A minha pátria é a língua portuguesa
- extraordinária coincidência
- extraordinária coincidência
A propósito do uso e abuso que se faz da célebre e descontextualizada frase A minha Pátria é a Língua Poruguesa, fará 6 anos no próximo dia 18 de Abril que escrevi e publiquei no meu blogue www.sintradoavesso.blogspot.co
Tanto tempo passado eis que, ontem mesmo, no suplemento Revista 2 do jornal Público, Nuno Pacheco, no seu habitual espaço, desafia-nos com o texto Da Nossa Clara Língua Majestosa em que chega a ser perturbante como, em determinadas passagens, tanto coincide, não só com a opinião que eu publicara, certo é que em escrito mais longo como, inclusive, o próprio ritmo dos argumentos é semelhante.
Claro que, de modo algum, sequer me passa pela cabeça qualquer ideia de plágio. Quem sou eu para ser plagiado? Graças a Deus tenho noção da modestíssima escala da minha intervenção local, se quiserem, e, por enquanto, também não sou vítima de qualquer espécie de paranoia…
Parece, isso sim, ter acontecido que, embora à distância de seis anos, preocupados com os mesmos assuntos, inevitavelmente, nos tenhamos deparado com o mesmo desafio e, subsequentemente, desenvolvido um conjunto de ideias que não podiam deixar de ser coincidentes já que a tanto obriga a lucidez. Tão somente isto.
Mas, de facto, «a coisa», isto é, a coincidência é tão curiosa que não resisto a propor-vo-la como exercício de «análise comparativa. Nestes termos, começarei por transcrever o texto de ontem de Nuno Pacheco e, de seguida, o meu, já velhinho.
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I. Da “Nossa Clara Língua Majestosa”, Nuno Pacheco [Revista 2, ‘Público’, 16 de Março 2014]
No sempre recorrente debate sobre o acordo ortográfico (AO) há dois “argumentos” que começam a tornar-se insuportáveis: 1) “Ninguém é dono da língua”; 2) “A minha pátria é a língua portuguesa”, este citando Pessoa. Comecemos pelo segundo.
A citação parte do trecho 259 (belíssimo trecho, aliás) do Livro do Desassossego, que Pessoa escreveu como Bernardo Soares (a que se segue é do site Ciberdúvidas que, defendendo do AO, transcreve o trecho na ortografia usada originalmente por Pessoa): “As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. […] Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo.” E mais adiante: “Não chóro por nada que a vida traga ou leve. Há porém paginas de prosa que me teem feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noute em que, ainda creança, li pela primeira vez numa selecta o passo celebre de Vieira sobre o Rei Salomão. ‘Fabricou Salomão um palacio...’ E fui lendo, até ao fim, tremulo, confuso; depois rompi em lagrimas felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquelle movimento hieratico da nossa clara lingua majestosa, aquelle exprimir das idéas nas palavras inevitaveis, correr de agua porque ha declive, aquelle assombro vocalico em que os sons são cores ideaes — tudo isso me toldou de instincto como uma grande emoção politica.” Finalmente, a repetida citação enquadrada no texto: “Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente. Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa própria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse. Sim, porque a orthographia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-m’a do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.”
O arbítrio nas regras escritas despreza os danos na fala
Àparte a provocação aos patriotas, a referência à língua como pátria é a defesa de um reduto de excelência. O ódio expresso de Pessoa não vai para quem escreve mal português, nem para quem não sabe sintaxe, nem sequer (alegrem-se, ó gentes do acordo!) para quem escreve em ortografia simplificada, vai sim contra a transformação de tudo isso em página: mal escrita, com sintaxe errada e ortografia “sem ípsilon” (ou seja, sem rigor nem elegância). Porque, diz Pessoa, “a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida.” Pois é neste “vista e ouvida” que se dividem as opiniões. É que muita da palavra “vista”, cumprindo-se o AO, hesita na forma de se fazer “ouvir”, já que, não tendo havido alterações no nosso sistema vocálico actual, o arbítrio nas regras escritas despreza os danos na fala. Citar Pessoa e insistir na “página mal escrita” é não apenas um contra-senso mas uma clara demonstração daquilo que, na essência, merecia o “ódio verdadeiro” do poeta.
