[sempre de acordo com a antiga ortografia]

quarta-feira, 11 de agosto de 2010


Bayreuth,
quase inacessível


Desde que me conheço, lembro as conversas entre os meus pai e avô acerca dos mais badalados festivais de música por essa Europa fora. Em especial, eram os casos de Salzburg e de Bayreuth que mais matéria forneciam para o diálogo entre aqueles dois queridos melómanos inveterados que, tão insidiosamente, me inculcaram o veneno. Completamente vidrado, eu ouvia, calava e registava a descrição dos ambientes e episódios relacionados com a música naqueles lugares. E, fascinado, naturalmente, sonhava.


Não deixa de ser curioso que, dentre todos os que escutaram as mesmas histórias de família – os meus cinco irmãos e irmãs ou qualquer dos quinze primos, só deste ramo paterno – apenas eu tenha ficado marcado para o resto da vida com o ferrete dos festivais, ao ponto de a sua frequência se me ter tornado numa necessidade vital, condição sine qua non para o equilíbrio anual. Bayreuth para o Wagner total, a Mozartwoche, no Inverno e o Festival da Páscoa, ambos em Salzburg, Luzern, Verona, etc, etc, como passar sem eles?

Ainda miúdo me iniciei neste vício coleante e, de tal modo assumi a tal herança que, em 1981, já estava a levar as minhas filhas, de seis e oito anos, ao Festival de Verona para assistirem, na famosa arena romana, às suas primeiras Aida e Trovatore, com elencos formidáveis. Só concebo qualquer espectáculo de boa música com a fasquia muito alta. A grande Arte não admite aproximações. Ou é ou não é.

Todos os grandes festivais internacionais têm as suas dificuldades de acesso mas, de facto, Bayreuth ultrapassa tudo. Ao longo dos anos, fui aprendendo a lidar com todas as particularidades, designemos assim, adaptando-me às rígidas condições das diferentes bilhéticas, cada vez mais sofisticadas, fazendo-me passar por situações engraçadíssimas.

São tantos os episódios à volta das óperas, do grande anfiteatro da Festspielhaus, da cidade em geral e dos arredores, é tanto o manancial de informação acumulada naqueles lugares que já me desafiaram a escrever algo que tenha a ver com uma nova "Viagem Artística a Bayreuth" qual remake, à imagem e semelhança de Voyage Artistique à Bayreuth, de Albert Lavignac. O pior é a falha de engenho e arte para tal empreendimento...

Ano sim ano não, lá volto a Bayreuth, na minha querida Baviera, para o enorme privilégio de assistir às mais espantosas montagens das óperas de Richard Wagner. Desde há muito – vantagens e prejuízos da idade… – conheço todos os truques. Ainda sou do tempo de se tratar dos bilhetes e da viagem com a expedita e saudosa Barbara, da Marcus & Harting, a agência do Rossio que já acabou há muitos anos. Ela tratava de tudo, a quem era habitué, incluindo alojamento chez l'habitant.


De novo, estou de partida, desta vez, para assistir a récitas de Lohengrin, de Parsifal e de Os Mestres Cantores de Nuremberga. No meu caso, pertencendo a uma Associação Richard Wagner, não tenho problemas quanto aos bilhetes. Enquanto cumprir com os deveres estipulados pelos estatutos da Associação, lá irei sempre que me apetecer. Como o acesso àquele mundo fascinante se tornou num assunto quase mítico, vale a pena partilhar convosco algumas curiosidades.

Muito recentemente, encontrei na internet um texto que é perfeitamente ilustrativo do fenómeno. Resolvi transcrevê-lo porque, apesar da ligeireza do tom, não há incorrecções nem disparates. Lá mais para o fim, há uma referência ao preço dos bilhetes. Apenas uma chamada de atenção já que, na realidade, como se afirma, é possível arranjar ingressos a cento e vinte euros por ópera, mas para as filas mais acima do grande anfiteatro. No entanto, reparem que, neste ano, por exemplo, paguei um pouco mais do dobro daquele preço pelo bilhete de cada uma das três óperas a que assistirei, em lugares mais abaixo e, claro, mais convenientes...

O texto está escrito em português do Brasil. Portanto, o favor da vossa benevolência.



::::::::::::::::


«Entradas para o festival de ópera na Baviera são artigos cobiçados, leiloados a pequenas fortunas na internet. As alternativas são: confiar na sorte, esperar uma década ou arrumar um emprego como "moça de azul".

De 10 a 12 anos: este é o tempo médio que um wagnermaníaco precisa esperar por um ingresso para o Festival de Bayreuth. Isto, se não pertencer à diretoria de nenhuma grande montadora de automóveis ou for casado, por exemplo, com premiê alemã. Ou se não estiver disposto a pagar uma pequena fortuna a um dos cambistas que se amontoam como moscas em torno do grande evento anual do mundo operístico.

