[sempre de acordo com a antiga ortografia]

segunda-feira, 28 de outubro de 2013




 

 

Richard Wagner,
uma luta menos conhecida
 
 
[Transcrição do artigo publicado em 25 de Outubro, na última edição do ‘Jornal de Sintra’]

 
 
No ano em que se celebra os duzentos anos do nascimento de Richard Wagner (1813-1883), compositor acerca de quem tenho escrito vários artigos no âmbito da minha colaboração no Jornal de Sintra, mais uma vez me detenho em matéria relativa ao mestre de Bayreuth, desta vez, acerca de um aspecto menos conhecido das suas preocupações.


Como hão-de verificar, Incido a minha atenção sobre um período muito curto. Cumpre, no entanto, desde já, afirmar com toda a pertinência que, na verdade, em articulação com o episódio a que hoje me reporto, ao longo de toda a obra wagneriana, podemos encontrar evidentes provas de uma coerência inequívoca, em especial no que se refere a uma moldura de luta «avant la lettre» pela defesa do ambiente, considerando as ameaças a que o homem se sujeita por ter repelido e maltratado a natureza, ideia bem patente, ainda que implícita, por exemplo, ao longo do “Anel do Nibelungo”.  

Antes de me envolver na matéria que pretendo partilhar, mas muito a propósito do tema, gostaria de lembrar que, em 1849, época do levantamento de Dresden – em que o revolucionário Wagner combateu tão denodadamente, ao ponto de ter de se exilar – notava ele, no contexto da documentação que compilara para a publicação de um manifesto intitulado “Die Kunst  und die Revolution” (A Arte e a Revolução) que, naquela altura, se vivia ”(…) uma secura do coração, inconciliável com a arte, em relação aos animais, nos quais apenas se valoriza o aspecto da mercadoria destinada à indústria (…)”.

No referido texto constatará o autor que “(…) A natureza, a natureza humana vai exprimir a sua lei às duas irmãs, cultura e civilização, propondo  que ‘enquanto estiver em vós, vivereis e desabrochareis mas, a partir do momento em que não estiver em vós, morrereis e encontrareis aridez’. (…)”

Contra a vivissecação

Então, sem mais demora, entrando directamente no assunto, passo a recorrer ao “Diário” de sua mulher, Cosima Liszt Wagner (1837-1930). No dia 31 de Julho de 1879, regista: “(…) R. (Richard Wagner) recebeu um livro acerca da vivissecação, enviado por certa senhora de Wiesbaden que, em carta com expressões muito cativantes, roga a sua ajuda nas  diligências contra aquela barbárie. (…) R. está muito comovido e indignado: se tivesse menos idade ia parar até pôr em marcha um movimento de protesto. Seria necessário envolver a religião nesta piedade pelos animais. (…)”

O referido livro era uma brochura intitulada “Folterkammern der Wissenschaft – Eine Sammlung von Tatsachen für das Laienpublikum”  (Câmaras de Tortura da Ciência – Relato de Factos para o Público Profano). Trata-se de publicação de 1879, com ilustrações deveras sugestivas, da autoria de Ernst von Weber, militante da causa contra as experiências em animais nos laboratórios de fisiologia, obra que, além de pretender desencadear agitação, visava a proibição legal deste tipo de experimentação.

Desde já, para que não restem quaisquer dúvidas, convém esclarecer que, por vivissecação, se entende qualquer operação feita em animal vivo com o objectivo de realizar estudo ou experimentação. Pois bem, as atrocidades relatadas no panfleto de Ernst von Weber tiveram um efeito terrível em Richard Wagner. “(…) A vivissecação não lhe sai da cabeça (…)”, continua
sua mulher escrevendo no diário, em 1 de Agosto de 1879.

Passada uma semana, o compositor escreve à direcção da Sociedade Protectora dos Animais de Dresden, citada no livro em questão, informa-se acerca dos seus estatutos, actividades e projectos “uma vez que ele próprio e sua família tencionam consagrar todo o empenho possível à associação”.

