[sempre de acordo com a antiga ortografia]

sábado, 6 de dezembro de 2014



Benjamin Britten
22 de Novembro de 1913 (1976)

[facebook, 22.11.2014]


Durante quatro anos, sem qualquer interrupção, fiz crítica musical semanal no 'Jornal de Sintra' e, como não poderia deixar de suceder, na maior parte dos casos, os meus textos referiram-se a eventos ocorridos no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian.
 
São muitas, mesmo muitas páginas, escritas graciosamente, pelo prazer de partilhar o meu privilégio, pensando num destinatário específico, que já tinha fidelizado. Enquanto que, actualmente, por exemplo, nas redes sociais, me limito a apreciações de circunstância, através de notas que jamais ultrapassam um carácter relativamente «ligeiro», naquela altura, procurava que os textos alinhassem com os cânones habituais da crítica vigente.

Crítica é uma coisa, impressões de circunstância outra, muito diferente. Convém não confundir. Pois bem, a propósito dos cento e um anos de Benjamin Britten, aniversário que hoje comemoramos, gostaria de vos propor a crítica que escrevi para a edição do dia 28 de Maio de 2004 do referido jornal. Faço-o porque se relaciona com um concerto que teve lugar na sala da Avenida de Berna uma semana antes, a 21 do mesmo mês, cujo 'prato forte' fora um precioso concerto para violino e orquestra deste compositor.

Consoante as reacções, ponderarei a possibilidade de repetir esta «modalidade» a propósito de outros compositores. «Em carteira», repito, tenho centenas de textos congéneres que nunca divulguei através dos meus espaços nas redes sociais, razão pela qual não corro qualquer risco de repetição a não ser, naturalmente, com os meus amigos, principal mas não exclusivamente de Sintra, que, com muita generosidade, até me têm sugerido a possibilidade de novamente os disponibilizar.

Aqui têm o texto.Peço a vossa compreensão para a impossibilidade de utilização dos recursos gráficos do original. Depois da leitura, proponho a audição do 'Vivace' dessa extraordinária obra, num registo de alto nível, tendo como solista o mesmo Vengerov e Mstislav Rostropovich dirigindo a London Symphony Orchestra.

Boa audição!

http://youtu.be/ZatabeYLkXw




[Texto publicado no 'Jornal de Sintra', edição de 28 de Maio de 2004]

BRITTEN NO STADIVARIUS DE VENGEROV

Entre os vários eventos musicais da passada semana, viria a destacar-se o concerto sinfónico, no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, no passado dia 21 de Maio, com o violinista Maxim Vengerov que, aliás como tem acontecido em anos anteriores, também nesta temporada de 2003/04, a Gulbenkian fez a graça de no-lo proporcionar em duas oportunidades, a primeira das quais em Fevereiro passado.

Na órbita de Karajan e Celebidache

Comecemos com o concerto do dia 21, durante o qual a orquestra foi dirigida pelo maestro Christian Mandeal, que começou por estudar piano, composição e direcção de orquestra na Academia de Música de Bucareste. Trabalhou com dois míticos mestres, Herbert von Karajan e Sergiu Celebidache que, para além dele próprio, deixaram marcas indeléveis noutros dirigentes.

Depois de ter tirocinado na Ópera Romena da capital, veio a tornar-se maestro titular da Filarmónica de Bucareste, a partir de 1987. Também como maestro da Orquestra Filarmónica George Enescu, realizou inúmeras digressões. É frequentemente convidado a dirigir as mais famosas orquestras, colaborando com solistas de nomeada, nos auditórios de maior prestígio em todo o Mundo, figura de presença constante em Festivais Internacionais como o de George Enescu, em Bucareste, Istambul, Ankara, Atenas, San Sebastian, Bergamo, Brno, Bloomington ou Edinburgo.

Uma das circunstâncias que tornou o seu nome de referência obrigatória foi a gravação das integrais das sinfonias de Anton Bruckner, de Johannes Brahms e de George Enescu e no que a este último mencionado se refere, Mandeal é reconhecido como grande especialista.