O porta-voz do festival dedicado à obra de Richard Wagner (1833-1883), Peter Emmerich, descreve a atual relação de oferta e procura: "A situação é, no fundo, a mesma do ano passado, retrasado, e de todos os últimos anos: tem muito mais gente querendo do que há entradas".

Sendo mais preciso: a cada ano são disponibilizados 53.900 lugares. Desses, mais de 10 mil são distribuídos em diversos "contingentes especiais", destinados não só aos membros do governo alemão e à municipalidade da cidade bávara, como aos patrocinadores e a numerosas associações dedicadas a Wagner.

Acrescentem-se aí cerca de mil ingressos para jornalistas e jovens bolsistas. No fim, sobram cerca de 40 mil entradas colocadas à venda, enquanto a procura, segundo Emmerich, é de "quase meio milhão". O resultado: 12 anos na fila de espera!

Paciência

Esse tempo pode se estender ainda mais, caso o melômano cometa um deslize, como se inscrever em um ano para ver O anel do Nibelungo, no outro para Parsifal ou Tristão e Isolda; ou deixar de se alistar religiosamente na lista de espera anual. Aí o sistema Bayreuth é impiedoso: o candidato volta para os últimos lugares.

Esse talvez tenha sido o caso daquela senhora que vinha aguardando desde 1991, sempre reservando duas entradas para o Anel ou para Tristão. E sempre recebia a mesma resposta: "Infelizmente não dispomos de mais entradas".

Em 2010, depois de 19 anos de paciência, ela resolveu mudar de tática. "Hoje, se uma boa conhecida minha e um cambista muito simpático não tivessem me ajudado, eu não estaria na minha querida Bayreuth, esta cidade maravilhosa!", comenta, grata.

"Moças azuis" e questão de sorte

A japonesa Aya Kashemitsu encontrou uma outra saída da lista eterna. Há dois anos ela se candidatou como "mocinha de azul", como são chamadas as recepcionistas da meca wagneriana – embora seu uniforme seja atualmente na cor da moda, lilás. "Ganhamos um assento na lateral. Mas é um lugar de onde não se vê nada!", comenta a jovem.

Apostar inteiramente na sorte também pode ser uma alternativa. Este é o caso de Ulrich Gössele, que chegou às 13h30 para ocupar o terceiro lugar na fila diante da bilheteria. Até o início da récita, ele tem algumas horas para bater papo com a funcionária e rezar para que uma erupção vulcânica ou onda de gripe mundial libere alguns lugares.

Por via das dúvidas, ele já traz o smoking numa sacola de pano. Pois a sorte pode mudar de última hora, como ocorreu há uns dois ou três anos atrás. "Estávamos neste mesmo lugar e a bilheteira perguntou: 'Alguém quer entradas para O Navio Fantasma ?'. Eu peguei. Conheço gente que mora aqui perto e, em vez de ir ao cinema à noite, dizem: 'Vamos lá dar uma olhada, quem sabe hoje dá certo...".

E se não der? "Bayreuth é bonita, o tempo está bom. Aí a gente sai para se divertir e amanhã está de novo na fila!"

Para os mais apressados

Essa estratégia funciona para quem, como Gössele, mora em Tübingen, a umas três horas de carro de Bayreuth. Para os que viajaram especialmente da Rússia ou do Japão até o templo da ópera e precisam garantir o sucesso da empreitada com meios mais palpáveis, o respeitável senhor tem uma dica.

"Está vendo aquele homem de camisa preta, com a bicicleta? Ele é um cambista famoso por aqui." Com sessenta e poucos anos, cabelo ralo penteado para trás, Dieter – é este o seu nome – está casualmente encostado numa coluna, portando, como tantos diante do teatro, um desconsolado cartaz: "Procuram-se ingressos".

"Pois sim!", duvida Gössele. "Ele quer um pelo preço normal para vender três, quatro vezes mais caro. Nós o conhecemos há muito tempo, há uns 10 ou 15 anos. Ele tem entrada proibida no teatro. Então, para que ele vai querer ingresso...?"

O "Homem da Bicicleta"

A repórter se dirige ao cambista, que primeiro a examina de alto a baixo, desconfiado. Não, ele não tem nenhum ingresso para ela. Mas um amigo seu talvez tenha. Ela que volte dali a duas horas.

Em seu escritório, a menos de 20 metros de onde age o "homem da bicicleta" – como o cambista notório já é conhecido nos meios bayreuthianos – o porta-voz Emmerich condena a prática. "Somos contra o câmbio negro em geral, fazemos todo o possível para que as entradas não caiam nele. Mas não somos tão ingênuos a ponto de acreditar que alguns controles ou bilhetes nominais vão impedir as vendas ilegais."

Passadas duas horas, Dieter parece estar mais tranquilo do que antes e fornece um endereço numa cidadezinha vizinha. Trata-se de um hotel todo decorado em homenagem a Wagner, perto do antigo correio. O "amigo", Peter, se mostra ligeiramente embaraçado. Normalmente ele nunca faz isso, mas por acaso um hóspede acabou de cancelar o pacote encomendado, com direito a pernoite e uma récita no Festival de Bayreuth...

