À Cruz Alta, a pé…
No primeiro quartel do século dezasseis, cerca de 1522, o Senhor D. João III a mandou edificar e colocar no cume da serra de Sintra. Quatrocentos e muitos anos depois, coube ao Senhor D. Fernando II a iniciativa de lá erguer uma outra, em substituição da original que fora danificada por sério temporal. E agora, depois de ter sido atingida por um raio que a destruiu em 1997, eis nova réplica, solenemente inaugurada no passado sábado.
A simbologia que encerra, enquanto sagrado objecto e ícone máximo da cristandade, a presença naquele mítico lugar, ao longo de quase cinco séculos, depois da breve ausência de onze anos, constituíam motivos para a grande expectativa que precedeu a sua reposição. Da incumbência se encarregou a empresa de capitais públicos Parques de Sintra Monte da Lua (PSML), nestes nossos dias em que o poder da res publica já não está confiado às monárquicas pessoas para se entregar a plebeias mas, por vezes, também nobres mãos.
Nobre – digo e escrevo bem – nobre gente é esta que, depois de outra, de desgraçada memória, nos está a devolver o direito ao usufruto dos privilégios da serra, nomeadamente de Monserrate, do Castelo dos Mouros e da Pena que nos foram subtraídos por décadas de escandaloso desleixo. Naturalmente, me refiro ao conselho de administração presidido pelo Prof. António Ressano Garcia Lamas que é merecedor dos maiores encómios. *
Elogio e invejas
Não tenho regateado elogios e espero poder continuar a fazê-lo, como soe dizer-se, por muitos anos e bons, a esta equipa que não deixa créditos por mãos alheias. Tudo quanto tem vindo a ser concretizado é sistemático, obedece a um plano que se inscreve numa perspectiva sistémica e integrada, num território de extrema fragilidade ecológica, dotado de notabilíssimo património edificado, um conjunto onde as intervenções se vão sucedendo com o cuidado das pinças dos gestores e dos técnicos.
Mas não nos desviemos e, tão somente, atentemos no caso da Cruz Alta. Desde já quero assinalar que muito se engana quem possa pensar que o trabalho da PSML se limitou a mandar replicar o monumento pétreo e a recolocá-lo. Isso que já seria muito e que, afinal, correspondia ao singelo desejo da maioria das pessoas, habituada a ter o mínimo dos mínimos, foi altamente ultrapassado pelas obras que a empresa desenvolveu.
A circunstância foi aproveitada para recuperar e totalmente beneficiar o acesso que, desde o Picadeiro, conduz o visitante até ao cume. É uma obra notável, em paralelepípedo de granito, dotado das respectivas valas laterais de escoamento, obra esta, aparentemente discreta mas essencial, que se processou à medida que também se procedeu à limpeza de vegetação e ao desbaste arbustivo nas imediações, num misto de preocupações de ordem estética, de higiene florestal e de respeito absoluto pelo património, mais um exemplo do dedicado empenho da equipa sob coordenação do Engº Jaime Ferreira.
Está, pois, de parabéns toda esta boa gente da PSML, que enfrenta tantas dificuldades como as demais entidades públicas e privadas que, apesar de todas as contrariedades, vão fazendo coisas em Sintra. Num país a atravessar tão grandes dificuldades, onde o mínimo sucesso é olhado com imoderada desconfiança, não admira que a PSML seja alvo do pior defeito dos portugueses, ou seja, a invejazinha torpe e ordinária.
Quanto mais pública e notória é a evidência do bom trabalho que nos chega daquelas bandas, mais vozes pretendem denegrir um trabalho cujos responsáveis têm o nome que, com tão grato prazer, lembro nestas linhas. Pudesse eu fazer o mesmo acerca de outras pessoas que, coitadas, inglória e quotidianamente, se limitam a arrastar a grande pedra de Sisifo, sem que jamais encontrem a sua centelha de Prometeu!…
A bela e o senão…
No entanto, não se deixem embalar por tão expressiva loa já que, mais especificamente, naquela manhã do passado sábado nem tudo correu como deveria. E, de algum modo, apesar de toda a boa vontade, não é possível deixar de atribuir, também à PSML, alguma quota parte de responsabilidade pela desatenção que terá revelado, não cuidando de salvaguardar os aspectos que me permitirei destacar.
Primeiramente, não posso deixar de trazer o mais veemente protesto pelo facto de a esmagadora maioria dos participantes na cerimónia se ter deslocado até lá acima em viatura própria ou oficial. Não dei por que estivessem presentes velhinhos decrépitos, deficientes motores, grávidas, ou outras pessoas, cuja particular dificuldade de deslocação justificasse a utilização de veículo automóvel poluente, atravessando um verdadeiro santuário, onde só a mobilidade a pé ou a circulação em hipomóvel devia constituir regra inequívoca.