E aqui chegamos ao outro ponto: “Ninguém é dono da língua”. Ora se ninguém é dono da língua para que servem então os paladinos do acordo, que se arvoram em únicos donos daquilo que não tem dono? Fizeram contestadíssimas regras, que nem eles respeitam convictamente, e dizem com desplante: não há donos. Deviam dizer: não há donos além de nós. Era mais honesto. Ou “onesto”, se preferirem. Mas deixem de nos enganar com malabarismos verbais. Porque se há “pagina mal escripta”, glosando a ortografia pessoana, é a do próprio acordo. Convinha lerem-no bem, outra vez.
II. ”O Desconcerto da citação”, João Cachado, [‘Jornal de Sintra, 25 de Abril de 2008]
Desta vez, foi o novo Ministro da Cultura [José António Pinto Ribeiro]. Não resistiu. Poucos dias depois da posse, aí estava ele, coitado, a cair na tentação de citar o que sempre produz o desejável e fácil efeito de impressionar, pela positiva tónica, um patriotismo generosamente expresso que não corre o risco de se conotar com qualquer ponta de nacionalismo de má memória saudosista.
Na realidade, para quem mais não domina que a descartável cartilha de umas citações, que, para o que der e vier, dá um jeitão ter à mão, deve ser difícil passar ao lado de Pessoa, em especial, da famosa tirada Minha Pátria é a língua portuguesa. No caso vertente,tratava-se da cerimónia em que o Ministro da Cultura do Brasil, Gilberto Gil, recebia o doutoramento honoris causa, por ocasião da sua recente visita a Portugal.
Aparentemente, tudo a propósito. Com efeito, na maior parte dos casos, aquela citação é especialmente adequada porque, com ela, se pretende dar a ideia de que a língua portuguesa é uma pátria comum – a um tempo virtual mas, de qualquer modo, bem real – de duzentos e não sei quantos milhões de falantes (e muito menos escreventes, porquanto, entre os espalhados pelos vários continentes, há um incrível contingente de analfabetos…) cidadãos proprietários desse inestimável património.
E, a fortiori, se o poeta – e que poeta!... – o afirmou, quem se atreve a contestá-lo? Ora bem, ninguém está aqui para o contestar mas, tão somente, para enquadrar as suas citadas palavras, e na presunção de considerar que são redutoramente aplicadas por quem, tão amiúde, a propósito e a despropósito, as cita e continua a citar. Eis-me, portanto, vindo a terreiro, com o pedido de que me acompanhem na tentativa de esclarecimento.
Pátria estética
As seis palavras em apreço constituem um inteiro período, uma ideia que, na sua inequívoca autonomia, não deixa de se articular com todo o parágrafo em que se insere, isto é, com as ideias precedentes e com as subsequentes. O melhor é mesmo transcrever todo o parágrafo:
“(…) Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse. (…)”
Ora aqui está parte do contexto em que a famosa tirada não pode deixar de ser enquadrada, reinserida e reintegrada, para se articular, como imperioso se torna, com os discursos circunstantes. Se bem compreendem, a pátria de Pessoa (Bernardo Soares) nada tem a ver com um território de contornos definidos mas, isso sim, é o lugar geométrico de uma estética. De uma estética, repito. Nada de confusões!
Essa pátria é um lugar de tal modo definido, e exigente no contorno das suas fronteiras, que o poeta, recorrendo à sua máxima capacidade de expressivo convencimento do outro, não hesita em fazer uso de um discurso da maior virulência, sem papas na língua, para que dúvidas não restem quanto aos seus sentimentos. E então evidencia a revolta das entranhas, do artista que se ofende e sofre perante o produto defeituoso e degradado que não pode mas devia ser um artefacto.
