algo longa mas de extremo benefício. É uma página muito esclarecedora dos tempos Joaninos. Naquele dia, D. João V, nascido aos 22 de Outubro de 1689, fazia quarenta e um anos. Vale a pena o «investimento» que vos proponho. É com o maior gosto que, por obrigação das cláusulas relativas a direitos de autor, esclareço ser este texto transcrito de “Monumento Mafra Virtual”.

Não deixem de aceder à gravação que, no final da leitura, vos proponho. Trata-se de um concerto com os seis órgãos da Basílica que, aproveito a oportunidade para recordar, se repete todos os primeiros domingos de cada mês.

Boa leitura!

Boa audição!

"No dia 18 de Outubro de 1730, chegaram a Mafra os cardeais da Cunha e da Mota, os bispos de Leiria, Portalegre, Pará e Nanquim, em coches de aparato, seguidos de larga criadagem e de muitas azémolas carregadas e cobertas com reposteiros bordados.

A 19 chegaram o rei, o príncipe do Brasil, Dom José, e o infante Dom António, em coches sumptuosos, acompanhados pelos criados da casa real. A 20, entrou na vila o Patriarca num coche riquíssimo, ao qual seguiam o de estado e mais quatro com os seus criados.

No dia 21, de manhã, o deão da Sé Patriarcal, revestido de capa de asperges e com mitra encarnada, ante o rei e a família real, realizou a benzedura dos paramentos e das peças litúrgicas, assim como dos painéis dos altares laterais. A seguir, benzeu o convento com todas as suas dependências - noviciado, refeitórios, dormitórios, celas, etc.

À tarde na capela do Hospício, fizeram os arrábidos, com a presença do rei e da corte, as vésperas da dedicação da Basílica, às quais se seguiu uma procissão até à mesma; ao seu desfile assistiu o rei e a família real da varanda De Benedictione.

À noite, numa sala do palácio régio armada em capela, sigilou o patriarca as relíquias dos apóstolos e evangelistas que no dia seguinte devia colocar no altar mor. Depois, cantaram-se as matinas dos após­tolos, com a presença do rei e da família real, que a seguir foram ouvir as do Hospício, cantadas desde a meia noite até às três horas da madrugada. Este diligentíssimo e fervoroso zelo devoto do monarca deu provas de admirável resistência durante os oito dias seguintes.

No dia 22, o primeiro da sagração, as funções religiosas começaram às 7 horas da manhã e só às 3 da madrugada tiveram fecho.

No terreiro, cortado por uma rua toldada com panos de brim para passar a procissão, postou-se em forma, às 5 horas da manhã, a tropa, composta de cavalaria e infantaria. Às 6 horas ingressaram os frades no seu convento, onde já estava o rei com os príncipes, os quais assistiram à missa rezada na sala De Benedictione, depois da qual João V deu beija-mão à corte por ser esse dia o seu natalício. Pelas 7 horas chegaram a rainha, a princesa, os infantes Dom Pedro e Dom Francisco. Daí a meia hora surgiu a pro­cissão, debaixo de cujo pálio ia o Patriarca com magnífico pluvial branco e mitra recamada de pedras preciosas, seguido pelo rei, pelas altezas e pelos fidalgos da corte, cobertos de galas custosas, à com­pita. Primeiro, o Patriarca deu beija-mão; depois, cantadas uma Antífona e a Ladainha de Todos os Santos, benzeu o sal e a água.

Enquanto fez a aspersão em si próprio, nas pessoas reais, nos eclesiásticos e no povo, cantou-se a antífona Asperges Me.

