[sempre de acordo com a antiga ortografia]

domingo, 31 de agosto de 2014



A Cidade, a Política,
a intervenção cívica


[facebook, 28.08.2014]

[Ao Fernando Cunha]

Não raro, a etimologia pode ajudar-nos na tentativa de melhor entender os meandros em que nos movemos. É perante tal evidência que dela me socorrerei ao reflectir acerca da atitude que nos leva a intervir, activamente, no seio da comunidade em que nos enquadramos com o objectivo de melhorar a sua qualidade de vida. Convido-vos, portanto, a uma pequena reflexão acerca dos conceitos de cidadania e participação.

Detenhamo-nos numa pequena história à volta das palavras. Consideremos, em primeiro lugar, a ideia de CIDADANIA. Como, imediatamente, verificarão, é uma palavra que deriva de ‘cidade,’ do lat. ‘civitatem’, isto é, «o conjunto dos ‘cidadãos’ que constituem uma cidade, um estado; cidade, estado; os direitos dos cidadãos, o direito de cidade». Quanto ao destaque na palavra ‘cidadão’, importa que vos conte um episódio. Passa-se em Outubro de 1774, relaciona-se com o aparecimento do conceito e da palavra, tendo Beaumarchais (1732-99) como protagonista.

Tendo sido processado por um conselheiro de Paris, resolveu ele advogar a sua própria causa, defendendo-se perante o Parlamento, fazendo um apelo à opinião pública. Eis as suas palavras: “Sou um ‘cidadão’; não sou banqueiro, nem abade, nem cortesão, nem protegido seja de quem for. Eu sou um ‘cidadão’, isto é, alguma coisa de novo, alguma coisa de imprevisto e de desconhecido em França. Sou um ‘cidadão’, quer dizer, aquilo que já devíeis ser há duzentos anos e que sereis dentro de vinte.”

Tenha-se em consideração que a Revolução Francesa vai acontecer em 1789, passados apenas quinze anos, marcando a mais significativa fronteira entre um tempo antigo, o ancien régime, e os novos tempos de estrito respeito pela Declaração dos Direitos do Homem do Cidadão que, imediatamente, é proclamada com base na tríade revolucionária de Liberdade, Igualdade, Fraternidade, a matriz da Idade Moderna e do Estado Democrático de Direito.

O discurso de Beaumarchais teve enorme retumbância. A partir daquele momento, a designação de ‘cidadão’ foi adoptada por todos os espíritos liberais, por todos os homens de iniciativa preocupados com o interesse social. Reclamava ele os direitos civis e políticos garantidos pelo Estado, dispondo-se ao desempenho dos deveres impostos pela condição de membro do Estado.


Nestes termos, a ‘cidadania’, mais não é do que a qualidade ou condição de cidadão ou, ainda mais especificamente, a condição da pessoa que, como membro de um Estado, se acha no gozo de direitos que lhe permitem participar da vida política. A ‘cidadania’ exerce-se, só existe se for exercida.

É um exercício de atitudes cívicas com o objectivo de tornar a política possível, no respeito pelos direitos e na exigência do cumprimento dos deveres, direitos e deveres de todos os cidadãos, para que seja possível a política, a vida em comum,o viver em sociedade. E não deixa de ser curioso que o conceito de ‘política’, [do gr. Politiké] derive de polis, «cidade-estado na Grécia antiga; estado ou sociedade, especialmente quando caracterizado por um sentido de comunidade».

A ‘política’ é, portanto, o governo da cidade, do Estado, a ciência dos negócios do Estado. É o governo do ‘politikós’, isto é, do homem da cidade, do cidadão, de tudo o que é do domínio público. Daqui se conclui que, por via das nossas heranças latina e grega estes são conceitos imprescindíveis que, desde a antiguidade greco-romana, se impuseram para facilitar a concretização da vida dos cidadãos em comum.

As considerações que nos ocorrem, à volta do conceito de PARTICIPAÇÃO decorrem, invariavelmente, de tudo quanto acabámos de analisar e concluir. Trata-se, agora, das noções de partilha, da acção de participar, de ser parte de, ter parte em, tomar parte, partilhar, compartilhar.

Na realidade, reparem, só aquele que é ‘cidadão’ – cidadão entre cidadãos – animado pela necessidade de contribuir com a sua parte em projectos elaborados para benefício comum, portanto, para o bem da comunidade, só o cidadão – não o homem considerado individualmente – entra no jogo da ‘participação’, no qual não deixa de se enriquecer também como indivíduo. No entanto, a sua quota parte individual, vai juntar-se aos contributos de cada um dos outros indivíduos e, assim, resultar em atitude ou obra colectiva.

Assim sendo, CIDADANIA e PARTICIPAÇÂO são conceitos indissociáveis, ou seja, um não tem expressão sem o outro. Por outras palavras, o exercício da cidadania é inconcebível sem a participação. Todavia, impõe-se que conjuguemos estes dois conceitos enquanto elementos ou componentes de um percurso a caminho do CIVISMO. E, para que tudo fique claro, entenda-se civismo enquanto dedicação e fidelidade ao interesse público e, de modo conclusivo, afirmando-o como forma do verdadeiro patriotismo.

Chegados ao termo desta pequena reflexão, partilhemos o que está em jogo na plataforma em que conjugamos tão nobres conceitos, sentimentos tão elevados e a herança cultural que manifestamos cada vez que temos uma presença interveniente nas reuniões públicas da Assembleia de Freguesia, da Assembleia Municipal e da Câmara Municipal. E, naturalmente, tão importante e decisiva quanto aquelas presenças física e pessoal, também quando decidimos testemunhar na primeira pessoa, escrevendo acerca de qualquer assunto que nos preocupa, sempre pensando no bem comum.

Finalmente, tenhamos em consideração que esta atitude de partilha generosa, com amigos, companheiros e 'cúmplices' de lutas comuns, é totalmente incompatível com realidades outras, nos antípodas desta maneira de ser e de estar. Refiro-me à mesquinhez, à maldadezinha com que, não raro, sob a aparência das cívicas virtudes, mascarados de cordeiros, alguns agentes das trevas se comprazem em azedar a vida dos demais.

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