[sempre de acordo com a antiga ortografia]

terça-feira, 19 de janeiro de 2016



18 de Janeiro de 1930
Nascº de Mª de Lourdes Pintasilgo (m.2004).


[publicado no facebook em 18.01.2016]

Faria hoje 86 anos. E que falta nos faz! O texto que passo a transcrever foi publicado no 'Jornal de Sintra' em Julho de 2004, dois ou três dias depois da morte desta amiga.

Para entendimento total destas linhas, escritas há 12 anos, conveniente será lembrar que a Maria de Lourdes partia na altura em que Durão Barroso rumava a Bruxelas para a sua medíocre saga na Comissão Europeia e Jorge Sampaio se preparava para entregar o cargo de PM a Santana Lopes, a quem «dedico» as veementes palavras que lerão na medida em que não me passava pela cabeça que teriam de passar 7 anos até que o advento de Passos Coelho traria alguém ainda mais desqualificado...
 
Raríssimos sendo os políticos portugueses a quem podemos atribuir a nobre condição de estadistas, não tenho a menor dúvida de que a MLP é um deles. Dela, uma saudade imensa. Em Portugal, como católica, como cidadã, como política, talvez a minha maior referência.

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Pintasilgo e os fariseus

Estava prestes a começar um dia de trabalho, participando numa reunião da Federação de Sindicatos da Educação a cujo Secretariado Executivo pertenço. Ia ocupar o meu lugar quando,
algo de chofre, um companheiro me deu a notícia. Tinha morrido Maria de Lourdes Pintasilgo.


Por mais que, em termos meramente racionais, se imponha a inevitabilidade do fim, o que na realidade sucede é a dificuldade em aceitar, como coisa natural, que a morte me tivesse levado a amiga. O espanto, misturado com o choque, foram tão violentos que, de imediato, em sofrido amálgama, desfilaram a memória de vivências comuns e a partilha de ideais, o respeito e a admiração por quem formatava tantas das minhas referências, juntamente com a sua constante procura e o permanente encontro com a beleza, a música e a poesia no quotidiano, o franciscano desprendimento da matéria, a mais elevada noção de serviço...

E depois, subitamente, avassaladora, eis que a espiral do torvelinho me lançava na dimensão onde, apesar do encontro com os mais nobres valores, tudo bascula e resulta inevitável, irremediavelmente mais frágil, mais pobre. Assim, de repente, ainda no luto de António Sousa Franco, outro amigo do reino que não é só deste mundo, deixa-nos a Maria de Lourdes. No entanto, tão especial é o testemunho da sua vida que, pelo menos, aí nos fica o seu testamento político em altura que não podia ser mais propício à reflexão.

Não consigo, contudo, deixar de pensar em mais duas pessoas que, também como ela, reclamando-se da condição de católicos praticantes, exerceram as funções de Primeiro Ministro deste país. Como não pensar em António Guterres e Durão Barroso, esses dois grandes mestres da arte da fuga, que, com o maior despudor, no momento mais estratégico das suas pessoais e individuais motivações, ignoraram o interesse dos governados que tinham jurado defender, dando a entender que o faziam pelo superior interesse nacional ?...

Na realidade, o posicionamento cívico e político da Maria de Lourdes nada tem de coincidente com o destes dois perfeitos, completos e acabados fariseus. Foi sempre uma mulher empenhada nas causas bonitas, com invulgar investimento intelectual nos mais diversificados domínios das ciências e das humanidades, preparadíssima para enfrentar os desafios do seu tempo, ela que, invariavelmente, esteve à frente do tempo.

Num país que, entre outros desfavoráveis factores, apresenta uma pobreza endémica e estrutural, com mais de vinte por cento de pobres absolutos, neste Portugal que continua a ter a maior taxa de analfabetismo pleno e funcional de toda a União Europeia, Maria de Lourdes Pintasilgo elegeu como campos preferenciais de actuação, a promoção sociocultural das mulheres, a alfabetização, o combate contra a pobreza, a defesa da democracia participativa, a ecologia, as energias alternativas.
Enquanto católica, dela fica a memória de um permanente alinhamento com os sectores da Igreja progressista, de militante para quem a Fé é factor de maior exigência na qualidade do serviço aos outros.

Pessoas como a Maria de Lourdes, o meu querido e saudoso Padre Alberto (que conheci no princípio dos anos sessenta, como professor do Liceu D. João de Castro, na paróquia de Belém e na Juventude Escolar Católica), os Padres Felicidade Alves, João Resina Rodrigues, Elisete Alves, Gabriela Ferreira e gente mais nova, a Catalina Pestana, por exemplo, eram e são pessoas de tal estirpe e gabarito que, há mais de quarenta anos, se tinham adiantado ao próprio Concílio Vaticano II, instituindo atitudes e práticas de culto que, mesmo hoje, são consideradas revolucionárias.

Como é que, por oposição, não havia de me ocorrer o exemplo dos dois governantes que podem ter sido e virem a ser tudo o que a desmedida ambição lhes apontar sem que, jamais alcancem o estatuto de estadista que detinha Maria de Lourdes, como tal sendo considerada nos meios internacionais mais insuspeitos, juntamente e apenas com Mário Soares?

Estou certo de que os leitores habituais do Concelho Adiado compreenderão que tenha feito esta evocação da Maria de Lourdes Pintasilgo, cidadã a todos os títulos verdadeiramente excepcional, cujo último serviço à nação não foi acolhido. O conselho que o Presidente da República lhe solicitou não foi aproveitado, de nada serviu ter-se incomodado ao ponto de considerar que o país está a viver a pior crise desde o Vinte e Cinco de Abril.

Muito me pesa que a Maria de Lourdes tenha partido, necessariamente muito amargurada, apreensiva pela possibilidade de os destinos da nação serem confiados a um dos políticos menos qualificados, mais populistas, mais superficiais, o exemplo mais acabado de um hodierno conselheiro Acácio da nossa desgraçada classe política e pela mão de um padrinho que ninguém esperava que tivesse ali para os lados de Belém. Que desgosto não terá sido o seu?!

Quanto a nós, ao desgosto imenso de ter perdido uma referência vital, soma-se este de já pressentir em São Bento o poder da mais atrevida incultura, a galope na vacuidade de ideias, a ausência do sentido de Estado mascarada pelos fatos de bom corte, o charme pacóvio de um meia-tigela arvorado em chefe de governo, utilizado por astutos burgueses que dele se servirão para alcançar objectivos imediatos e prebendas.
 
 
 
 

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