A disposição do vestíbulo, cujo pavimento estava alcatifado, era esta: à esquerda, sobre quatro degraus, o trono patriarcal com cadeira e dossel de tela branca e o do rei e das altezas com cadeiras e dossel de veludo carmesim guarnecido de ouro. Defronte, encostados aos arcos, bancos de espaldares, cobertos de razes, para os cónegos e bancos rasos, cobertos também de razes, para os beneficiados. Ao fundo, do lado meridional, a tribuna da rainha, da princesa do Brasil e das suas damas. À direita uma credência com varias peças: caldeirinha, hissope, aspersórios, jarros e pratos, de prata dourada, e sal moído; sobre um escabelo um grande vaso de prata, em concha, com água. Junto dos degraus da porta e sobre uma credência ficava o cerimonial e defronte, o faldistório.

Findo o sobredito acto, ordenou-se novamente a procissão, levando cada beneficiado um castiçal com vela acesa. Durante o rodeio da Basílica aspergiu o Patriarca as suas paredes com água benta. Chegado à porta nela bateu o mesmo três vezes com o báculo dizendo: Attolite portas principes vestras... ao que o diácono do interior respondeu: Quis est iste Rex gloriae? Retorquiu o Patriarca: Dominus fortis et potens in praelio.

Por mais duas vezes andou a procissão à volta da igreja e bateu à sua porta o patriarca. À terceira, porém, respondeu ele e todo o clero: Dominus virtutum ipse est Rex Gloriae, dizendo depois em tripli­cado Aperite. Então se abriu a porta. Antes do ingresso fez o Patriarca unia cruz com o báculo acom­panhada da frase: Ecce crucis signum, fugiant fantasmata cuncta.

Pela nave estavam distribuídos, a distâncias iguais e formando cruz, montículos de cinza, sobre os quais o Patriarca gravou os alfabetos grego e latino, com as letras recortadas em papelão, com o báculo.

Na capela mor estavam dois tronos, à esquerda, um para o rei e a rainha, o outro para o Patriarca. Fronteiras, do lado da Epístola, ficavam duas grandes credências - uma com incenso em grão e moído, e sal, em pratos de prata dourada, aspersórios, uma garrafa de prata com vinho branco, duas bandejas com cal e pó de pedra, outra vazia para nela se fazer a argamassa, pratos de prata com o avental para o patriarca, toalhas para limpar o altar e três velas pequenas, uma taça de prata para a água benta, algodão para limpar os óleos das sagrações; a outra com os castiçais do altar, turíbulos e navetas, caldeirinhas e hissopes de prata, tudo disposto segundo as rubricas do pontifical romano.

Chegado ao altar mor o Patriarca benzeu a água, a cinza, o vinho e o sal, desceu depois até à porta da basílica e nela com o báculo riscou duas cruzes. Voltando ao altar mor por sete vezes o rodeou enquan­to cantava o Salmo Miserere e o aspergia de água benta. Passou depois a rodear três vezes a basílica, como fizera no exterior, aspergindo-lhe as paredes com a dita água. Aspergiu também o pavimento, em cruz, desde o altar mor até à porta.

Cantada a antífona Vidit Jacob, de novo aspergiu o chão e o ar, lançando a água na direcção das quatro partes do mundo. A seguir, pôs o avental e fez o cimento. [....]

Em todos estes oito dias os serviços começavam às 8 horas da manhã e acabavam às 3 da madrugada, com permanente assistência do rei, da família real e da corte, que comiam nas tribunas da igreja, largas como quartos.

Com tão extenuante e contínuo sacrifício sua majestade garantiu à sua alma a bemaventurança eterna.

Eram 7.30 horas, retirou-se para descansar, mas o rei continuou firme no seu posto. Àquela hora entraram no coro os frades para cantar Sexta e Noa. depois do que passaram ao Refeitório (não era sem tempo) seguidos pelas pessoas reais e pela corte. Aí a iluminação era feita por trinta candeeiros de latão de quatro lumes cada um. Antes de se sentarem. cantaram a benção da mesa. Quando sentados, entoou o leitor o primeiro ponto de leitura oportuna, depois do qual o provincial deu o sinal para se servir. Então se viu um espectáculo tanto mais admirável e assombroso de piedosa humildade quão menos esperado. O rei, o príncipe Dom José e o infante Dom António, depostos chapéus e espadins, começaram a servir os frades, conduzindo os pratos em tábuas redondas apropriadas. À ordem régia, para rápido despacho do serviço, imitaram-nos os camaristas de João V: os marqueses de Cascais e do Alegrete, os condes de Assumar, de Aveiras. de São Miguel e de Povolide. Isto causou grande perturbação nos espíri­tos dos frades, pois ao abatimento da soberania em tão grande acto de humildade se juntava o da mor­tificação no distribuir tantos pratos, porque eram 320 os convivas.