Vengerov, Máximo

Como não pensar que, no caso deste artista, o nome próprio lhe assenta como uma luva? Poderíamos perfeitamente alinhar com aqueles que consideram Maxim Vengerov como o expoente máximo do violinista. Não o fazemos, no entanto, porque tal tipo de generalização é redutor e indutor de injustiças que as necessidades do mercado geram por vezes, independentemente do real valor dos músicos qualificados com esse grau de excepção.

Isto não significa que não tenha Vengerov no máximo conceito. Só para terem uma ideia do meu profundo apreço, dir-vos-ei que, até hoje, não perdi um seu único passo, tanto em Salzburg como em Portugal, naturalmente incluindo a presença no Festival de Sintra e, inclusive, a rara oportunidade de assistir à Masterclass que conduziu no Palácio Foz, em 12 de Julho de 2001.

E não renham dúvida de que se trata de um dos maiores violinistas de sempre. Nasceu na Sibéria, em Novosibirsk, ainda não há trinta anos, começou a estudar violino aos quatro e, aos cinco, dava o seu primeiro recital público. Em 1984 ganhava o concurso Wieniawsky, na Polónia e, seis anos mais tarde, classificava-se em primeiro lugar no Concurso Internacional de Violino Carl Flesch.

Desde então, nunca mais deixou de surpreender a crítica e o público mais exigentes com o apuro de uma técnica irrepreensível que, em simbiose perfeita com a controlada sensibilidade de leituras muito sofisticadas, no limite do sublime e, constantemente, à beira do êxtase, lhe permitiram ter-se transformado num verdadeiro ícone do violino, tal como, por exemplo, o seu compatriota Kissin no piano.

Tem tocado com todas as orquestras de primeiríssimo plano e colaborado especialmente com Michael Tilson-Thomas, Trevor Pinnock, Mstislav Rostropovich, Daniel Barenboim, Claudio Abbado e outros maestros de idêntico gabarito. É famosa a sua parceria com o pianista Vag Papian e, mais recentemente, como já aconteceu em Lisboa em Fevereiro, tem-se apresentado em recitais, acompanhado ao piano pelo turco Fazil Say, com quem também estará a 8 de Agosto em Salzburgo.

Calcularão que poderia continuar fornecendo interessantes informações de outra ordem, nomeadamente acerca das gravações, tanto para a Teldec como EMI que receberam as mais notáveis distinções. Na impossibilidade de o ver e ouvir ao vivo, tocando o Stradivarius “Ex-Kreutzer”, melhor que quaisquer palavras, ouçam-no através dos discos. Eu recomendaria os CD em que gravou, datado de 1997, os segundos concertos de Chostakovitch e Prokofiev e, de 1999, o Concerto de Brahms, com a Sinfónica de Chicago, sob a direcção de Barenboim.

Já vos tenho escrito acerca de violinos construídos por Antonio Stradivarius, o mais célebre luthier de Cremona (1644 ou 1648-1737). Dos mais de mil e cem que saíram das suas mãos, ainda existem cerca de quatrocentos, muitos dos quais em poder de famosos violinistas. Os mais bem cotados são os que saíram da sua oficina entre 1700 e 1725, como é o caso do “Ex-Kreutzer”, datado de 1723, um instrumento cuja sonoridade eu aguardo como a melhor das iguarias.

Uma obra 'muito british'

Vengerov veio interpretar o "Concerto Nº 2, para Violino e Orquestra", op. 15, de Benjamin Britten (1913-76), compositor acerca de quem já vos tenho passado algumas notas biográficas. Nunca será excessivo lembrar que Britten se perfila como herdeiro de uma tradição nacional muito britânica, que tanto deve aos seus compatriotas William Walton (1902-83) e Vaugham Williams (1872-1958).

