[sempre de acordo com a antiga ortografia]

sexta-feira, 19 de setembro de 2014



Europeu 'compósito' me confesso,
a propósito do referendo na Escócia
 
[facebook, 18.09.2014]


 Muito garotos, minha irmã Ana Maria e eu, oito/nove anos mais velhos do que os nossos mais três manos, fomos educados com uma carga muito evidente de interesses por tudo quanto era britânico. Minha mãe, em especial, ‘fez-nos a cabeça’, de tal modo estava voltada para a Grã Bretanha, em particular, para a Escócia. Os cortinados os quartos, as colchas das nossas camas, cobertas de mesa, os kilts e boinas da mana, os meus calções, tudo era feito em padrões dos tartan escoceses, ‘concedendo’ o modelo dos sapatos ou o corte de cabelo ‘à inglesa’…

Além destes sinais exteriores, a organização da casa, em especial na nossa infância, com horários rígidos, desde o levantar da cama, muito cedo, até ir para a cama, também muito cedo – no Verão, ainda com luz do dia – maneiras e regras de convívio, as edições de muitos dos livros infantis e juvenis, o ambiente e as características do escritório do pai, no Cais do Sodré, o automóvel da família, o modo como eram programadas e vividas as férias em São Martinho do Porto, e um sem número de outras molduras familiares, tudo com muita contenção, deviam imenso a uma certa maneira de ser e de estar de uma família inglesa de estrato social idêntico ao nosso.

Para fazer a instrução primária, fui frequentar o Externato Beato Nuno de Santa Maria, em Belém, cuja directora e professora, D. Rosa Alice Elisabeth Landeck, filha do arquitecto Landeck, muito conhecido na zona, praticava um ensino que tudo devia aos modelos ingleses então vigentes. A mana foi para o Colégio do Bom Sucesso, também em Belém (Pedrouços), de freiras dominicanas irlandesas.

Em nossa casa, o peso british nunca deixou de se fazer sentir. A coisa era tão natural, induzindo interesses e comportamentos específicos ‘tão naturais’ que nem me lembro de qualquer conversa ou comentário acerca do assunto. De tal modo assim era que, aos quatorze anos, uma das minhas distracções favoritas era assistir à exibição de filmes ingleses, sem legendas, no British Council. Não admira que, como curso superior, tivesse escolhido Filologia Germânica, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, ainda que, na altura dessa opção, já o universo Alemão, a Cultura, a Música em especial, tivessem figurado com um especial ponderação.

No entanto, não deixa de ser curioso que, desde muito precocemente, a minha segunda língua tenha sido e, ainda hoje, seja o francês. Com professor em casa desde os cinco anos de idade, aos dez, com um francês impecável, surpreendia uns amigos belgas do meu pai que mal acreditavam no que ouviam… De tal modo assim foi, «fenómeno» comum nas crianças e jovens da minha geração, que o meu Alemão, no Liceu, foi aprendido com base em materiais em vigor no ensino secundário oficial em França.

O pendor tão significativamente anglófilo, no caso daquela minha irmã, levou-a a preferir o estrito modelo inglês para a educação dos filhos, que fizeram todo o seu percurso escolar até ao fim do secundário no conhecido St. Dominic’s, percurso escolar esse que determinou decisivamente o seu enquadramento profissional, mesmo em Inglaterra, no caso de um dos meus sobrinhos.

Nada disto significa que não façamos parte indissociável de uma portuguesíssima família, que cultiva medularmente as evidências suscitadas por raízes muito marcadas, do Ribatejo e da Beira Alta, respectivamente, do lado paterno e materno. Entretanto, ainda poderia introduzir mais um factor determinante que caldeou a nossa atitude perante o país e o continente onde nos coube nascer e viver.

Refiro-me à circunstância de, ainda no fim dos anos cinquenta, o nosso pai ter decidido instalar uma empresa comercial e industrial em Espanha, com escritório em pleno coração de Madrid, em Calle de Carretas, esquina de Puertas del Sol. Se já tínhamos uma fortíssima costela ibérica, a partir de então ela vincou-se extraordinariamente, com a nossa frequente vivência e permanência «do outro lado», onde o pai tinha interesses em negócios por vezes mais significativos do que por cá, com bons amigos castelhanos, galegos e andaluzes. Inevitavelmente, com um tal lastro peninsular, alimentado pelo estudo académico da língua e da cultura da grande Espanha, me confesso cidadão muito confortável na assunção do seu inequívoco iberismo.

Português, ibérico, com uma cabeça precocemente feita à inglesa, tendo vivido um período de contactos profissionais muito expressivos na Dinamarca, com fortíssimos traços de união vivencial e cultural na Áustria, europeu dos quatro costados, não estou particularmente preocupado com o resultado do referendo na Escócia.

Conheço as razões de queixa dos escoceses em relação ao ‘anglo-centrismo’ cultivado a partir de Westminster. Não raro, tenho ouvido a cidadãos escoceses os mais racionais argumentos que poderiam conduzir à cisão. Contudo, em presença, estão factores de sobrevivência que o coração e a razão saberão distinguir para que o destino, em comum, possa prosseguir, num Reino Unido em que alguma coisa tem de mudar para que tudo continue, não na mesma, mas mais convenientemente para todos.

Só entendo a Escócia como parte integrante do Reino Unido. Se bem os conheço, depois de terem pregado o maior dos sustos aos restantes britânicos, estou em crer que os escoceses saberão dizer Não a uma tentação que é ‘dos diabos’…

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