[sempre de acordo com a antiga ortografia]

terça-feira, 23 de novembro de 2010





[Coincidente com tema e objectivos de Atenção aos cêntimos... (11.11.2010), enviei para o Correio de Sintra o texto publicado na sua última edição de 19 do corrente que passo a transcrever]


A fome, a noz e os dentes…



Há vários meses que o Presidente da Câmara Municipal vem expressando quão preocupante é a situação social em Sintra. Tanto assim que, segundo o próprio, a autarquia vive a maior dificuldade na indeclinável missão de satisfazer as necessidades mais prementes de muitos munícipes cuja vida, do calvário que já era, se transformou no actual inferno, consequência da crise global que se abateu por cima da crise de sempre, aquela que Portugal vem cultivando há
tantos anos.

O primeiro e retumbante manifesto público daquela preocupação institucional aconteceu aquando da última visita ao concelho do Presidente da República. Nessa altura, Fernando Seara não esteve com demasias. Com a comitiva reunida numa escola das redondezas, não poupando palavras e, em implícita crítica ao Governo que deixou a situação resvalar até ao ponto de ruptura, afirmou a miséria que para aí vai, bem patente nos muitos milhares de crianças a quem a Câmara mal consegue matar a fome.

Há quinze dias, no âmbito de uma reportagem do semanário Expresso, Fernando Seara e Marco Almeida ainda carregaram a questão de tons mais sombrios. Aliás, mais não fizeram senão confirmar o que é consabido. Em Portugal, se cerca de dois milhões de cidadãos vivem no limiar da pobreza, tal significa que, proporcionalmente, no concelho de Sintra, já haveria cem mil munícipes que, cheios de dificuldades, apenas sobreviviam. Com o agravar da situação, imagina-se os dramas que atingem muitas crianças das nossas escolas.

Nestes termos, inadmissível será que a Câmara patrocine despesas inerentes a qualquer actividade supérflua. Assim sendo, nas actuais circunstâncias, passaria pela cabeça de alguém que, a pouco mais de um mês do Natal, Sintra se preparasse para gastar centenas de milhar de euros, por exemplo, em iluminações nas ruas, quando não consegue alimentar decentemente os garotos?

Por acaso, já teria havido ocasião para envolver os miúdos em trabalhos afins da quadra de festas que se avizinha, trazendo para a rua o fruto e o brilho do seu labor escolar. Mas tal pedagogia social não está ao alcance desta gente sem gabarito. Ou, em termos de conhecidos anexins, tais falhas dos fracos decisores políticos que vamos tendo, resultarão de falta de dentes para tão boas nozes, quando não da falta de unhas para tocar a guitarra…

Porém, num tempo de tão escassos recursos, o investimento que não rende é tão criticável como o despesismo. Como se entende, a título de mero exemplo, que o pequeno auditório do Centro Cultural Olga Cadaval não tenha movimento que beneficie a comunidade quando, sem maior investimento, seria possível promover um imenso rol de actividades, com rendimento garantido? Meu Deus! Que bela noz! E que falta de dentes!...

Ainda outro exemplo? A Quinta da Ribafria, investimento dos munícipes numa das jóias do concelho. Em tempos, a Fundação Friedrich Naumann lá promoveu seminários de formação de quadros. Mais tarde, até houve intervenção da Escola Profissional de Recuperação do Património de Sintra. Agora, alguém sabe o que por lá se passa? Que rendimento aproveitam os cidadãos?

Apenas dois exemplos de incapacidade deste executivo municipal. Em flagrante contradição, o que dizer do recente atrevimento de pedir seis milhões de euros aos munícipes para compra da Quinta do Relógio? O edifício tem imensos problemas, a recuperação avultadíssima nem sequer contabilizada está para efeitos da aquisição de um espaço para o qual a CMS não tem programa de ocupação.

Perante a geral perplexidade, a ousadia da Câmara é inqualificável em relação a um investimento supérfluo e cheio de sombras. E, em simultâneo, proclama mal ter dinheiro para
matar a fome aos filhos de muitos munícipes contribuintes?

Haja decoro!


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Fome?
Sim, de esclarecimento...


Claro que terão percebido a ironia no quarto parágrafo. Por acaso, no dia em que escrevi este texto, ainda a empresa de Espinho não começara a montar aquelas armações horrorosas com as penduresas iluminantes da quadra natalícia. Mas, de facto, ao contrário de outras autarquias, não havia qualquer sinal de que a Câmara Municipal de Sintra tivesse decidido não sobrecarregar os munícipes com uma despesa perfeitamente escusada.

