[sempre de acordo com a antiga ortografia]
terça-feira, 13 de janeiro de 2009
Antena Dois,
grossa asneira
Durante dois ou três dias da passada semana, o director da Antena Dois, rádio clássica, ao microfone do programa Império dos Sentidos, várias vezes anunciou o evento de 11 de Janeiro no CCB durante o qual, Il Giardino Armónico, sob a direcção do seu maestro titular Giovanni Antonini interpretaria, entre outras peças, os concerti grossi números 1, 6, 7 e 12 do op. 6 de G.F. Händel.
Se, mais ou menos, o tivesse feito nos termos do destacado no parágrafo anterior, portanto, sem entrar em detalhes que não domina, demonstraria que conhece os limites da sua já pública e proverbial falta de conhecimento no campo musical – algo de inimaginável no prototípico ignorante… – não incorrendo na grossa asneira que passarei a dar conta.
Em diferentes ocasiões, anunciou o acontecimento e, seguidamente, num aposto ou continuado da matéria, afirmou que a designação do plural grossi se reportava ao facto de se tratar de grandes (!!!) concertos concebidos pelo genial compositor… [Ah, é verdade, o verbo ‘conceber’ é muito caro ao radialista director que o usa, a torto e a direito, como alternativa de compor.]
Certamente que muitos dos meus leitores, também ouvintes da RDP2, terão escutado esta pérola. Como estará gravada, deveria passar a fazer parte do infindável rol de asneiras com que o programa da manhã daquela antena tem enriquecido o anedotário cultural lusitano, desde que a actual direcção entrou em funções.
O palavroso, adjectivoso e retumbante director, audacioso qb, permite-se qualificar interpretações musicais e, inclusive, anunciar qual a sua preferida, presumindo, coitado, que alguém, devidamente habilitado, lhe dá crédito. É que, por manifesta e abundantemente provada falta de conhecimentos básicos, ele não pode entender as subtis distinções nem a razão que leva um musicólogo ou verdadeiro conhecedor a estabelecer o mérito ou demérito de determinada versão.
Básico…
Falta de conhecimentos básicos, escrevia eu. Pois é. Senão, atentemos no seguinte. A noção de concerto grosso é algo que qualquer jovem aprendiz de ciências musicais cedo adquire, algo que, por outro lado, também está ao alcance de qualquer melómano, mesmo curioso autodidacta. O grosso é apenas uma de mais duas – concerto policoral e concerto solista – portanto, três possibilidades de instrumentação e, consequentemente, três formas de execução concertante no período barroco.
No concerto grosso, um grupo de solistas (concertino, soli) opõe-se ao grosso dos instrumentos (concerto grosso, tutti, ripieno). A configuração típica do concertino compreende três partes instrumentais, distintas ou segundo a distribuição típica da trio sonata, com dois violinos (ou flautas ou oboés) e baixo contínuo (violoncelo, cravo). Tendo em consideração que os solistas são melhores instrumentistas, eles também guiam o tutti que se cala durante os episódios solistas.
O concerto grosso desenvolveu-se no Norte e centro da Itália a partir do derradeiro terço do século dezassete, com Stradella, Corelli ou Vivaldi. A sucessão e a estrutura dos andamentos correspondiam às da sonata de igreja ou da sonata de câmara que, a partir de Vivaldi, geralmente, tinha três andamentos, rápido-lento-rápido. *
Como se verifica, nada disto tem qualquer relação com o conceito de grandeza, tenha ele uma conotação de quantidade ou de qualidade, como pretendia o tal senhor, ainda que ninguém negue a excepcional, a grande qualidade de cada um dos concerti grossi de Händel.
Afinal, a verdade é que se o ignorante não abordasse domínios que desconhece, ninguém lhe apontaria o desconhecimento… Mas a tentação é muito forte. Aquela possibilidade de poder partilhar o espaço e o tempo dos que, por seu mérito e trabalho, acederam a plataformas superiores de informação cultural, é demasiado atractiva para deixar o ignorante no sossego donde jamais deveria sair para perturbar quem não deve.
