[sempre de acordo com a antiga ortografia]

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Sintomático...

Não tinha pensado publicar hoje qualquer texto. Entretanto, o meu amigo Dr. José João Arroz, um dos mais conhecidos melómanos de Lisboa, especialmente no domínio da ópera, veio a este blogue apresentar um comentário sobre o Festival de Sintra de 2008, cuja pertinência me parece inequívoca, razão pela qual o passo a transcrever sem mais comentários.

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Meu caro João,

Ainda estou sob a fortíssima impressão do concerto da passada segunda feira na igreja dos Salesianos que o festival do estoril proporcionou. Que coisa absolutamente espantosa! Aliás, não há margem para dúvida nem a mínima surpresa: o Carlos Mena é um contratenor da mais alta craveira, ao mesmo nível do Andreas Scholl e o Bach Consort Wien que me tinhas recomendado, em resultado das tuas idas a Salzburg donde os conheces, na verdade, é excepcional até porque se trata de um agrupamento de câmara, constituído por intérpretes relativamente jovens que dominam à perfeição a estética barroca em todas as suas especificidades.

Na sequência da conversa que mantivemos com aqueles nossos amigos da faculdade, venho ao teu blogue para intervir a favor do Dr. Pereira Leal, pessoa por quem nutro a admiração mais justa.Como sabes sou um frequentador esporádico do festival de Sintra. Este ano só fui ao concerto do Sokolov, única coisa que verdadeiramente me interessava embora toda a oferta musical fosse de qualidade. Mas, com a nossa idade, já vi e ouvi em todo o lado sempre os melhores do mundo e, por isso, só me desloco quando sei que lá está um dos que me fazem sair de casa tanto em Portugal como no estrangeiro. Fui a Sintra, encontrámo-nos, adorei o recital, saí regalado.

Já to tinha dito no ano passado e agora confirmei que o festival de Sintra se transformou numa coisa sem pés nem cabeça. Aquela coisa dos contrapontos é uma graça. Passou a ser um caldeirão onde cabe tudo. Nem é preciso qualquer habilidade, desde a Traviata ao Requiem de Mozart, à Literaturinha e a não sei que mais, tudo é possível meter para encher a programação.

Eu gostava muito das noites de bailado em Seteais mas, para dizer a verdade, nunca concordei que o festival de Sintra também tivesse dança. Já os nossos pais, deves lembrar-te, eram de opinião que Sintra devia ter apenas um festival de música. Mas, enfim, ainda se admitia a música e a dança. Bem sei que a ideia dos contrapontos é muito interessante mas só se for como tu tens lembrado, portanto, seguindo a concepção do nosso velho Claudio Abbado que conseguiu impor o figurino em Salzburg no festival da Páscoa que, concordo totalmente contigo, talvez seja o mais sofisticado do mundo.

Tenho muita pena de o dizer mas em Sintra não sabem o que estão a fazer. Se calhar estão a matar o festival porque a imagem actual é de uma coisa sem lógica nem coerência. E é preciso ter muita atenção porque o público é escasso na música erudita. É capaz de ir à Póvoa do Varzim onde o Rui Vieira Nery está a fazer um trabalho incrível, é capaz de ir ao Estoril onde o programa é estupendo mas começa a rir-se de Sintra.

Eu tenho ouvido comentários muito desabonatórios de Sintra. Aqui entra a alusão que fiz ao Pereira Leal porque sei de boa fonte que ele não tem nada que o relacione com isso dos contrapontos que Sintra não soube adaptar. Não sou advogado do Pereira Leal nem ele precisa que o defenda. Mas que queres tu, não consigo ficar calado ao ver alguém ser injustamente atacado. Enquanto que Sintra perdeu público, a Póvoa e o Estoril recomendam-se e crescem a olhos vistos.

Ainda tu escrevias noutro dia que Sintra tem o melhor director musical que é possível. Concordo em absoluto. Mas ele é que sofre as consequências das asneiras de outros que se permitem misturar o que não é admissível. Portanto, aqui me tens a defender a sua causa sem que, vê bem, alguém me tenha pedido. Acompanho os teus textos no blogue, sei como gostas do festival de Sintra e por isso mesmo te escrevo estas palavras esperando que faças delas o melhor uso. Tenho pena que o festival de Sintra esteja a atravessar este período de menor aceitação. Com a nossa idade, já vivi o suficiente para lembrar os tempos da Marquesa de Cadaval em que nada disto podia acontecer.

Um grande abraço do

José João Arroz

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Não interessa que saibam até que ponto concordo ou discordo do texto supra. O que interessa é que tenham em consideração tratar-se de uma opinião que se vai ouvindo nos meios frequentados por certos melómanos. E, na realidade, uma coisa é certa: estive já na Póvoa de Varzim e no Estoril este ano, onde tudo está a decorrer com enorme qualidade e de acordo com uma programação irrepreensível. Já há estrangeiros que se deslocam de propósito. E são locais com excelente oferta de alojamento. Será preciso alertar mais?

1 comentário:

Anónimo disse...

Caro João Cachado,

Já depois de termos falado ao telefone e de lhe agradecer as suas primorosas indicações sobre a obra do Albert Lavignac "Le Voyage Artistique à Bayreuth" bem como a disponibilidade da sua mulher nos arranjar uma edição conveniente, li o comentário do José João sobre o Festival de Sintra.

Estou tão ligado ao marketing que quase podia garantir que os patrocinadores do Festival de Sintra já devem ter conhecimento destas impressões sobre a programação. Reparou como o Millenium BCP retirou o mecenato ao S. Carlos? O Paolo Pinamomti saíu e só agora tiraram o tapete não por falta de dinheiro mas pela vergonha da programação da temporada passada. Há que aprender com as lições alheias.

A Maria Adelaide recomenda-se e deseja-lhe uma boa permanência em Bayreuth. Ficamos com muita inveja.

Um abraço,

Heitor