Assim, tal como não estivera com demasias ao afirmar a fome que lavra entre as criancinhas do concelho, Fernando Seara optou por escandalizar o povo de Sintra. Mais uma vez incoerente, deitando fora muitos milhares de euros, não está à altura do momento. Quando, em tão difícil circunstância de crise generalizada, é imprescindível demonstrar como qualquer cêntimo mal gasto é uma vergonha, o presidente esbanja.

Pois, então, as iluminações de Natal aí estão. Como se nada se passasse e, como se o destempero das luminárias, aliás, de péssimo gosto, fosse a coisa mais pacífica deste mundo numa época em que tantas famílias de munícipes não conseguem fazer face às dificuldades.


Muito mais avisadamente, alguns presidentes de Junta de Freguesia, por exemplo, de Colares, Rio de Mouro e São Marcos decidiram que, neste ano, não vão ter as suas ruas iluminadas com as habituais luzes de Natal, optando por investir as verbas na aquisição de bens alimentares para ajudar as famílias mais carenciadas.

Que belíssima lição ao presidente Seara! Que bofetada sem mão! O edil tinha na mão mas desperdiçou a possibilidade de liderar a única atitude de dignidade coerente com as denúncias que tem protagonizado, quer na presença do próprio Presidente da República quer na utilização mais desbragada da comunicação social.


Menos luminárias, mais lucidez...

Muito a propósito, hão-de concordar comigo, se impõe o esclarecimento cabal e definitivo desta posição do Senhor Presidente da Câmara Municipal de Sintra que, importa não esquecer, aparece espaldada por Fernando Ruas, seu conterrâneo viseense, companheiro de partido e Presidente da Associação Nacional de Municípios. Estes senhores e outros têm propalado a ideia de que o Governo e, em especial, o Ministério da Educação não tem honrado os compromissos com as autarquias.

Se bem se lembram, a Ministra da Educação que, como toda a gente sabe, não é senhora para peixaradas, noutro dia, no Parlamento, só faltou jurar a pés juntos que a Administração central não tem pendente um cêntimo de débito às autarquias, no âmbito em que os edis se têm pronunciado. Conheço pessoalmente Isabel Alçada, sabendo que é pessoa incapaz de mentir em qualquer circunstância e, muito menos, em matéria de Estado dela dependente, só me resta a conclusão de que, em toda esta questão deve estar a acontecer qualquer obscuro ou menos claro aproveitamento dos autarcas.

Por outro lado, como admitir que o Presidente da Câmara Municipal da minha terra se permita aproveitar de uma situação de tão lamentável carência de tantos munícipes? A propósito, sabem, estou farto de que, em situações similares de desgraça e tragédia, continuem a circular insinuações de aproveitamento ignóbil. É que em Portugal, país de tão notáveis, conhecidos e famosos habilidosos, a par da designada cultura do desleixo, há uma bem difundida e sistemática cultura de aproveitamento que, espero bem, não enquadre o caso da fominha das criancinhas de Sintra.

Exemplos? Não faltam, infelizmente. Que tal o dos suinicultores que, subtraindo-se ao controlo das entidades oficiais, se aproveitam da desgraça de um surto de peste suína africana nas suas malhadas, acabando por se verem chorudamente ressarcidos de prejuízos, entretanto apresentados altamente sobrevalorizados? Mas a agricultura e a pecuária não são actividades mais susceptíveis de malandrice generalizada. O que – diz-se, diz-se… – aconteceu com a tragédia da Madeira terá também suscitado outro manifesto de aproveitamento?

Oportunismo? Bem parece...

É por essas e por outras que, em Sintra, devemos exigir que tudo seja muito, mesmo muito bem explicadinho. Afinal, quantas criancinhas e respectivas famílias foram, real e inequivocamente alimentadas pela Câmara Municipal de Sintra, nos refeitórios de que escolas, quer no domínio quer fora do contexto do compromisso institucional com o Ministério da Educação? De facto, em que datas é que escolas do concelho estiveram e/ou estão abertas durante os fins de semana, onde as famílias se dirigiram e/ou ainda dirigem para satisfazerem necessidade tão premente?

A propósito, sabem que o Fernando Castelo tem tido a maior dificuldade em obter resposta capaz a estas questões? Dirigiu-se a todas as entidades do concelho que poderiam responder à demanda de informação e o máximo que obteve foram palavras dúbias e evasivas do director de uma das escolas? Porquê tantos obstáculos ao esclarecimento solicitado por um munícipe interessado em perceber que destino é dado ao dinheiro que coloca à disposição da Câmara?

