Ter como absolutamente certo algo que, de facto, não é ponderável, faz a maior das confusões. Por vezes, tão grande é o risco de falibilidade que, em determinadas circunstâncias, chega a ser irracional. Não faltam os casos que poderia trazer à colação para ilustrar a justeza desta reflexão. Porém, revestem-se de particular acuidade aqueles que articulamos com os considerados fenómenos naturais.
A propósito, e, quase a título de anedota, jamais esquecerei que, há já uns bons anos, estava prevista, para a região de Lisboa, a possibilidade de avistar um fabuloso espectáculo de estrelas cadentes. Não faltaram as científicas previsões dos mais notáveis e mediáticos astrónomos portugueses que se deram ao trabalho de aconselhar o horário e até os locais a partir dos quais o espectáculo tinha mais hipóteses de sucesso.
Certamente como muitos outros cidadãos, habituados a confiarem na ciência, também eu fui induzido ao envolvimento na experiência que, tão apetecida e ludicamente, nos desafiava. Até à medula, deixei-me seduzir pela teia de tantos apelos de ordem estética que, inclusive, remetiam para um quadro de música e de equilíbrio cósmicos, qual harmonia pré-estabelecida, muito à imagem do querido Leibnitz.
Desde o princípio dos tempos que tais coisas se querem partilhadas. A perspectiva de fortíssimas sensações, remetendo para a inevitabilidade da redução à pequenez da nossa humana escala, diante da infinitude do cosmos, é algo que nos leva à necessidade do gozo em grupo, ao repúdio da solidão, pela certeza de que estará prestes uma daquelas raras ocasiões de ritual religioso, que não carece do intermédio de nenhum ministro sacerdotal…
E, assim sendo, lá fui, integrado num grupo de adeptos, até às alturas do santuário da Peninha. Só faltou comprar bilhete, tão certa era a inevitabilidade do evento. Todavia, por muito boa vontade que tivéssemos – e alguns de nós até gritavam o avistamento de algo que lá não estava, qual fenómeno de obsessiva miragem – nada acontecia. Alguém sugeriu que mudássemos de poiso e, em plena noite, descemos aos areais do Guincho. E nada acontecia, nada, o firmamento mantinha-se impávido, sereno, sem estrelas cadentes…
Certezas canceladas
Naturalmente, como já terão entendido, circunstâncias actuais determinam que me ocorra o episódio que acabei de lembrar. A ninguém, de facto, se impõe a frágil certeza ou, melhor, a imensa fragilidade das circunstâncias que assumimos como imutáveis. O caso dos transportes aéreos, tão copiosamente cancelados nos últimos dias, quase raia os contornos do absurdo ao não assumir a contingência dos factores no âmbito dos quais se concretiza.
Reparem que milhares e milhares de voos diários, na Europa, em todo o mundo, estão programadíssimos, com rígidos horários, de acordo com rotas mais que estudadas, que riscam os céus como se nada pudesse perturbar tão evidente moldura. Afinal, basta que lá bem a Norte, no meio de um glaciar islandês, tenha acordado um vulcão, bolsando a matéria fervente deste planeta que pode tudo ser menos inércia e quietude, para lançar a maior nuvem de confusão, perante a qual tudo bascula.
Finalmente, a anedota. Não raro, é em quadros quejandos que somos confrontados com as mais caricatas cenas. E, mais uma vez, assim aconteceu, conforme acabei de verificar, através de uma reportagem televisiva no aeroporto Francisco Sá Carneiro. Passa-se o episódio com uma nossa jovem compatriota emigrada em França, totalmente rendida à pretensa imutabilidade dos factores.
Segundo o seu próprio testemunho, terá dito aos patrões que ia ao dentista, cujo consultório desconheço onde seja mas, por certo, perto do seu local de trabalho. Meteu-se num aviãozinho até à santa terrinha e agora, porque as coisas mudaram inadvertidamente, não consegue regressar. Ainda sem saber que desculpa será capaz de arranjar para endrominar os amos gauleses, rezava a todos os santinhos para que os senhores não se apercebessem da mentira…
Entre o espectáculo, cientificamente previsto, das iminentes estrelas cadentes e a científica programação do tráfico aéreo, não há significativa diferença. Cumpre ter em conta que a planificação das actividades nunca será tão séria quanto necessário se não contemplar a possibilidade de ocorrência dos mais remotos riscos. Este também é um princípio científico. Pois é, mas, por vezes, dá jeito não o considerar…
Assim sendo, o melhor é não esquecer o que sucedeu, também por toda a Europa, há cerca de dois séculos e meio, na sequência da erupção do vulcão vizinho deste, bem mais poderoso, e que tantos sinais de turbulência está a evidenciar.
4 comentários:
Caro João Cachado,
O seu artigo revela muita sabedoria. Gostei muito, muito mesmo, muito obrigado pela reflexão que obriga. Somos muito sobranceiros, tomamos por certo o que é contingente. Até tenho visto gente furiosa por se ver obrigada a esperar no aeroporto,culpabilizndo as companhias aéreas... Lembrou muito bem a erupção do tal vulcão vizinho. As consequências foram tais que até se pensa que a própria Revolução Francesa teve a ver com elas. Mais uma vez obrigada.
Rosa Soares
Também gosto bastante. Hoje todo o mundo age como se fosse rei e senhor dominando todas as pontas. A humildade na dose certa evitava muitos erros.
Caro Dr. Cachado
Faltava o oportunismo de dizer que agora é que se justifica o comboio de alta velocidade. Até o vulcão se pôs ao lado do governo português...
Pedro reis
Caro Dr. João cachado,
No último parágrafo do seu texto, julgo que se refere à Revolução Francesa. Será preciso ressalvar que a erupção e a nuvem constituiram mais um dos imensos factores que podem ser entendidos como causas do movimento que eclodiu em 1789. Apenas mais um elemento.
Sara Lemos
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