[sempre de acordo com a antiga ortografia]

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014



[‘In Memoriam’, o texto que passo a transcrever da edição de hoje do ‘Jornal de Sintra’, é resultado do aproveitamento de dois posts no mural fabook, datados do passado dia 27, intitulados ‘In Memoriam’ e ‘Ainda a propósito’. Quem os leu, terá agora uma inicial sensação de ‘déja lu’ mas, se continuar, verificará que não só houve revisão como adaptação e nova matéria]

In memoriam*


Há muitos anos,
passo o 27 de Janeiro sempre em Salzburg. É altura do Festival de Inverno, que coincide com a semana em que se comemora o aniversário natalício de Wolfgang Amadeus Mozart – como sabem, o mais famoso filho da cidade – por isso se designando Mozartwoche [Woche = semana] ainda que se prolongue por quase uma quinzena.

Para os leitores que, há mais tempo, me acompanham através das páginas do Jornal de Sintra, esta referência é muito familiar já que, em anos sucessivos, directamente de Salzburg, quer por esta altura quer pela do Festival da Páscoa, escrevi aqueles que, em toda a imprensa portuguesa, foram exclusivos artigos de crítica musical sobre tais iniciativas.

Não deixa de ser curioso que tendo Mozart nascido em 27 de Janeiro (1756), este também seja um dia em que se comemora outra efeméride relacionada com o universo musical, ou seja, a da morte (1901) de Giuseppe Verdi, mais um nome máximo da Música. De qualquer modo, não é acerca dos dois grandes compositores que hoje me proponho partilhar convosco estas linhas. É que, de facto, faz muito sentido recordar um outro evento, também coincidente com 27 de Janeiro.

Se acrescentar o ano de 1945, entenderão que me reporto ao fim da guerra e, mais especificamente, à data da libertação do campo de extermínio – já a designação é um horror!... – de Auschwitz-Birkenau. Foi ontem. Quase setenta anos? É nada, um sopro de tempo histórico. Era ontem quando havia este e outros campos de extermínio, campos de concentração, campos de trabalho. “Arbeit macht frei”, lembram-se? Pois, em campo de trabalho, o trabalho liberta. Entretanto, irreversível, o escândalo continua a desafiar a explicação. Porque o Homem, na realidade, foi capaz, é capaz.

Hoje, 27 de Janeiro, mais uma vez, um conselho que, da minha parte, já se tornou recorrente. Leiam O Mundo de Ontem, Memórias de um Europeu. O seu autor, Stefan Zweig, viveu aqui em Salzburg, entre 1919 e 1934, numa casa em Kapuzinenberg, que vejo deste quarto onde vos escrevo já que, St Sebastian, o meu poiso durante as estadas na cidade, fica na Linzer Gasse, mesmo na base do referido monte, apenas à distância de umas poucas dezenas de metros em altura.

Vou lá muitas vezes e, hoje também, vim de lá há pouco. In memoriam. Como nem tamanha proximidade do famoso e excelente escritor nem as peregrinações ali acima tiveram qualquer benéfico efeito sobre a prosa deste vosso escriba, ao menos aceitem aquele meu conselho. Ponham de lado estas linhas e procurem ler, isso sim, a obra do mestre cujas deambulações e tremendo périplo, que não acabou bem, tudo têm a ver com a efeméride de Auschwitz-Birkenau e com as barbaridades por lá levadas a cabo.

A primeira pedra

Tais barbaridades, se bem as quisermos entender, são apenas parte de um novelo muito complicado que, na sua quota parte de responsabilidade, uma série de povos europeus envolvidos nos seus fios, afinal, não os assumem com mais facilidade que os próprios alemães.

De facto, alemães eram os comandantes dos campos, como alemão era o Estado Maior que tudo geria. Mas, então, os colaboracionistas, em toda a Europa, cuja face mais descarada é a da França, através do governo de Vichy, que representava a esmagadora e silenciosa maioria dos franceses, e que enchia vagões e vagões com famílias de judeus, alimentando os fornos crematórios de tais campos? E o mesmo não acontecia a Norte, ao Sul, e do Leste ao Oeste de todo o velho continente?

Não coincidente, mas no mesmo contexto, que histórias já foram contadas, e quantas haverá por contar, sobre a actuação dos fascistas portugueses, espanhóis e italianos, bem como do genocídio de tantos milhões de cidadãos na Rússia Soviética? Tudo isto nos envergonha porque, nós, Homens – portanto, eu e vós – somos assim, capazes das maiores barbaridades, ainda que semideuses, em termos prometaicos.