Acabado o repasto, voltou a comunidade ao coro, cujos cadeirais tinham sido colocados durante esse intervalo, apesar de tal trabalho, a que deu seguro despacho o engenho do italiano Tadeu Luís, mestre da carpintaria, ser considerado quase impossível. Neles também se sentaram as pessoas reais. E aí, em descanso, estiveram todos desde as 9 às 11 horas, que este foi o tempo gasto por Frei Fernando da Soledade, ilustre cronista franciscano da Província de Portugal, com o seu erudito e substancioso ser­mão, alumiado por trezentas e vinte velas. Seguiram-se ao mesmo as Vésperas da dedicação da Basílica e, depois, as Completas. À função, porém, ainda faltava o coroamento, que lhe foi dado pelas Matinas de São João Capistrano, cantadas pela comunidade desde a meia hora às três da madrugada. Só então o rei e os seus familiares regressaram ao palácio para dormir.

Se com tão resistente e aferrada devoção não ganhou o céu foi por ser excessivo o peso dos seus pecados.

Todas estas cerimónias as acompanhou atentamente o rei por um pontifical romano, verificando, como entendido na matéria, que não lhe faltava um gesto, uma palavra.

Posto isto, formou-se novamente a procissão para ir buscar à capela do palácio as relíquias lá depositadas. Assentes estas pelo Patriarca em andor próprio, outra volta à igreja executou o préstito. Depois, todos a postos nos seus lugares, pronunciou o Patriarca uma elegante e piedosa prática acerca das excelências dos templos sagrados, lembrando ao rei, como fundador deste, a obrigação de o dotar a preceito para sua con­servação e para subsistência dos seus ministros, os bons frades arrábidos, e lembrando a estes o dever de rogar a Deus pela saúde e pelo feliz aumento de sua Majestade. Pelo visto, a diplomacia eclesiástica era deveras engenhosa. Tal prática foi a meio interrompida pelo primeiro diácono com a leitura adequada de dois decretos do concílio tridentino, os quais proibiam, sob graves penas, defraudar os bens eclesiásticos e ordenavam o pagamento dos dízimos à Igreja.

De sobejo se patenteia quão hábeis e bons estratégicos eram os humildes fradinhos. Respeitosa. submissamente, o rei de pé ouviu toda a pia exortação.

Fez-se, depois, o benzimento do altar mor, acto de grande complexidade de cerimónias: antífonas, salmos, unções de óleos santos, aspersões de água benta, incensações. etc. Sagrou, também, o patriarca, as cruzes do altar mor, do cruzeiro e da nave, e no meio do altar meteu uma caixa de prata dourada com as relíquias dos apóstolos.

Eram cinco horas da tarde quando acabou esta parte da sagração. Mas ninguém arredava de cansado. Começou, então, a Missa de Pontifical, que foi cantada com extraordinária imponência, quer pelo pre­cioso dos paramentos quer pela qualidade de sacerdotes e qualidade dos cantores. Estes eram os da Patriarcal, vindos de Roma por escolha. O acompanhamento musical era feito pelos seis órgãos. No exterior, os sinos das torres repicavam estrondosamente.

No seu final, o Patriarca subiu à varanda De Benedictione e daí lançou ao povo, que enchia o terreiro, a bênção."

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http://youtu.be/-H1AfzqHCTA
 
 

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