[sempre de acordo com a antiga ortografia]

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014



A EFÉMERA PASSAGEM DOS DIAS E O IMPERATIVO DO DESPOJAMENTO
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Porque toda a carne é como a erva, e toda a glória do homem como a flor da erva.
A erva seca e a flor cai.

1. São Pedro 1, 24
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Pedro Maria e João,
meus netos, o pretexto do princípio e do fim e do resto

Os meus netos, Pedro Maria e João, respectivamente, com dez e dois anos e meio, ainda não compreendem a plenitude destas que são palavras sábias e perenes. De algum modo, no entanto, por via dos valores e princípios que, à sua volta, vão sendo observados, tanto pela família mais próxima como alargada, têm vivido e, espero bem, pela vida fora, continuarão a viver no respaldo e ao abrigo daquelas ideias-chave, em epígrafe.

A transitoriedade e o carácter efémero da vida constituem matizes de um mesmo quadro de referência, nos termos do qual o apelo ao lúcido e inevitável despojamento da matéria é coisa absolutamente decisiva, para ser atendida e posta em prática em todos os tempos, de tal modo que prevaleça o espírito e que, liberto este das amarras dos bens tangíveis, possa aceder à Arte, à Beleza, ao Conhecimento, como sublimes atributos da própria ideia da divindade.

Em dia de celebrar o futuro, penso nos meninos que, aqui perto e em todas as latitudes, também hoje, vivem e morrem a anos luz destas preocupações. E, de facto, assim é porque nos vamos esquecendo de que “(…) a glória do homem é como a flor da erva (…)” Pedro, santo homónimo do meu neto, bem deixou este pensamento à posteridade mas os tempos não vão propícios à sua assunção…

A propósito, sim

Por uma série de afinidades e conotações, não consigo deixar de relacionar a reflexão que convosco partilho com uma peça fundamental do romantismo alemão musical tardio. Trata-se de “Ein deutsches Requiem”, op. 45 de Johannes Brahms (Hamburg, 1833-Wien, 1897) obra datada de 1868, que, apesar do título, não reveste a forma da canónica missa que, muito naturalmente, se associa ao conceito de requiem.

Neste caso, Brahms procedeu a uma tão livre como criteriosa selecção de estratos da Bíblia, traduzidos para alemão, que, nada tendo a ver com o latino ordinário da missa de defuntos, nos remetem para uma visão despojada, necessariamente mais serena da existência humana, talvez mais próxima da mundividência cristã protestante, ainda que o compositor não fosse crente.

Hoje, dia especial de celebração da Vida – que, com a minha marca, apesar de mim, continua no Pedro Maria e no João – em mim, o são convívio com a Morte, outra face da dicotomia. O homem crente que sou, conjuga-as no trilho de uma hegeliana síntese triádica, em que ambas se articulam com a Música, a Arte que me é mais próxima e que, como toda a Arte, mais me aproxima do sublime.

Se puderem, acompanhem-me numa audição de “Ein deutsches Requiem”. Pode não ser hoje mas não deixem de o fazer. Hão-de compreender, estou certo, a razão de vo-lo aconselhar, como mais uma peça do puzzle que muitos de nós vamos jogando ao longo da vida, na tentativa de nos libertarmos do acessório. Se conseguirem chegar onde é possível, também lá estarão o Pedro Maria, o João e todos os principezinhos deste mundo e do outro…

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Deixo-vos com uma gravação de absoluta referência. Eis as suas coordenadas:


Barítono -- Dietrich Fischer-Dieskau
Soprano -- Elisabeth Schwarzkopf
Coro -- Philharmonia Chorus London
Maestro -- Otto Klemperer
Orquestra -- Philharmonia Orchestra London
Orgão -- Ralph Downes


I. "Selig sind, die da Leid tragen"
II. "Denn alles Fleisch, es ist wie Gras"
III. "Herr, lehre doch mich"
IV. "Wie lieblich sind diene Wohnungen"
V. "Ihr habt nun Traurigkeit"
VI. "Denn wir haben hier kleine bleibende Statt"
VII. "Selig sind die Toten


Boa audição!

http://youtu.be/5j5Z_oxSz5w

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