O preço da beleza sem igual

O preço normal do ingresso é de 120 euros, a repórter tem que pagar três vezes mais: um valor relativamente em conta, comparado às fortunas exigidas no portal virtual de leilões Ebay. O bilhete traz um nome impresso: "Erik Berger, Wuppertal", mas isso ninguém confere. Agora, só resta esperar que o comprador não tenha pedido uma segunda via, alegando perda. Pois isso também acontece.

Afinal, por que todo esse investimento de tempo, dinheiro e paciência, "só" para ter estado em Bayreuth? Na entrada para o espetáculo, um espectador entre tantos tem a resposta na ponta da língua: "A gente quer tanto ouvir! A atmosfera da casa e a qualidade da execução são sempre inigualáveis. E essa sonoridade velada, justamente para Wagner... É de uma beleza sem igual!".

Autor: Anastassia Boutsko / Augusto Valente
Revisão: Soraia Vilela
»



8 comentários:

Anónimo disse...

Pois... mais que meu ordenado.

Álvaro Esteves disse...

Caro Dr. Cachado,
Quem ler o seu perfil como autor do blogue tem apenas uma aproximação sobre o seu interesse pelos festivais. Já tinha percebido alguma coisa ao ler as suas justas críticas ao festival de Sintra (que está uma sombra do que conheci) mas agora até consigo perceber melhor.
Quanto ao preço dos bilhetes não me faz a mínima impressão. Sou aficcionado das touradas (também já li os seus textos neste blogue e percebo que é um companheiro de lide...) e habituado a pagar bem para ver as melhores corridas.
E os adeptos do futebol que gastam fortunas?
Alertaram-me para as suas críticas musicais no Jornal de Sintra pelo que agradeço me forneça indicações sobre datas.
Cumprimentos, Álvaro Esteves

Dantas Miguel disse...

Meus senhores:

Salzburg, Bayreuth, Verona e outros de que fala o J. Cachado são os festivais da alta roda dos intelectuais, burgueses cultos e sofisticados. O J. Cachado deve conhecer gente desta em Portugal que também vai aos festivais nacionais (que não se estragaram como o de Sintra) e deixaram de cá vir porque o Presidente da Câmara não está nada preocupado com a qualidade do festival de Sintra, embora fazendo tudo por aparecer nas revistas cor de rosa aos beijinhos e abraços a uma gente sem qualquer nível e até ambígua, sexualmente falando. Isto também contribui para Sintra perder lugares em comparação com a qualidade de vida doutros concelhos.
BDM

Anónimo disse...

"A grande Arte não admite aproximações. Ou é ou não é" escreve o senhor. Isto só significa que a "grande Arte", em directo, é só para quem pode. Os outros têm uma aproximação se a rádio ou a televisão transmitirem...

Ricardo Duarte disse...

Refere no segundo parágrafo “…ao ponto de a sua frequência se me ter tornado numa necessidade vital, condição sine qua non para o equilíbrio anual.” Como eu o percebo! Quem tiver a oportunidade de frequentar nem que seja alguns dias por ano determinados contextos civilizacionais oferecidos pela nossa Europa, perceberá que esse seu equilíbrio não é apenas um delírio esotérico.

Se pensarmos que estamos apenas a meio da pior época do ano para os que habitam e trabalham na nossa terra, servirá também essa sua viagem como enorme bálsamo.

De facto, as coisas parecem piorar de ano para ano mesmo que seja difícil imaginarmos e por isso é normal que logo pelo fim da manhã já nos encontremos irritados e desgastados com tal caos existente.

Certo estou que encontrará um ambiente muito mais estimulante.

Um abraço,

Ricardo Duarte.

Anónimo disse...

Realmente! Há aí quem tenha razão!
"quase inacessível" - o sr. sabe a afronta que isto é para quem tem se governar e educar filhos com esse dinheiro mensalmente?
(e que por acaso até foi educado quase nos mesmos padrões que o sr. mas, a vida dá muitas voltas...)

Anónimo disse...

Compreendem-se as palavras desta ou deste comentador denotando uma visão um pouco estreita de como nos devemos orientar na sociedade.Há quem gaste em telemóveis mais do que recebe de subsídios;há quem tenha lojas para os seus negócios e consiga tê-las de porta fechada; há quem pague rigorosamente todos os impostos, sem benefícios sociais; há quem ao longo dos meses pratique uma política de controle de gastos de forma a ter disponíveis os valores para os seus gostos pessoais.Se o professor João Cachado opta por estas realizações pessoais, só a inveja pode gerar críticas destas. Ele há pessoas que só conseguem ver o mundo à sua maneira,se tanto recebendo benefícios que outros não tenham.É tudo uma questão cultural.
Marta G.Salavessa Rebêlo

Anónimo disse...

Visão muito estreita aquela que demonstra D. Marta ...
E, a questão não é cultural mas sim de indole social.