Até então, o movimento dos adversários das experiências com animais não tinha suscitado, na Alemanha, qualquer interesse senão em círculos muito restritos. Portanto, para von Weber, que alguém tão ilustre como Richard Wagner se interessasse pela sua luta era uma autêntica bênção.

Entretanto, Wagner adere à Associação Protectora dos Animais de Bayreuth mas, convicto de que tanto esta como todas as congéneres apenas tinham como objectivo demonstrar a utilidade dos animais para o homem, pede a von Weber que o considere membro fundador de uma associação com outro perfil que este projectava fundar, enviando-lhe cem marcos e informando que, trimestralmente, passaria a remeter-lhe idêntica quantia.

Uma luta pela Natureza

A 16 de Agosto recebe mais correspondência de Dresden, uma encomenda postal que, entre outras, contém “Leçons de Physiologie Opératoire”, obra de Claude Bernard, o célebre fisiólogo francês (1813-1878), que lê imediatamente. “(…) De novo, a vivissecação (…) Ali se revelam verdadeiros horrores; os povos latinos não demonstram qualquer ponta de piedade enquanto que os ingleses, pelo contrário, se indignam e reagem com sucesso (…)”, escreve Cosima.

É curioso que, passados quatro dias, tenha escrito uma carta ao mecenas Luís II, Rei da Baviera (1845-1886), abordando em pormenor o capítulo daquela obra acerca da vivissecação, e, por ocasião do aniversário do monarca (25 de Agosto), lhe remetesse alguns panfletos de pendor anti-vivissecacionista. De acordo com o “Diário” de Cosima, sabe-se que o Rei manifestou agrado pela remessa mas, infelizmente, foi impossível encontrar a carta de resposta.

Em 12 de Setembro a família Wagner recebe Ernst von Weber para jantar na villa Wahnfried. Acabava ele de regressar de Gotha, onde protagonizara a ruptura com as associações protectoras dos animais existentes para fundar a ‘Associação Internacional para a luta contra as torturas científicas sobre animais’.  

Profundamente motivado pelo material de propaganda e encorajado com a visita do militante, Wagner escreve uma carta aberta destinada à Revista  Bayreuther Blätter” (Folhas de Bayreuth). E, entre 20 de Setembro e 9 de Outubro, esteve de tal maneira envolvido em diligências afins que, em consequência, negligenciou totalmente a composição de Parsifal,o seu derradeiro drama lírico.
 
Ainda com grossa cópia de detalhes colhidos no Diário de Cosima, que me dispenso de citar para não tornar este texto mais denso, sabe-se do prazer que o compositor experimentou na elaboração do texto, em especial, com a inserção de uma série de considerações inspiradas nas “Obras Morais” de Plutarco, nomeadamente, no capítulo ‘Da razão dos animais terrestres e aquáticos’.

É assim que dá à estampa “Offenes Schreiben  an Herrn Ernst von Weber, Verfasser der Schrift: ‘Die Folterkammern der Wissenschaft’” (Carta Aberta ao Senhor Ernst Weber, Autor da Obra ‘As Câmaras de Tortura da Ciência’). Foi com cuidado extremo, em quatorze densas páginas,
que Richard Wagner redigiu a sua tomada de posição sobre as experiências efectuadas com animais. Por outro lado, além dessa concreta tarefa, Wagner não deixa de dar mesmo a entender aos seus mais próximos que a luta em apreço subentendia trabalhos infindáveis já que estava em causa uma «matéria infinita».

Cabe perguntar, finalmente, até que ponto iria o seu envolvimento nessa matéria tão cativante, cuja investigação se lhe afigurou tão importante que se sobrepôs à própria  composição de Parsifal que, na altura, lhe solicitava total disponibilidade.  Estava, isso sim, a expressar uma dúvida que o assaltava havia muito tempo relativamente a uma ciência que, abusando grosseiramente dos animais, punha em causa os mais nobres interesses e valores da natureza.

 
[João Cachado escreve de acordo com a antiga ortografia]


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