Assim se perdeu a soberana oportunidade de promover e fazer a pedagogia de uma atitude não só a privilegiar como, inclusive, a impor. Podia ter-se recorrido às digníssimas autoridades presentes na cerimónia, obrigando-as ao patrocínio público da prática da caminhada a pé no acesso a um local com tais características. Foi um imperdoável esquecimento.
Já tenho ouvido alguns responsáveis que, a torto e a direito, invocam o exemplo de Neuschwanstein, na Baviera, comparando-o com a Pena. Depois de os ver, chegando à Cruz Alta de BMW e Mercedes Benz, fico na dúvida. Terão mesmo lá estado nas germânicas paragens? É que, se fosse verdade, estou em crer que se envergonhariam por não terem sabido copiar e aplicar o modelo.
Quando, como já aconteceu em tempos idos (e muito bem!), há a intenção de fechar o trânsito a automóveis particulares na Rampa da Pena, entre outros objectivos, também como medida de preservação do ambiente, mal se entende como se proporciona um comportamento, tão a despropósito, no interior do próprio parque, coisa normal entre nós mas que urge alterar a todo o transe…
Como seria interessante ter visto o inefável Senhor Ministro do Ambiente – por sinal anafado e a precisar de exercício – bem como outros sintrenses típicos casos de defensores do património (?!), subindo pelo seu pé até à altura de merecerem os incontáveis benefícios de local tão especial… Pois não senhor. Todos de carrinho ou de carrinha, que derrapavam no areão recém aplicado, ainda solto sobre a granítica pedra, à entrada de rotunda no meio da qual está a Cruz, levantando a poeirada que imaginam. Cena muito edificante…
(continua)
*Atenção, caros leitores, muito naturalmente, na alusão à gente de desgraçada memória, não está incluído o Engº António Abreu, pessoa que, aliás, me merece a maior consideração.
Aproveito a oportunidade para reiterar admiração pela sua coragem, ao denunciar a cobertura que deram a actos controversos da gestão do biólogo Serra Lopes os então Ministro e Secretário de Estado do Ambiente, respectivamente, José Sócrates e Pedro Silva Pereira (texto de António Abreu publicado pelo Jornal de Sintra em 24.12.2004).
6 comentários:
Senhor Cachado,
O senhor gosta de cultivar algumas meias tintas. Certa vez a Fátima Campos de M. Abrão respondeu-lhe à letra convencida que o senhor a atingia. No seu poste de hoje ataca o Ministro do Ambiente mas deixa a dúvida se é a Adriana Jones o tal caso típico sintrense de defensor do património que também foi de carro para a Cruz Alta. Fale claro João Cachado e trate todos de igual maneira.
Caro Senhor João Cachado,
Nem sempre tenho ocasião de ler o seu blogue mas faço-o com muita atenção e aprecio as palavras uma a uma. Pessoa minha amiga e leitora do Jornal de Sintra teve a atenção de me telefonar e recomendar esta leitura que julgo ter o mesmo texto daquele jornal que não recebo, nem sei porquê, talvez por morar numa zona mais isolada e distante do concelho de Sintra.
Felicito-o pelo texto de cuja clareza é possível retirar os visados sem necessidade de lá colocar os nomes. Isso é uma grande virtude pela curiosidade que os visados muitas Têm em saber se é mesmo com eles ou se podem escapar.
Graças a si fiquei esclarecida sobre a cerimónia a que gostava de ter assistido mas fiquei com um retrato dos presentes. Se soubesse que havai autocarros lá para o alto teria ido, mas canso-me muito a ir a pé até à Praia que é a cerca de um quilómetro da minha casa mas nem por isso deixo de apreciar pessoas que conseguem ir de Sintra até ao Magoito a pé quase todos os dias para aproveitar a praia.
Receba então os meus agradecimentos e espero mais artigos como este.
Júlia Elisa Palha
Senhora D. Júlia Palha,
Acredite que fiquei muito sensibilizado pelas suas palavras de apreço. Constituem um verdadeiro lenitivo para quem ainda não desistiu de pôr o dedo nas feridas abertas que abundam por essa Sintra.
A cerimónia em que a senhora não participou, particularmente naquele aspecto que tive oportunidade de denunciar, foi bem elucidativa do bem prega Frei Tomás...
Na verdade, que despudor! Esta notícia, estampada num jornal de grande circulação, daria que falar. Assim, fica mais ou menos reservada. De qualquer modo, trata-se de uma atitude muito manhosa que não deixa de desmascarar quem apregoa determinada mensagem mas não assume o seu conteúdo...