Se quiséssemos, poderíamos remontar a Purcell na tentativa de entroncar as propostas de Britten que, no entanto, bastante divergem do caminho de Williams, assumindo tal originalidade que será possível referir um quadro, um universo sonoro, se preferirem, muito específico e pessoal, onde parece notar-se uma constante necessidade didáctica, que o leva à exaustiva explicitação dos temas, dos mais conformes aos mais ousados.

Abra-se um breve parêntesis afirmando que não será descabido lembrar, a propósito daquela preocupação, a sua obra "Young Person’s Guide to the Orchestra", um dos mais interessantes instrumentos de acesso aos sons da orquestra que se enquadram na mesma categoria de objectivos que motivaram Prokofiev com "Pedro e o Lobo".
 
Regressemos ao Concerto Nº 2. Composto em 1939, ano em que o compositor se exilou, primeiro para o Canadá e, posteriormente, nos Estados Unidos da América, obra que será estreada pelo violinista Antonio Brosa, com a Orquestra Filarmónica de Nova Iorque dirigida por Barbirolli, na primavera do ano seguinte, embora a versão definitiva date de 1958.

No domínio do paradigma

Francamente, eu teria esperado, por parte de Mandeal, uma leitura que reforçasse os contrastes dinâmicos, o que só aconteceu em restrita medida, felizmente sem comprometer decisivamente o resultado da interpretação da orquestra que, logo no primeiro andamento, 'Moderato com moto', deu uma belíssima impressão de entrosamento e articulação com o solista, enquanto a harpa e a flauta entoam um discurso de acordes plenos de cor.

É especialmente no segundo andamento, 'Vivace', que o violinista é obrigado a mostrar os dotes de virtuoso, sem os quais não é possível aceder à execução deste concerto. As dificuldades são tremendas. Por vezes o olhar tem dificuldade no acompanhamento da digitalização vertiginosa sobre o braço do instrumento enquanto o arco, em articulação, desenha movimentos indescritíveis, sucedendo-se os glissandos por terceiras, sextas, oitavas.

Sem interrupção, entra-se no terceiro e último andamento, 'Allegro moderato', com os trombones em destaque, abrindo ao violino a possibilidade de apresentar uma série de variações sobre um tema inspirado na passacaglia barroca, outro momento alto da obra, a preceder um final relativamente sereno.

É pouco afirmar que Vengerov se excedeu. Certamente que haverá quem o acompanhe na vertente técnica. Mas a Arte, que está para lá dessa dimensão, o fio imaterial que liga o intérprete e a audiência, o efémero quadro virtual de Beleza, que se vai construindo no tempo e que o tempo vai simultaneamente desfazendo, esse só o intérprete demiurgo consegue atingir. Tal é o caso de Vengerov. Na verdade, é o máximo...
 
O concerto iniciou-se com a execução dos dois "Intermezzi", op. 12 de Enescu, obra datada de 1903, de pendor nacionalista, radicado na herança romena, numa bela interpretação da orquestra, conduzida com a fluência que decorre da grande experiência do maestro na abordagem deste compositor.

Toda a segunda parte foi dedicada a Franz Schubert (1797-1828), primeiro com a abertura da sua única ópera, "Alfonso und Estrella" onde se manifesta toda a mestria do exímio melodista, a par de uma exemplar capacidade de diálogo entre todos os elementos da orquestra, que a última peça, "Sinfonia Nº 6, em Dó Maior", D. 589 confirma em absoluto, em termos que atingiriam as culminâncias do sublime na Sinfonia Nº 9.

Referências finais

Na mesma sala, no dia 24, apresentou-s o Trio Matisse, com um programa de música contemporânea, com peças de Luís de Pablo, João Pedro Oliveira, Alessandro Solbiati e Marício Kagel e, no dia seguinte, o Quarteto Hagen, tocando obras de Debussy, Bartók e Dvorák. Devido à importância destas presenças, na próxima semana, dedicarei este espaço à abordagem das peças interpretadas por estes agrupamentos.
 
 

Sem comentários: