Sokolov em Sintra
(conclusão)
Esta é uma obra cuja estrutura organizativa poderá remeter para o Cravo Bem Temperado de J. S. Bach ou também para os Vorspiele op. 67 de Hummel (c.1814). Seja como for, aquilo que constitui os Prelúdios em ciclo é a sistemática e permanente presença de uma célula geradora e unificadora, situada em locais estratégicos de cada uma das vinte e quatro peças. E, de algum modo, esta obra de Chopin constitui um ponto de ruptura a partir do qual são possíveis homónimas, compostas por Debussy, Fauré, Heller, Alkan, Scriabine, Rachmaninov, Szymanowski, Chostakovitch ou mesmo Maurice Ohana.
É surpreendente como Sokolov se adequa à lógica específica, sólida, inabalável de cada compositor, aos fraseados de Mozart e de Chopin, através de uma técnica assombrosa e de uma contida sensibilidade que faz de cada compasso interpretado uma revelação de expressividade à descoberta de um novo mundo de conotações.
Nesta obra de Chopin, a sábia noção do todo, a condução harmónica das peças, as gradações cromáticas, a exploração das mais remotas possibilidades do Steinway, tudo isto esteve presente nas mãos deste demiurgo que muitos críticos por esse mundo fora consideram o maior pianista vivo. Raramente, ao ouvir estes Prelúdios, terei sentido tão apropriadas as palavras de G. Sand que os considerava ideias terríveis ou dilacerantes as quais "(...) à medida que nos encantam o ouvido, nos partem o coração".
Eu tinha avisado. Este recital foi um acontecimento cultural excepcional, a tal excepção que confirmou a regra da mediana e boa qualidade geral. Ainda bem que, novamente, foi possível trazer Sokolov a Sintra. Aqui temos como se evidencia a sábia intervenção do Dr. luís Pereira Leal, Director Artístico da vertente musical do Festival. Não é só um grande senhor, é o melhor, um dos poucos insubstituíveis, em cuja mão está a chave do contacto com os maiores artistas em todo o mundo, fruto da sua excelente preparação pessoal e da cátedra que ocupou na direcção do Serviço de Música da Fundação Gulbenkian ao longo de dezenas de anos.
E terminou a edição quadragésima terceira, em momento de restrições orçamentais, infelizmente, sem o brilho de outros tempos. Desta vez, nem sequer um evento tivemos no Palácio da Pena. Que pena!, exclamamos todos os amantes da boa música naquele lugar de excepção. Bem, se nisso ainda acharem conveniência, poderão reler Quarenta e três, que o Jornal de Sintra publicou no passado dia 6 de Junho.
Avisos e recomendações
Finalmente, chamar-vos-ia a atenção para dois festivais do mais alto gabarito, Póvoa do Varzim e Estoril, já a decorrer. Trata-se de casos condenados ao sucesso porque, entre outros factores também acontecem em lugares com muito boa oferta hoteleira, permitindo a permanência durante alguns dias, não só para o gozo da grande Música mas também de outros factores culturais de primeiríssima ordem.
Cumpre assinalar que, em ambos os casos, as programações são extremamente equilibradas, não fazendo qualquer concessão à inclusão de propostas à trouxe-mouxe e, ao contrário do que é fácil acontecer, também evitam ceder à tentação de certas misturas de alhos com bugalhos, independentemente da qualidade de uns e outros, colocando em risco a coerência geral da proposta, embora aumentando significativamente o número de espectáculos.
Para aqueles que não puderem prolongar a sua estada, aí vão alguns conselhos acerca dos eventos absolutamente imperdíveis. Em relação ao do Norte, tenham em consideração, por exemplo o contralto Sara Mingardo com Concerto Italiano dirigido por R. Alessandrini, ou a vinda do grande cravista e organista Gustav Leonhardt que toca na igreja românica de São Pedro de Rates em 27 de Julho. Aqui mais perto, não percam o contratenor Carlos Mena com o Bach Consort Wien, no dia 21, e a Camerata Lisy a 23 e 25 de Julho na igreja dos Salesianos do Estoril. Quem vos avisa...
[SAND, G., Histoire de ma vie; SCHUMANN, R., Gesammelte Schriften; LISZT, F., F. Chopin]
4 comentários:
Amigo Cachado,
Li estes postes e o artigo já hoje no Jornal de Sintra que está mais completo na parte final. Como estava no Alentejo não assisti ao concerto. Mas calculo que fosse muito bom e, como disse o meu amigo, a excepção. Porque, como já vi escrito não sei onde o Festival de Sintra deste ano era uma manta de retalhos. E pareceu-me que o Cachado, deixou um recado até mais no artigo do jornal do que no blogue quando se referiu aos outros dois festivais. Mas o Dr Pereira Leal não é o responsável pela programação? Não percebo como é que uma pessoa com tantos créditos faz uma coisa daquelas... Talvez o meu amigo tenha uma explicação.
Cumprimentos
Artur Sá
Caro Artur Sá,
Você não perdoa e vai a todos, ao blogue, ao jornal. Quase me sinto vigiado...
Acredite que é extremamente consolador saber que tenho leitores fiéis. Por vezes, quando me apetece mandar tudo para o diabo, também penso numa série de pessoas que contam com a minha opinião, que gostam de partilhar preocupações, gostos e desgostos.
Por exemplo, no que respeita ao Festival de Sintra, senti este ano como as minhas observações, acerca da estrutura, provocaram algumas ondas de choque, não só nos leitores mas também em responsáveis pela organização.
Como calcula, não retiro uma vírgula ao que escrevi em «Quarenta e Três», tanto no blogue como no JS. Se bem leu e melhor concluiu, o grande problema da estrutura organizativa do Festival de Sintra é aquilo que passou a incluir-se sob a designação de «contrapontos», ou seja, eventos que não têm qualquer relação entre si nem com as linhas mestras da orientação programática. Na realidade, que relação - quer por conotação quer por denotação - havia ente pianismo russo e os eventos abrangidos pelos designados «contrapontos»? Nenhuma, nada, zero!
Eu já disse e escrevi o que considero pertinente. Incluir, ao abrigo desta designação de «contapontos», aquilo que, abusivamente, não se integra e não se ajusta ao conceito que tive o cuidado de explicitar, é claro que pode dar origem a interpretações como as da manta de retalhos...
Se dedico um pouco mais de tempo a esta explicação é porque me sinto algo responsável pela «importação» do conceito que pedi emprestado a Claudio Abbado, tal qual ele a aplicou à programação de um dos mais sofisticados festivais de música em todo o mundo, o Festival da Pãscoa de Salzburg. [Foi Karajan quem fundou este festival mas foi Abbado quem introduziu a estupenda iniciativa dos contrapontos.] Em Sintra, apenas foi acolhida a vertente da maior informalidade das propostas, tendo-se esquecido, o que é grave, a imprescindível relação temática.
Portanto, não havendo relação temática, cabe lá tudo, absolutamente tudo, vale tudo. Ora, deste modo, perde-se credibilidade porque deixou de se respeitar uma coerência programática.
Finalmente, meu caro Artur Sá, faça-me o favor de não confundir o Dr. Pereira Leal envolvido nesta atitude. Adivinho mesmo que, de modo algum, ele aprecie sequer a hipótese de se ver confundido nesta situação, tal como acabou de acontecer precisamente consigo, que o julgava responsável...
Se quiser mais algum esclarecimento acerca de «contrapontos a sério», disponho de muita documentação cá em casa. Apareça quando quiser mas avise primeiro.
Muito obrigado pelo seu interesse nas minhas coisas. Um grande abraço,
João Cachado
Meu caro João,
Ainda estou sob a fortíssima impressão do concerto da passada segunda feira na igreja dos Salesianos que o festival do estoril proporcionou. Que coisa absolutamente espantosa! Aliás, não há margem para dúvida nem a mínima surpresa: o Carlos Mena é um contratenor da mais alta craveira, ao mesmo nível do Andreas Scholl e o Bach Consort Wien que me tinhas recomendado, em resultado das tuas idas a Salzburg donde os conheces, na verdade, é excepcional até porque se trata de um agrupamento de câmara, constituído por intérpretes relativamente jovens que dominam à perfeição a estética barroca em todas as suas especificidades.
Na sequência da conversa que mantivemos com aqueles nossos amigos da faculdade, venho ao teu blogue para intervir a favor do Dr. Pereira Leal, pessoa por quem nutro a admiração mais justa.
Como sabes sou um frequentador esporádico do festival de Sintra. Este ano só fui ao concerto do Sokolov, única coisa que verdadeiramente me interessava embora toda aoferta musical fosse de qualidade. Mas, com a nossa idade, já vi e ouvi em todo o lado sempre os melhores do mundo e, por isso, só me desloco quando sei que lá está um dos que me fazem sair de casa tanto em Portugal como no estrangeiro. Fui a Sintra, encontrámo-nos, adorei o recital, saí regalado.
Já to tinha dito no ano passado e agora confirmei que o festival de Sintra se transformou numa coisa sem pés nem cabeça. Aquela coisa dos contrapontos é uma graça. Passou a ser um caldeirão onde cabe tudo. Nem é preciso qualquer habilidade, desde a Traviata ao Requiem de Mozart, á Literaturinha e a não sei que mais, tudo é possível meter para encher a programação.
Eu gostava muito das noites de bailado em Seteais mas, para dizer a verdade, nunca concordei que o festival de Sintra também tivesse dança. Já os nossos pais, deves lembrar-te, eram de opinião que Sintra devia ter apenas um festival de música. Mas, enfim, ainda se admitia a música e a dança.
Bem sei que a ideia dos contrapontos é muito interessante mas só se for como tu tens lembrado, portanto, seguindo a concepção do nosso velho Claudio Abbado que conseguiu impor o figurino em Salzburg no festival da Páscoa que, concordo totalmente contigo, talvez seja o mais sofisticado do mundo.
Tenho muita pena de o dizer mas em Sintra não sabem o que estão a fazer. Se calhar estão a matar o festival porque a imagem actual é de uma coisa sem lógica nem coerência. E é preciso ter muita atenção porque o público é escasso na música erudita. É capaz de ir à Póvoa do Varzim onde o Rui Vieira Nery está a fazer um trabalho incrível, é capaz de ir ao Estoril onde o programa é estupendo mas começa a rir-se de Sintra.
Eu tenho ouvido comentários muito desabonatórios de Sintra. Aqui entra a Alusão que fiz ao pereira Leal porque sei de boa fonte que ele não tem nada que o relacione com isso dos contrapontos que Sintra não soube adaptar. Não sou advogado do Pereira Leal nem ele precisa que o defenda. Mas que queres tu, não consigo ficar calado ao ver alguém ser injustamente atacado.
Enquanto que Sintra perdeu público, a Póvoa e o Estoril recomendam-se e crescem a olhos vistos. Ainda tu escrevias noutro dia que Sintra tem o melhor director musical que é possível. Concordo em absoluto. Mas ele é que sofre as consequências das asneiras de outros que se permitem misturar o que não é admissível. Portanto, aqui me tens a defender a sua causa sem que, vê bem, alguém me tenha pedido.
Acompanho os teus textos no blogue, sei como gostas do festival de Sintra e por isso mesmo te escrevo estas palavras esperando que faças delas o melhor uso. Tenho pena que o festival de Sintra esteja a atravessar este período de menor aceitação. Com a nossa idade, já vivi o suficiente para lembrar os tempos da Marquesa de Cadaval em que nada disto podia acontecer.
Um grande abraço do
José João Arroz
Meu caro Zé João,
Como me autorizaste a fazer do teu comentário aquilo que me aprouvesse, decidi pela sua transcrição. Espero bem que seja tomado em consideração no quadro da avaliação que, estou em crer, não poderá deixar de ser feita no sentido de preparar o futuro do Festival de Sintra.
Agora, outra coisa. Aproveito a oportunidade para te lembrar que Bayreuth transmite Os Mestres Cantores, em directo, pela internet. Como sabes, vou ver uma das récitas desta produção, durante a minha estada em Bayreuth em Agosto.
Parece que a encenação é algo controversa (o que não significa seja polémica...). Assistirei ao Ring, por lá ficando quinze dias que, como sempre, se adivinham de grande gozo espiritual e enriquecimento pessoal. Pena que não te tivesse calhado ir comigo. Vais até Lucerna e, como sabemos, o vil metal não estica...
Mais uma vez, muito obrigado pelo teu comentário. Um abraço fraternal do
João
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