[sempre de acordo com a antiga ortografia]
segunda-feira, 4 de outubro de 2010
Pontapé na gramática
Antes da continuação do texto ontem iniciado,* apenas um pequeno apontamento acerca da falta de qualidade do português falado e escrito que, constantemente, perturba os nossos dias.
Vamos, então, por ordem cronológica, ao encontro de duas grossas e recentes calinadas. Em primeiro lugar, graficamente muito destacado, um parágrafo da página 5 do programa referente ao concerto promovido pela Fundação Gulbenkian dos dias 29 e 30 de Setembro:
“Dedicada ao Príncipe de Hohenzollern-Heschingen, a abertura de concerto Le Carnaval romain foi dirigida por Hector Berlioz no palácio do príncipe em Löwenberg, na Prússia, em Abril de 1863. A obra obtera já grande sucesso público, sendo apresentada com frequência nas digressões do compositor francês.”
Obtera! É verdade, numa casa com aquela responsabilidade de tão sofisticada e amplíssima oferta cultural, é inadmissível que se publique e venda um texto com erro tão grosseiro. Alguém escreveu, alguém reviu, alguém imprimiu e a ninguém pareceu estranha aquela forma verbal. O autor pretendeu usar o pretérito mais-que-perfeito do indicativo do verbo obter, desconhecendo tratar-se de um composto de ter, que, portanto, como este se conjuga, devendo escrever obtivera.
Tão imperdoável como este, eis um caso que tem apenas duas horas de ouvido. Passou-se no programa Império dos Sentidos, da Antena Dois da RTP. No âmbito de um tempo dedicado à comemoração do centenário da República, o historiador António Reis – actual Grão-Mestre da Maçonaria Portuguesa, professor universitário, ex-Secretário de Estado da Cultura, meu contemporâneo da Faculdade de Letras na década de sessenta – em determinado ponto da sua participação, disse 'tinha eleito' quando, inequiviocamente, deveria ter dito 'tinha elegido'.
Na realidade, eleger é um verbo que, mantendo duas formas de particípio (a regular e a irregular), ou seja, respectivamente, elegido e eleito, se conjuga nos tempos compostos, com os auxiliares ter e haver, no primeiro caso, e ser e estar, no segundo. Que um falante descuidado ou ignorante empregue o particípio irregular eleito, invariavelmente, em qualquer das circunstâncias, é algo que deve merecer imediato reparo. No caso de António Reis é inadmissível e imperdoável.
A propósito do correcto emprego de cada um dos particípios, cumpre assinalar que, além de Ana Lourenço, jornalista da SIC Notícias, é raríssimo ouvir, por exemplo, o verbo aceitar devidamente conjugado nos tempos compostos. Ela, consciente da importância da irrepreensibilidade da expressão verbal na comunicação social, costuma terminar as entrevistas “(…) muito obrigada por ter aceitado esta entrevista (…)”. Assim é que é!
Cor local
Terminaria, de sorriso amarelo, com algo que já trouxe a estas páginas. É a já proverbial, mas bem real anedota - que testemunhei pessoalmente - de um Senhor Vereador da Câmara Municipal de Sintra que, desconhecendo a conjugação pronominal do verbo pôr, na primeira pessoa do singular do pretérito perfeito do indicativo, em vez de pu-lo, diz puzi-o. [Nem sei como reproduzir a asneira, por escrito, sem a transcrição fonética, pouco acessível ao leitor comum...].
Em Sintra, não haja dúvidas, também neste domínio da comunicação, os eleitos locais pretendem que nada falte aos munícipes. De facto, como se comprova, não estamos nada mal representados...
*Prossegue no próximo dia 6.
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4 comentários:
Caros leitores,
Não o tendo feito no corpo do artigo que hoje publiquei, parece-me vir a propósito fornecer uma lista dos verbos cujos particípios passados duplos mais usados são os seguintes:
[At: ler da esquerda para a direita, primeiro o infinitivo, depois o particípio irregular – para os tempos compostos com os auxiliares ser e estar - e, finalmente, o particípio regular, para os tempos compostos com os auxiliares ter e haver]
absorver, absorto, absorvido
aceitar aceite, aceitado
acender, aceso, acendido
agradecer, grato, agradecido
assentar, assente, assentado
atender, atento, atendido
cativar, cativo, cativado
cegar, cego, cegado
completar, completo, completado
convencer, convicto, convencido
corrigir, correcto, corrigido
cultivar, culto, cultivado
descalçar, descalço, descalçado
dirigir, directo, dirigido
dissolver, dissoluto, dissolvido
distinguir, distinto, distinguido
eleger, eleito, elegido
entregar, entregue, entregado
envolver, envolto, envolvido
escurecer, escuro, escurecido
expulsar, expulso, expulsado
ganhar, ganho, ganhado
gastar, gasto, gastado
imprimir, impresso, imprimido
inquietar, inquieto, inquietado
juntar, junto, juntado
libertar, liberto, libertado
limpar, limpo, limpado
manifestar, manifesto, manifestado
matar, morto, matado
morrer, morto, morrido
nascer nato,nado, nascido
ocultar, oculto, ocultado
pagar, pago, pagado
prender, preso, prendido
romper, roto, rompido
salvar, salvo, salvado
secar, seco, secado
soltar, solto, soltado
tingir, tinto, tingido
torcer, torto, torcido
Atenção aos verbos apresentar, empregar e encarregar. De facto, apenas têm particípio regular - apresentado, empregado, encarregado - que, habitualmente, são substituídos por falsos particípios irregulares - presente, empregue e encarregue - que são formas incorrectas e, portanto, de evitar.
Julgo não estar a perder tempo. Ouço e leio tanta incorrecção neste domínio que me parece oportuno partilhar convosco esta preocupação.
João Cachado
Na página da Segurança Social a palavra "progenitores" aparece escrita com "J".
Também há pontapés na ortografia ...
Caro Dr. João Cachado
Há muito tempo que não fazia comentários. Estive no Canadá com a minha filha e netos, pouco me ralando com os blogues porque tinha mais que fazer.
Muito obrigado pela bela "lição de português". Neste blogue pode-se ler do melhor português.
O que está sempre a escrever
sobre a cultura do desleixo
também se aplica
à maneira como escrevemos e falamos.
A língua não é nada
traiçoeira, nós é que somos desleixados. Abraços do
Artur Paiva
Colega João Cachado,
Vou chamar a atenção dos colegas para esta matéria. A propósito, reli os seus posts de 4 e 18 de Abril de 2008 sobre o acordo ortográfico. Não me recordo se cheguei a informá-lo de que aproveitei para uma aula o que também foi publicado no Jornal de Sintra.
Continua de parabéns.
Obrigado,
Mª Alice Ferreira
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