[sempre de acordo com a antiga ortografia]

quarta-feira, 27 de maio de 2009


Comentários taurinos


Há dias, a propósito do texto, aqui publicado em 18 de Maio, sobre a decisão da Câmara Municipal de Sintra deixar de patrocinar as touradas, recebi um comentário anónimo que, embora parcialmente, reproduzo ipsis verbis:

“(…) o touro bravo foi uma raça criada (selecção genética) pelo Homem! Não existe normalmente na natureza pelo que, do ponto de vista da biodiversidade, tem o mesmo valor de uma esferográfica! Os habitats onde estes animais vivem já são protegidos na lei (com ou sem touros). Pelo que este argumento, do impacto ecológico da extinção do touro bravo, é mesmo tipico de quem não tem mais nada para defender algo moralmente indefensável”.

Em primeiro lugar, cumpre sublinhar que, tratando-se de uma posição, ausente de qualquer substância científica, tem feito o seu caminho entre muitos cidadãos bem intencionados. Tal não me impede de considerar que, fosse eu um qualquer fundamentalista de pacotilha, nem sequer responderia porquanto tal raciocínio, imediatamente cai pela base.

Basta que pensemos numa série de entidades, animais e vegetais, fruto de longuíssimas manipulações genéticas e do contínuo labor do homem, ao longo de muitos milhares de anos, hoje em dia realidades sofisticadíssimas e tão indispensáveis como as demais. Tal é, por exemplo, o flagrante caso dos cereais e das leguminosas.

Igualmente, tal é o caso de todos os animais, actualmente na base da alimentação do homem e que não existiam na natureza. Aliás, neste domínio da intervenção humana sobre o mundo natural, de tal maneira sistemática e alargada ela tem sido, que raríssimas serão as realidades «não contaminadas» por tais manipulações genéticas.

Onde se coloca um grande problema ético, isso sim, é no domínio da manipulação genética que pressuponha estratégias transgénicas. Contudo, não consta que, no respeitante ao touro bravo, tais práticas alguma vez tenham sido concretizadas ou que estejam sendo equacionadas...

O argumentário transcrito é extremamente débil. Para além de tudo o mais, faz tábua rasa de toda uma cultura milenar que, à volta da tauromaquia, apresenta indissociáveis relações de benefício, no universo da agricultura e da pecuária, no comércio, nas mais diversas indústrias e, muito nitidamente, uma fortíssima presença nas grandes artes literária e musical, na dança, em todas as plásticas, no teatro e cinema, para além do profundo envolvimento dos meios de comunicação social.


Quando, no meu texto inicial, me reportava à remota eventualidade da extinção da raça em apreço, ali apenas considerada como académica hipótese de abordagem, e a remetia para o quadro de crime ecológico, pensava neste conceito à luz da etimologia, das suas 'auxiliares' semiogonia e semiologia, que nos ajudam a pensar a realidade da tauromaquia em toda a abrangência, de forma integrada e global. Não esqueçam que a filologia é a minha matriz de formação.

Compreendo perfeitamente as consequências do deficit de formação cultural de quem não teve a sorte de ser iniciado nessa coisa espantosa que é o binómio ferra e tenta, a montante dos grandes espectáculos públicos, indispensável ao entendimento da cultura tauromáquica.

A festa tem matizes extremamente fascinantes, compósitos e curiosíssimos que o leigo não imagina sequer. E, quanto a mim, é pena porque, enquanto homens e mulheres ibéricos, entre o Atlântico e o Mediterrâneo, a nossa ancestralidade cultural está parcial mas imensamente conotada com realidades afins deste fabuloso animal, metáfora viva da permanência de alguns dos povos peninsulares.


Mas, por favor, não me confundam. Não encontrem nestas minhas palavras qualquer ponta de proselitismo. É que não estou mesmo minimamente interessado em convencer a acorrer às praças seja quem for, e, muito menos, alguém avesso, que não goste ou desgoste da tourada.

Naturalmente, o que me recuso é a patrocinar abordagens parcelares do tema, de perfil pseudo-ético ou pseudo-moral, como fez o anónimo comentador [de E as outras touradas?].




3 comentários:

Anónimo disse...

Bom dia caro colega,
Este seu artigo de resposta ao comentário é de mestre, Continuo surpreendido porque não tinha ideia desta sua faceta. Consigo estou sempre a aprender.

Carlos Távares

Anónimo disse...

Caro João Cachado,

Costumo visitar este blogue com muito interesse. Nunca pensei que o João Cachado fosse aficcionado dos touros e confesso que fiquei desgostosa. Sou incapaz de perceber como um homem de cultura pode gostar dum espectáculo em que se trata tão mal um animal. Fui ler o seu perfil e nada consta sobre tauromaquia. Parece uma incoerência muito grande.

Maria Alzira S.

Miguel disse...

Boa tarde.Desde já devo dizer que entendo o seu artigo e a sua perspectiva acerca do tema.
É um facto que geralmente este tema nunca é abordado de uma forma imparcial ou não fundamentalista. Quanto a mim, enquanto pessoa particularmente interessada em Biologia entre outras coisas, devo também referir que apesar do valor cultural e artístico que aqui refere, creio que da mesma forma que se criticou (com razão) aquele artista que deixou um cão a morrer à fome na sua exposição, se pode criticar com a mesma legitimidade as pessoas responsáveis pelas touradas.

Sei que há quem goste muito do espectáculo da tourada, mas devo dizer que este tipo de espectáculos não engrandecem em nada o nosso país, uma vez que só demonstram a nossa incapacidade de evoluir culturalmente noutro sentido.
Aceito que exista quem goste, mas acho que a "evolução cultural" em que deveríamos caminhar, deveria ser no sentido de adquirirmos uma visão mais inteligente,consciente e evoluída daquilo que é de facto uma boa prática cultural.

Devo também dizer que esta é apenas a minha humilde opinião e não quero com isto criticar quaisquer outras que aqui existam, nem a sua, até porque acho que a expõe brilhantemente em qualquer dos assuntos que aqui trata, e que tive oportunidade de ler