Há quem afirme o Palácio da Vila, com as suas duas grandes chaminés, como ex-libris de Sintra. Outros dirão ser o Palácio da Pena. Aqueloutros contradirão, apostando no Castelo dos Mouros. Bem, tão pródiga é esta terra em património natural e edificado que não faltam extraordinárias peças, reclamáveis a título de emblema, que poderiam identificar, simbolizar Sintra e os sintrenses como marca inequívoca.
Como sabem, o ex libris é isso mesmo, uma marca única que indica uma posse e, eventualmente, até uma maneira de pensar. Trata-se de uma vinheta desenhada ou gravada que os bibliófilos colam, geralmente, na contracapa de um livro, da qual consta o nome deles ou a sua divisa, e que serve para indicar posse. Por extensão do significado, também se entende como representação simbólica, podendo afirmar-se, por exemplo, que o Palácio da Pena é o ex libris de Sintra.
Detenhamo-nos na acepção de representação simbólica, a que mais nos convém para efeitos desta pequena peça. Para que se estabeleça, sem equívocos, a correspondência entre o símbolo e a coisa simbolizada, necessário se revela que um e outra permaneçam intocáveis nas suas características e contornos definidores. Por exemplo, quando se diz que o Palácio da Pena é o ex libris de Sintra, temos em consideração a inteireza substancial, por um lado, do monumento e o seu enquadramento e, por outro, não todo o concelho, note-se bem mas, isso sim, a da sede do concelho, com toda uma carga patrimonial, real e virtual que lhe está colada, desde tempos imemoriais até à actualidade.
Ora bem, os tempos actuais mostram uma inteireza substancial de Sintra, de tal modo desvirtuada e alterada, que as relações estabelecidas com as suas representações simbólicas, os tais ex libris, deixaram de funcionar. Tão simples como isto, não servem, desadequaram-se, passaram a ser mentira e a causar desprazer quando, antigamente, acontecia precisamente o contrário.
Alterou-se como, essa coisa que Sintra tinha, que tão harmoniosamente se articulava com determinadas páginas de arte literária, de música, de pintura, em suma com a Beleza na sua mais evidente expressão? O que aconteceu, e de tão evidente, para que os discursos metafóricos e alegóricos deixassem de ser possíveis, pelo menos, nos termos em que nos habituou o convívio com a realidade envolvente?
A cupidez, o provincianismo pacóvio, leis ultrapassadas, a falta do exercício da autoridade democrática, a institucionalizada cultura do desleixo, ah não tenham dúvida, têm desempenhado o seu papel, tão eficazmente quanto seria de esperar de mistura tão explosiva. Sintra, como não podia deixar de acontecer, devolve-nos uma imagem directamente proporcional a investimento tão negativo.
Naturalmente. Com um centro histórico degradado, descuidado, sujo; sem estacionamento devidamente organizado; com um trânsito labiríntico, fruto de soluções mal equacionadas e concretizadas à trouxe-mouxe; sem um regime de cargas e descargas operacional e civilizado; dotada de rede de transportes deficiente e desarticulada dos serviços que é suposto prestar a uma comunidade do século vinte e um e, na ignorância das políticas de gestão urbana vigentes nos locais congéneres, estava-se à espera de quê?
Tudo isto é tão real, verdadeiro e pertinente que o gigantismo do concelho se encarregou de completar o sinistro quadro. E aí estão, para quem quiser dar uma volta de domingo, dedicada ao ciclo dos horrores, algumas fregusias betonadas, desumanas, descaracterizadas, com incríveis manchas de clandestinidade e uma tal identidade sintrense que podiam pertencer aos concelhos de Vila Franca, do Barreiro, de Torres Vedras que ninguém dava por isso...
Queiram ou não os decisores políticos, os promotores imobiliários e todos os publicitários a quem dá jeito vender uma imagem de Sintra que, de modo algum, corresponde à realidade, rebentaram os símbolos, os tradicionais ex libris são mesmo coisa do passado. Sabem? Apesar de uma luta e vontade inquebrantáveis, de um constante remar contra a maré, permanece-me o amargo de boca de alguma culpa, por não ter concretizado ou ter mal direccionado os escassos meios.
Todavia, de todo em todo, se houver quem sinta uma grande necessidade de símbolos de Sintra que, sem margem para quaisquer dúvidas, funcionem em perfeita sintonia com a realidade, então, entre muitas outras, eu poderei apresentar uma imediata alternativa. Basta passear pela Volta do Duche, passar a zona reentrante de estacionamento, em frente à fonte romântica de inspiração mourisca e, à cota baixa, olhar o Rio do Porto.
Ali está, se quiserem, o novo ex libris de Sintra: uma casa pombalina arruinada, parcialmente embrulhada nos painéis já rasgados duma farsa performativa de pseudo intervenção urbana, painéis comidos pela própria lógica de máscara, de uma Sintra do esconde-esconde, do tapa o Sol com a peneira. Apesar de lhe terem retirado o ferro velho de um automóvel que conferia certo toque afavelado, é bem o símbolo do que está a acontecer em Sintra, o quase perfeito (ou mais-que-perfeito?) ex libris.
2 comentários:
Caro Dr. Cachado
Mais uma vez a cumprimentar e a concordar consigo. É irónico mas muito certo. E ainda outra coisa: não se pode brincar com os símbolos porque são referências das populações e contam histórias que estão ligadas às tradições e valores que aprendemos dos nossos avós.
Continuarei a acompanhar com muito interesse. Parabens.
Artur Sá
Caro Artur Sá,
Muito obrigado pela sua permanência. Para além do que um e outro já escrevemos, aida poderia acrescentar que, como sabe, são os símbolos que levam determinadas pessoas, que moram no Monte Abraão, Mira Sintra e outros betonizados lugares, a afirmar que moram em Sintra o que, convenhamos, «é um pouco diferente»...
Aqui está outro assunto que dava pano para mangas...
Um abraço
João Cachado
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