[sempre de acordo com a antiga ortografia]

terça-feira, 29 de dezembro de 2015



27 de Dezembro de 1786
Efeméride mozartiana


[publicado no facebook em 28.12.2015]

Mozart, uma famosa ária de concerto
Salzburg, jubileu de 2006,

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A propósito da efeméride, mais uma vez a partilha de um episódio verídico que, tal como abaixo recordo, presenciei nos bastidores, durante a preparação da Mozartwoche de 2006, ano do 250º aniversário de Mozart.

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Bartoli, Fleming e um episódio de «conforto» vocal *

Em 27 de Dezembro de 1786, há precisamente, 229 anos, no mesmo dia em que considerava a hipótese de se estabelecer em Inglaterra, Mozart (re)compunha a Ária de Concerto 'Ch'io mi scordi di te? ... Non temer, amato bene' para soprano com piano obbligato, K. 505 que, inicialmente, se enquadra na ópera "Idomeneo" (versão de Viena)*, cantada por 'Idamante'**. Pelo próprio punho, escrevia Amadé no seu catálogo: “(…) den 27: Scena con Rondò mit klavier Solo. für Mad:selle storace und mich. begleitung. 2 violini, 2 viole, 2 clarinetti, 2 fagotti, 2 corni e Ba (…)”

Mesmo os que não sabem Alemão entendem que se trata de uma peça que o compositor escreveu para (Nina) Storace, a grande voz da actualidade por aqueles dias vienenses, 'und mich' i.e., e 'para mim', indicando que ele próprio também a estreou. A propósito desta obra que exige irrepreensíveis dotes vocais, gostaria de vos contar o episódio absolutamente verídico, cujos meandros, como privilegiado membro do Mozarteum de Salzburg, acompanhei em 2006, ano do jubileu mozartiano, por altura do seu 250º aniversário.

Para o concerto de gala do dia 27 de Janeiro, no Grosses Festspielhaus, a Fundação do Mozarteum tinha convidado René Fleming que interpretaria esta peça acompanhada ao piano, nem mais nem menos do que por Mitzuko Ushida. Portanto, como se depreende, tudo ao mais alto nível mundial. Pois bem, praticamente sem qualquer hipótese de substituição, o agente de René Fleming informou o Mozarteum de que a diva não se sentia particularmente «confortável» para a interpretação da ária, sugerindo que fosse apresentada uma alternativa…

Garanto a veracidade deste documento. Eu li-o. Se bem entendem, nas entrelinhas, e, por outras palavras, preto no branco, o que René Fleming dava a entender era que, pelo menos, naquela altura, o seu gabarito não chegava para cantar 'Ch’io mi scordi di te'. E, com indisfarçável sobranceria, ainda pedia que tratassem, isso sim, de lhe apresentar uma outra proposta, enfim, mais acessível…

Bem, com quem ela se meteu! Se lhe passou pela cabeça que o Mozarteum alteraria uma vírgula ao convite inicial, deve ter ficado siderada quando leu a resposta inequívoca – à qual eu também tive acesso – em que a Fundação reiterava o que havia proposto, esclarecendo mesmo o seu objectivo de apresentar uma obra de grande dificuldade em que, também naquela especialíssima gala, mais uma vez, o génio de Mozart estaria bem patente.

Resumindo e concluindo, a Fleming «borregou». E, para a substituir, servindo-se de meios que mais nenhuma casa em todo o Mundo se poderá gabar, o Mozarteum conseguiu que, 'em cima da hora', Cecilia Bartoli assegurasse a interpretação da obra que Mozart compusera para a Storace duzentos e vinte anos antes. Com um profissionalismo a toda a prova, a Bartoli foi excelente, mal tendo tempo para se preparar.

Tendo tido oportunidade de assistir ao concerto incluído na 'Mozartwoche' de 2006, até posso confirmar, como então escrevi numa crítica, que a Bartoli cantou a ária evidenciando uma coloratura um tanto ou quanto mais floreada que o exigível, fugindo algo ao classicismo da peça, e propondo contornos mais barrocos, registo em que é exímia.

Pois bem, em primeiro lugar, gostaria de vos propor um registo dessa interpretação em que, além do famoso mezzo, se juntam os prodígios da Filarmónica de Viena sob a direcção de Mutti e Mitsuko Uchida. [I] E, seguidamente, uma gravação em que a mesma peça é interpretada, nem mais nem menos do que por uma estupenda René Fleming e Christoph Eschenbach, no piano obbligato e na direcção da orquestra. [II] A gravação foi obtida num concerto ao vivo em Paris, em 2002, portanto, quatro anos antes do convite do Mozarteum, altura em que Fleming estaria mais «confortável» para a abordagem da ária. Comparem e tirem as vossas conclusões.

Boa audição!

http://youtu.be/oPOn4sphnL0 [I]
http://youtu.be/lHrYNb52jug [II]

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(*) Texto aqui publicado em 27.12.2013;
(**) A versão inicial de "Idomeneo, rè di Creta" foi estreada em 29 de Janeiro de 1781 no Residenz Theater (actualmente, Cuvilliées) em Munique. Data de cinco anos mais tarde, a versão que Mozart prepara para a estreia em Viena, que ocorre em 13 de Março de 1786, versão esta que compreende 'Non temer, amato bene' a ária de 'Adamante' com que inicia o II Acto. Interessante lembrar que o acompanhamento «obbligato» era assegurado por violino e não pelo piano, como na ária de concerto.


 
 
 

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