Acordo ortográfico
Enquanto filólogo, membro fundador da Associação de Cultura Lusófona (ACLUS), desde já vos afirmo e confirmo que a minha posição é contrária à necessidade de celebrar um qualquer Acordo Ortográfico entre os países cuja língua materna e/ou veicular é o Português. Há cerca de vinte anos, desde a altura em que trabalhava como Técnico Superior do Ministério da Educação no Instituto de Cultura e Língua Portuguesa (anteriormente designado como Instituto de Alta Cultura e, mais recentemente, Instituto Camões), tenho tido oportunidade de manifestar tal opinião e sem razões para a alterar.
Na realidade, desde fins dos anos oitenta, que o rio de tinta não pára de engrossar nos meios afectos a esta problemática, em especial, entre membros da Academia das Ciências de Lisboa, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, nas iniciativas promovidas pela própria ACLUS, ou noutras em que tem participado neste e no outro lado do Atlântico, não só no Brasil mas também em África.
Como acérrimo defensor de todas as causas que se articulem com a preservação do património cultural que, stricto sensu, apenas estamos habituados a relacionar com os bens edificados e naturais, considero que o linguístico, tanto na vertente fonética como na ortográfica, está sendo objecto de tantos e tão sistemáticos ataques, que as negativas consequências dos dislates em curso não são sequer previsíveis.
Tendo em consideração a necessidade de que nos entendamos a partir de uma boa base de partilha comum, proponho que nos socorramos do verbete subordinado ao título Acordos Ortográficos, elaborado pelo Prof. Doutor Ivo de Castro, professor catedrático de Linguística da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, integrante do Dicionário Temático da Lusofonia*.
"(...)
Assim, o Brasil continua a reger-se por uma convenção ortográfica de 1943, e Portugal, com os países africanos, pelo acordo de 1945.
Ambas as ortografias vigentes têm espírito reunificador, mas a de 1943 aproxima-se mais da realidade sonora, suprimindo as consoantes não articuladas e acentuando de acordo com o vocalismo brasileiro. A de 1945 recupera consoantes etimológicas não articuladas e rejeita o uso do trema; no Brasil foi sentida como lusitanizante. O acordo de 1990 tem um espírito diferente, pois aceita a irreversível divergência das variantes nacionais no plano fonológico e propõe que elas sejam representadas por duplas grafias (na acentuação de vogais, nas consoantes articuladas ou não).
As principais inovações do acordo de 1990 situam-se em quatro àreas: as consoantes mudas (conservam-se quando são pronunciadas em todo o espaço geográfico da língua portuguesa: ficção, pacto, adepto, núpcias; suprimem-se quando não são proferidas em nenhuma das normas cultas: ação, afetivo, direção, adoção, ótimo; têm dupla grafia nos casos de pronúncia dupla: facto, receção em Portugal contra fato, recepção no Brasil); a acentuação gráfica (têm dupla grafia as vogais seguidas de m e de n, nas proparoxítonas e paroxítonas: cómodo, efémero, fenómeno, génio, ténis em Portugal, contra cômodo, efêmero, fenômeno, gênio, tênis no Brasil bem como as vogais finais nas oxítonas: bebé, cocó em Portugal, contra bebê, cocô no Brasil); a hifenação, que é reduzida (entre prefixo terminado por vogal e palavra começada por r ou s, o hífen é substituído pela duplicação da consoante: contrarregra, infrassom e deixa de se usar na flexão de há de, hão de); o alfabeto, que passa a acolher três novas letras: k, w, y."
Como acabam de verificar, trata-se de informação despida de qualquer opção, mais ou menos favorável à pertinência da adopção de um instrumento com as características do que está em causa, limitando-se a esclarecer o statu quo e as novidades emergentes.
Ora bem, verifiquem como a minha causa se basta a si própria. Se me acompanharem no recurso ao forte argumento que introduzo, a polémica cai logo pela base. Já repararam que nem os britânicos e outros anglófonos, nem os franceses e outros francófonos, nem espanhóis e outros hispanófonos alguma vez sentiram a necessidade ou se preocuparam com a celebração de semelhante protocolo?
Deixando a resposta em suspenso, aqui poderia terminar. Mas convém-me continuar, agora sublinhando a ideia de que, no Brasil, a convenção ortográfica de 1945 foi considerada lusitanizante, na medida em que recupera consoantes etimológicas não articuladas. Se bem tiverem em consideração que tais traços etimológicos são indispensáveis à preservação patrimonial visível das palavras que escrevemos, talvez se ganhe consciência da lesão que constituiria a sua supressão.
Aliás, ao contrário do que parece evidenciar uma inequívoca intenção facilitista do Acordo de 1990, a tal visibilidade da etimologia não deixa de oferecer trunfos muito interessantes aos professores de português. Não a todos, note-se. O docente bem preparado, esse conhece o espantoso efeito observado nos jovens alunos, quando conta a história de qualquer palavra, o seu percurso, desde o étimo até à actualidade, história baseada nos estudos linguísticos, no conhecimento da fonética, na semeogonia e semeologia, áreas científicas indispensáveis.
Abrir parêntesis:
[Todavia, o contrário, ou seja, o território dos ignorantes, não é particularmente surpreendente porquanto, hoje em dia, é possível fazer uma licenciatura (???) em Letras, Línguas e Literaturas, chegando à Faculdade de Letras sem qualquer conhecimento de Latim... Surpreende, isso sim, mas parece ninguém preocupar, como é que os jovens licenciados (???), entretanto já a leccionar, se permitem ensinar as línguas portuguesa, francesa, inglesa ou alemã...]
Fechar parêntesis.
Ainda a propósito, gostaria de chamar a atenção de todos os interessados para A língua portuguesa em tratos de polé, ensaio absolutamente notável do Prof. Doutor Vitorino Magalhães Godinho, publicado na última edição (26 de Março-8 de Abril) do JL, frontalmente contra o acordo ortográfico de 1990, agora ratificado por Portugal. Note-se que, a pedido do autor, o texto tem a particularidade de manter a sua ortografia.
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*Dicionário Temático da Lusofonia, CRISTÓVÃO, Fernando (dir. e Coord.), AMORIM, Maria Adelina, MARQUES, Maria Lúcia Garcia, MOITA,Susana Brites, Texto Editores ed., Lisboa, 2005
2 comentários:
Gostaria que se pronunciasse quanto à eventualidade das negociatas que esta questão envolve.
Muito obrigado
F. Sobrinho
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