Este indivíduo que, por exemplo e sintomaticamente, também diz númaros e perjurativo em vez de números e pejorativo, ocupa o lugar de direcção que, nos últimos anos, esteve a cargo de pessoas do alto gabarito cultural de João Paes ou João Pereira Bastos. Sinais dos tempos estes, em que postos de destaque, mesmo ao nível político, estão nas mãos de habilidosos manipuladores, ainda que no quadro de um regime democrático...
PS:
Para proveito mais completo, queiram os meus leitores consultar o texto aqui publicado em 6 de Agosto de 2008. Mantenho a pertinência de todas as minhas opiniões, observações, conselhos e sugestões implícitas ou explícitas. Não acham que também tenho direito a uma certa presunção? E, ao ritmo do curioso ditado,
tomo a minha água benta, convidando para me acompanharem na pública denúncia do despautério em causa.
Com outros bigodes, o Prof. Doutor Mário Vieira de Carvalho também o fez, há umas semanas atrás, em artigo de opinião no jornal Público. Por favor, amigos leitores, pronunciem-se. Não somos assim tão ricos que nos permitamos consentir que a ignorância e a incultura ganhem posições à clara, esclarecida e discreta atitude do gozo e partilha de valores estéticos, intelectuais e culturais que a Antena Dois e suas antecessoras, com outras denominações, cultivaram ao longo de décadas, mesmo em épocas do mais negro obscurantismo.
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*Michels, Ulrich, dtv-Atlas Musik - Band I, Deutscher Taschenbuch Verlag & CO.KG, München, 2001
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2 comentários:
Grande lição, Professor. Acho que devia mandar um mail a esse tipo com o que tem exposto, ou simplesmente o link para o seu blog. Talvez assim esse senhor se ponha no seu devido lugar: caladinho e sossegado. Apesar de não ser o meu género musical preferido (ando mais pelo rock com todas as suas derivações, embora não perca há vários anos os concertos de Ano Novo em Viena transmitidos pela RTP e já tenha assistido a alguns concertos cá e em Berlim), a sua história fez-me lembrar a dispensa de que foi alvo em Setembro de 2007, António Sérgio, o velho mestre como é conhecido no meio pela importância dos seus programas de autor, dispensa essa levada a cabo pela Rádio Comercial por ser um projecto esgotado. No lugar do mestre puseram uns bananas quaisquer a debitar umas banalidades. Felizmente que o seu desemprego não durou mais de 2 meses.
Na década de 60, na BBC Radio, um senhor chamado John Peel iniciou um programa de autor que durou cerca de 40 anos até à sua morte, 2004. Era consensual a sua importância não só pelo leque musical que apresentava como pela divulgação de novos artistas e "shows" que foram aparecendo.
Aqui, nos lugares de divulgação e ensinamento cultural temos uns tipos a falar do que não sabem previligiando o "show-off".
Enfim.... mas escreva-lhe Professor, que faz falta.
Cumprimentos,
Ricardo Duarte
Passo a transcrever o texto do mail que acabo de receber do Doutor Mário Vieira de Carvalho:
"Meu caro,
Muito obrigado. Concordo inteiramente consigo.
Só um pequeno reparo. O meu texto saiu no Público (e não no JL), na secção de artigos de opinião há algumas semanas. No último sábado saiu outro onde também era referida a Antena 2, mas sobretudo a RTP no seu todo.
Com os melhores cumprimentos e felicitando-o pelo seu texto,
Mário Vieira de Carvalho"
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Como já terão verificado, imediatamente emendei a minha inicial e incorrecta informação, dando como publicado no JL o texto que o Prof. Mário Vieira de Carvalho entregara ao "Público". As minhas desculpas pelo erro.
João Cachado
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