Quando, nos discursos de circunstância, um qualquer oficiante de serviço se permite citar; quando em qualquer folheca ordinária, um ensaísta de segunda ou terceira classe se permite epigrafar o seu discurso com estas seis palavras do Livro do Desassossego,
pois não sei o que vos confesse em relação à revolta das minhas próprias tripas…
Ortografia como gente
Ultimamente, então, os defensores da necessidade de concretizar um acordo ortográfico, têm abusado, com o maior despudor – diria mesmo que têm manipulado – ultrajado a memória do poeta, no constante afã de trazer à colação a referida sentença. E, se assim o escrevo é porque não acredito que desconheçam o parágrafo imediatamente seguinte ao que acima transcrevi, que passo a reproduzir, para completa satisfação dos que, eventualmente, o desconheçam:
“(…) Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.”
Deixem-me adivinhar. Aqueles de vós que já não se lembrariam e os outros, que desconheciam de todo este remate, estão agora atónitos perante esta confissão do poeta que se roja, deleitado, rendido à grandeza, à magnificência da ortografia, a visível vertente da língua em que comunicamos.
Como não perceber a omissão dos tais oficiantes e pseudo ensaístas? Convém-lhes, naturalmente. Convém-lhes que permaneça obscura, na sombra e reserva das estantes e do silêncio, a opinião de um dos maiores ícones da Arte Literária em Língua Portuguesa de todos os tempos, o nosso querido Fernando, cuja opinião, como acabo de lembrar através da transcrição supra, sempre seria frontalmente contrária a revisões ortográficas que escondessem a herança linguística que usamos a toda a hora e momento.
Certeza sinfónica
Finalmente, não vos deixaria sem que ficassem descansados quanto aos precedentes textuais daquela torrente de indignação de Pessoa-Bernardo Soares. A razão remota e imediata é fruto de fortíssima impressão estética, suscitada pela leitura de uma página de Vieira. Melhor será que, novamente, demos voz ao poeta, transcrevendo, portanto, o parágrafo anterior àquele em que está plasmada a citação em questão:
”(…) Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta, o passo célebre de Vieira sobre o Rei Salomão. «Fabricou Salomão um palácio…» E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso; depois rompi em lágrimas felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombroso vocálico em que os sons são cores ideais – tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei; hoje, relembrando, ainda choro. Não é – não – a saudade da infância, de que não tenho saudades; é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de já não poder ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica(…)”
O trecho de Vieira, que tanto emocionou o desassossegado, é pura melopeia, na realidade, é o melhor português de todos os tempos, vertido em páginas que só permanecem mortas, que não se fazem ouvir em toda a sua riqueza e grande certeza sinfónica, nas nossas casas, nas nossas escolas, em todos os locais onde seria suposto enriquecerem-nos, porque andamos todos muito preocupados com assuntos de lana caprina e, enfim, muito distraídos do que é essencial.
Logo que vos for possível, do Livro do Desassossego de Bernardo Soares*, leiam o texto completo do qual extraí os três parágrafos. E quando vos sugiro a completa leitura, apenas vos peço o tempo bastante para uma, só uma página, a tanto se reduz a peça de Arte que, saboreada à mesa onde o trecho de Vieira certamente não faltará, vos concederá, estou certo, um dos máximos gozos estéticos que se podem dar ao luxo.
Verão a razão que assiste quando me insurjo contra esses videirinhos das citações…
*
O próprio Fernando Pessoa, em carta a João Gaspar Simões, datada de 28 de Julho de 1932, considerava Bernardo Soares não um heterónimo mas «personalidade literária». A propósito, leia-se, com grande proveito, o esquecido texto Fernando Pessoa e o seu «semi-heterónimo» Bernardo Soares, precisamente de João Gaspar Simões, que abre o I volume de Fernando Pessoa, Obras em prosa, edição de Círculo de Leitores, Lisboa, 1987.
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