João Cachado - Sintra
Vai um prato de lentilhas?
Já lá vão uns bons anos, era presidente da Câmara Municipal de Lisboa o Dr. Jorge Sampaio, quando vieram a público alguns indícios de que a Epul teria incorrido na prática de lamentáveis actos de corrupção. Não vem ao caso sequer esboçar aqui os contornos e muito menos esmiuçar detalhes das actividades menos recomendáveis que levaram o futuro Presidente da República a demitir liminarmente o conselho de administração daquela empresa pública.
Uns tempos mais tarde, já no exercício de funções de supremo magistrado, não esteve com demasias e, perante o que se soubera da irregular actuação da Fundação para a Prevenção Rodoviária, exigiu ao Primeiro Ministro António Guterres o imediato afastamento de Armando Vara do Governo.
Num país em que impera a famosa cultura do desleixo, que o mesmo Jorge Sampaio tão bem tem sabido caracterizar e alertar para o seu combate, não admira que, em ambos os casos aludidos, nada tivesse impedido que os membros do órgão de gestão e o multifacetado e talentoso rapaz, continuassem a merecer o crédito da classe política para o desempenho de outros cargos.
O problema é que a classe política é de péssima qualidade e, salvo raríssimas excepções, de baixo estrato. Abundam os casos em que uns pobres diabos, balconistas ou obscuros técnicos de autarquias de segunda, se muniram do providencial cartãozinho para – depois do laborioso e devido trabalho de base lá pelas berças, e de rapidíssimas e tortuosas passagens por faculdades de terceira, para obtenção de duvidosas qualificações universitárias – demandarem a capital, colhendo o fruto de tanto empenho nos mais variados enquadramentos institucionais. Trata-se de indivíduos que abastardam a nobre noção de serviço público, de serviço à República. Nada de confusões, só a estes me refiro.
Mesmo em Portugal, em circunstâncias mais propícias, e apesar de eventuais motivações pessoais menos recomendáveis, não teriam oportunidade de aparecer na ribalta do poder. Não passariam de obscuros mas digníssimos amanuenses mangas de alpaca, quando muito, de chefes de secretaria, ou de incógnitos mas diligentes mestres de criancinhas. No entanto, como as cicunstâncias não são as mais propícias, conseguem alcandorar-se aos mais altos cargos do poder central e local, da banca, das empresas públicas, satisfazendo a avidez da sua patológica ambição, em sórdidas gamelas, designadas por famosas siglas que o povo, enojado, já conhece de ginjeira, no âmbito dos processos de investigação que enchem as páginas da comunicação social.
Os rígidos valores da dignidade subsumidos no da honestidade, são liminarmente postergados, em detrimento da sui generis protecção da abóbada tão conveniente da dura lex… Os tão apregoados princípios da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, que sustentam os modernos Estados Democráticos de Direito, são atropelados, a toda a hora e momento, sem que o escândalo geral baste para suster a sua sangria.
Hoje em dia, se a Lei sancionar aquilo que o legislador propôs como correcto – tantas vezes, por ínvia encomenda do poder executivo, vd. caso Casa Pia e alterações legislativas de 2007… – tudo se apresenta como liso e susceptível de descansar as consciências. Parece ser tão grave este caldo de sofisticado desleixo que, provavelmente, vivendo sob a capa de um regime democrático, estaremos a assistir ao espectáculo da mais nociva inversão de valores que já desafiou as sociedades modernas desde a Revolução Francesa.
Afinal, o que faz falta?
Volto ao parágrafo inicial. Com a legislação vigente na altura, Jorge Sampaio não teve dúvidas. Numa situação, independentemente dos subsequentes apelos e agravos, demitiu quem considerou conveniente e na outra, igualmente cortando a direito, deixou de patrocinar a presença de um governante que fazia parte de um executivo a que ele próprio dera posse. A isto se chama estar à altura das funções.
Devem ser raríssimos os casos em que os dispositivos legais vigentes não estão servidos por mecanismos de operacionalidade que permitam, a quem de direito, actuar perante estes e outros prevaricadores institucionais. Todavia, não tenho a menor dúvida de que, enquanto imperar a dominante cultura do desleixo, sempre faltará, a tal vírgula que, quanto mais não seja, facilita o contorno da interpretação mais conveniente da Lei.
Mas quem sou eu, anónimo filólogo, para me arrogar meter a foice na seara alheia da legislação? Pois vos direi que a discreta mas permanente intervenção cívica em que estou envolvido foi especialmente desafiada pelas oportunas e sempre tão certeiras palavras da minha amiga Ana Gomes, no seu blogue Causa nossa, ela que também é mulher de Direito, habituada a dirimir causas à luz e com base no império da Lei.
Lembra Ana Gomes impor-se a retoma das propostas do Engº João Cravinho, que tanto se bateu pela necessidade de um combate sério e sem tréguas à corrupção. É aqui que me rendo. Se, efectivamente, falta preencher algum buraco da Lei, por exemplo, no respeitante ao enriquecimento ilícito, pois que actue o Parlamento, no exercício do poder que outorgámos aos seus membros, no sentido de nos defenderem contra as invectivas desses indecentes que, muito raramente, deparam com um Jorge Sampaio pela frente.
E assim finalizo, na boa companhia desta tríade em que Sampaio, Cravinho e Gomes me concedem a esperança de prever que, apesar de sinais tão desanimadores, o prato de lentilhas dos corruptos não vai transformar-se em mais Mercedes topo de gama… Urge dar sinais diferentes aos miúdos, aos nossos filhos, netos e alunos. Especialmente eles, não merecem este lodaçal.
7 comentários:
Amigo Dr. Cachado,
Mais um texto que merece sinceros parabens. Tanto Jorge Sampaio como Ana Gomes têm forte relação com Sintra e com certeza põem o nome por baixo destas palavras porque não lhes falta nada do que é preciso para ser digno e honesto.
Como o senhor refere os nossos netos, o meu mais velho que já tem quinze anos e quer ir para medicina anda a aprender espanhol na escola para poder ir para Santiago de Costela se não tiver lugar no «lodaçal»... Isto chegou a um ponto de quase desonra nacional. Mas tenho esperança que se dê a volta. Saudações amigas,
Artur Sá
Jorge Sampaio há só um. É pena.
A. Carlos
O que o sr. chama cultura do desleixo é a bandalheira mais escandalosa. Não tenha dúvidas que este país não tem remédio. Conheço outros casos de jovens como o neto do Sr Artur Sá que só pensam em saír de Portugal porque não vêem futuro aqui. Aliás como muitos jovens já sairam é que o desemprego não é quase igual ao espanhol. Aqui só os Varas é que se safam porque entram na vigarice.
Ernesto Xavier
Dr. Cachado,
É apenas para uma rectificação no meu comentário desta tarde. Trata-se de Santiago de Compostela. Obrigado.
Artur Sá
Desculpem mas o que faz falta é tê-los no sítio, como o Jorge Sampaio.
R.Silva
As três pessoas que menciona são referências importantes. Mas estão toda afastadas do poder real. Cionsidero isso muito sintomático.
Pedro Reis
O prato de lentilhas de ontem e o Mercedes de hoje nem sequer são o verso eo reverso da moeda. Estão de mesmo lado da moeda. São uma porcaria em que se atafulham os politiqueiros sem escrúpulos desde o mais pequeno nível da Junta de Freguesia ao mais alto do Governo e às grandes empresas públicas e à Banca. Os valores deixaram de ter valor e por isso não admira que as escutas apanhem quem apanham.
Vitor Rui
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