Não, não são os outros, não são os alemães. Somos todos assim. A semente que nos gerou também compreende uma vertente de malignidade, temível quando encontra terreno fértil. Nós, portugueses, por exemplo, que pedra poderemos atirar aos alemães? Só porque os campos foram ontem ou anteontem, há setenta anos? Bem podemos limpar as mãos à parede, com as históricas barbaridades que concretizámos, em todas as latitudes, durante séculos, nada nos consolando o facto de os outros terem feito o mesmo...

Muito menos atinente a justificação com o entendimento epocal contemporâneo de tais barbaridades. Não colhe porque, entre outros, o Padre António Vieira defendeu os direitos humanos dos povos indígenas, combatendo a sua exploração e escravização, e também os judeus e a abolição da escravatura. Leia-se o Sermão do Espírito Santo. Não se encha a boca com as redondas palavras de que ele cultivou o melhor Português… Não, é preciso ler Vieira para perceber quem somos e quem fomos, quais as barbaridades de que fomos e somos capazes, antes e, naturalmente, também depois do século dezassete e até à actualidade.

Luto e exorcismo

Os alemães, as novas gerações de alemães - e não caiamos na tentação de confundir povo alemão com o actual governo alemão, aliás, como não pode nem deve confundir-se povo português com o actual governo português, apesar de, em ambos os respectivos países, vigorarem Estados Democráticos de Direito, em que os governos decorrem de actos eleitorais livres e democráticos – os alemães, escrevia eu acima, estão a viver um complicado processo de exorcismo dos fantasmas do nazismo.

Não tenhamos dúvida de que tal luto, o exorcismo em questão, a catarse, o mais prosaico lamber das feridas, ainda vai durar muito tempo. A atestá-lo, veja-se a Arte que têm produzido nas últimas décadas, o Teatro, a Ópera, a Literatura, as Artes Plásticas, o Cinema, testemunhando e bem demonstrando como assim tem sido e é algo em curso.

Nós, que tanta dificuldade temos em fazer coisa análoga relativamente a outras cenas que tanto nos envergonham, o mínimo que podemos é ir acompanhando o seu longo e difícil caminho, sem precipitados juízos de valor, respeitando o processo alheio. Tentar ser civilizado, embora tenha um preço altíssimo, está ao alcance de todos. Pelo menos, tentemos.

Horizonte longínquo

Há tanto caminho ainda por fazer nesta Europa que herdámos dos pais fundadores com o objectivo de concretizar a Confederação política de Estados que ultrapasse a actual dimensão de União pouco mais do que económica. Querem um exemplo atestando como as nossas cabeças ainda nada mudaram?

Se é suposto, ainda que portugueses e com muito orgulho, que na União Europeia, nos sintamos, igualmente, espanhóis, italianos, franceses, britânicos ou austríacos e alemães, como continuamos a afirmar que emigram os nossos filhos, sobrinhos e netos, quando «apenas» partem à procura de trabalho nos países europeus de cuja União o nosso é parte integrante, e onde todos os cidadãos têm os mesmos direitos, inclusive o do acesso ao trabalho, em condições semelhantes às dos naturais de cada país?

Trata-se «apenas» de um pequeno exemplo que poderia emparceirar com muitos outros. A construção europeia ainda vai demorar muito tempo. Já tem séculos a montante e, provavelmente, ainda a esperam séculos a jusante. Demorará o tempo que for necessário para que se atenuem os nacionalismos exacerbados que, ainda ontem, nos conduziram à luta armada. É preciso que passe o tempo para que as cabeças se ajustem aos sonhos dos demiurgos que foram Konrad Adenauer, Robert Schumann ou Paul-Henri Spaak.

Finalmente, em tempo de efemérides, ocorre-me um episódio cujo alcance ultrapassa as barreiras do tempo. Foi quando, ao dizer Ich bin ein Berliner, John Kennedy afirmava a solidariedade dele próprio e do mundo com o cidadão da capital dividida pelo Muro da Vergonha e, por inerência, assumindo a perspectiva de cidadão alemão. Para isso e por isso, se expressou em Alemão. Inequívoco. E para sempre. Pois bem, nós, com ele. E. por termos derrubado o muro, ainda mais berlinenses e alemães somos…

*Texto escrito em Salzburg, no passado dia 27 de Janeiro.

[João cachado escreve de acordo com a antiga ortografia]

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