Como deve entender, há muita maneira de ser falso beato, mesmo fora do âmbito religioso. No caso vertente, quase se poderia falar em hipocrisia institucionalizada. Ah, é verdade, como não respondo a gente anónima, deixe-me aproveitar a oportunidade para lhe agradecer a referência implícita ao comentário das 18.33 de ontem, felicitando-a pela pertinência da interpretação que retirou da minha alusão ao sintrense típico caso de defensor do património. Como dizia o meu avô materno, vai para a pasta das dúvidas...
Dar-me-á muito prazer se puder voltar. Melhores cumprimentos do
João Cachado
Caro João Cachado,
Também estive na Cruz Alta, com a alegria que imaginará por - finalmente - uma nova administração ter tomado a peito a colocação de uma nova cruz naquele local com tanta história.
Gostei de me colocar num sítio especial, um pouco à parte de figuras tão exemplarmente importantes e ao mesmo tempo tão indiferentes perante a imagem de uma Sintra em cada dia mais degradada. Pode ser que a nova Cruz lhes tenha colocado ao peito a nova cruz, talvez até uma nova cruzada, com MKT e publicidade, porque as eleições se aproximam.
Poderia aqui inventariar coisas do arco da velha, desde a Rua dos Arcos à velha garagem em ruínas, passando pelos contentores de lixo mesmo na frente do Turismo (cujos odores não chegarão ao titular da pasta)que graciosamente libertam aqueles cheiros para os turistas, sem que os "tipicos defensores" dos cheiros do lugar intervenham.
Voltando à Cruz, ela lá ficou de novo imponente e pronta para ser vista por milhares de visitantes, os quais durante anos compraram bilhetes com a sua foto impressa e não a localizavam.
Fernando Castelo, caro amigo,
Em três ou quatro parágrafos, o seu texto reproduz, em síntese feliz, uma série de sintrenses paradoxos.
Quando lhe escrevo ou, melhor até, se tenho o privilégio de estar consigo, é raro não encontrar uma quase total coincidência de pontos de vista. O Fernando Castelo é uma pessoa consequente, discreta, lutadora que, ansiosa por tornar a sua intervenção cívica o mais operacional possível, se tem disponibilizado e oferecido à comunidade, os seus conhecimentos e préstimos sem que Sintra lhe saiba reconhecer o mérito.
E é pena. Corro o perigo de ferir a sua modéstia mas, na realidade, em si,nos vemos ao espelho, muitos de nós, dos que lutam por uma Sintra melhor, inclusive tendo militado no seio de grupos que não nos mereciam, feridos que estão por fariseísmos, hipocrisias, compromissos e medos atávicos em que não nos reconhecemos.
Felizmente, há a Alagamares. Não nos esqueçamos que todas estas situações que o meu amigo aponta, de facto, têm contado com a sua, com a minha e com a atenção de outros amigos que, a nível individual, pouco conseguem. Com a Alagamares, dando-lhe a força que sabe poder em nós encontrar, conseguiremos dar passos mais seguros.
Eu hei-de morrer a confiar nas virtudes do grupo. Estou farto de lutas individuais e quixotescas. Os nossos «moínhos», bem reais, são uns biltres que por aí andam a envenenar este bom ar de Sintra, a transformar boa terra num lodaçal imundo e horroroso, apenas olhando o respectivo umbigo...
Castelo amigo,
Nós não temos compromissos, não devemos favores nem ao Senhor Presidente da Câmara, nem aos Senhores Vereadores. Nâo mendigámos empregos nem benesses. Apenas temos dado e pretendemos continuar a dar o melhor do nosso esforço a esta terra que amamos sincera e lealmente.
Como também não estamos à espera nem de medalhas nem de prebendas, o caminho é só um: alto e bom som, doa a quem doer, sem tagatés. E não nos esqueçamos igualmente que há crianças e jovens que - por vezes não parece... - estão atentos ao exemplo dos mais velhos.
Não acha?
O maior e fraternal abraço do
João
Caro João Cachado,
Sinto pela sua amável mensagem que me dá virtudes que não tenho.
É verdade que me preocupo com coisas que sejam comuns, onde os interesses sejam colectivos e, chegado a esta fase da minha vida, sem ter abotoado o colarinho nos atacadores dos sapatos (imaginará o incómodo da posição, não é verdade?) não era agora que cederia nos meus pobres princípios.
Tenho pena, acredite, que muitas pessoas a quem tenho dado a minha confiança, não confirmem em rigor o que pensava delas. O erro será meu, pouco ajustado a tácticas como no futebol ou a tabuleiros de xadrez (como sabe, neste jogo uns à defesa, outros ao ataque).
Repugna-me que não haja dinheiro (DIZEM)para tanta coisa que falta e se gastem fundos numa página inteira de anúncio aos manuais escolares oferecidos.
Meu caro,
São poucos os meus méritos, avaliação que cotejo com a pouca consideração que políticos de referência concedem às minhas sugestões e alertas, mas o problema não é meu, é deles e dos seus amigos.
Um abraço,
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