Hoje em dia, depois de o Senhor Presidente da Câmara ter caído nesta escandalosa contradição, das luzes de Natal que não jogam com a sua denúncia da fominha, permito-me desconfiar do seu discurso. Fique bem esclarecido, não desconfio de que haja miséria e fome no concelho. Sei que há. Como dirigente da maior federação sindical de professores e de funcionários não docentes, estou ao corrente da situação que grassa por esse país.

Mas, como munícipe sintrense, também eu, acerca deste assunto, quero saber números claros, sem subterfúgios. Estou saturado da poeira que, anos a fio, me têm atirado para os olhos, acerca de tudo e mais alguma coisa relativa a situações por esclarecer em Sintra. Dificilmente, estou certo, haverá outra autarquia com tanta questão por explicar. E, naturalmente, quando há o azar de um vereador estar enredado em matéria obscura que, entretanto, foi atirada para a berlinda da comunicação social, quem não fica de pé atrás?...


Basta de discursos habilidosos! E, de facto, outra coisa não posso fazer já que os partidos com assento na Assembleia Municipal não me representam. Se me representassem não precisaria eu de escrever a solicitar o que eles deveriam fazer. Enfim, perversidades da vida democrática que bem merecem a maior reflexão...




10 comentários:

M. A. Castro disse...

Caro colega João Cachado,

São dois textos muito bons, muito bem escritos, cheios de boas avaliações sobre alguns males de Sintra. Parabéns para si, para o «Correio de Sintra» que soube convidá-lo para colaborador e para nós que temos o gosto de ler do melhor Português que se escreve por aí.

Maria Ana

Anónimo disse...

Seteais cheia de irregularidades, iluminações de Natal a custarem o dinheiro que Sintra não tem, o escândalo da compra da Quinta do Relógio, aproveitamentos, desleixo... Que mais ainda temos de suportar ao Dr. Seara não sei. O melhor era ir para a Federação do futebol.

Rui Santos disse...

O oportunismo que sugere é mesmo real. Há muita miséria em Sintra mas é preciso que aq Câmara não aproveite a boleia para se financiar. Também discordo totalmente das iluminações natalícias. Se não há dinheiro não há festa. Sintra não tem motivo nenhum para festejar. Devíamos todos ter muito cuidado com
o dinheiro que gastamos e deixar-nos de presentes de Natal. O que poupássemos, dávamos a quem precisa e assim o Natal podia ser melhor para todos.
Rui Santos

Anónimo disse...

Ainda nao acenderam as luzes e já se tem uma ideia do que aí vem: mais do mesmo mau gosto de sempre. Os únicos que ganham são a empresa que é a mesma há anos. Não acredito que o comércio tenha alguma vantagem. Li a ideia do João Cachado quanto ao envolvimento dos estudantes e concordo. Pode não haver luzes e até mais espírito de Natal e de partilha com a desgraça alheia.
Carla

Anónimo disse...

Acendem-se as luzes para uns e apagam-se as luzes para outros. Soube hoje que o posto de turismo do centro histórico bem com o da estação vão ser encerrados, remodelados para depois serem entregues a uma entidade que se designada ATL. Penso tratar-se da Associação de Turismo de Lisboa, assim sendo é uma empresa privada, vinda não se sabe muito bem como com o direito de fazer o quê. Alguém sabe o que é que se está a passar? Julio M. Sousa

Elvira Torres disse...

Este presidente deixou de ter consideração pelos munícipes ou então só tem por alguns. Enquanto estiver na presidência vão continuar estes casos das iluminações, de Seteais, da Quinta do Relógio, do escândalo das empresas municipais, do abandono da Quinta da Ribafria e tantos outros. O que não tem remédio remediado está...

Elvira Torres

Anónimo disse...

Caro João Cachado,

Há muito problema por resolver, muita trapalhada. Mas no tempo da Edite era a mesma coisa. O grande problema é a falta de qualidade da classe política. São todos muito fracos e Sintra não merecia isto.

Carlos Cardoso

Vitor Duarte disse...

Até mesmo foi montada a grande árvore junto ao Palácio da Vila. É uma vergonha, com tanta miséria a gastar-se um dinheiro que podia socorrer muita gente com necessidades.
Este presidente Seara vai ficar memorável pelas piores obras...
Vitor Duarte

Anónimo disse...

Estive hoje em Seteais. Quem não leu os seus textos nem se apercebe do mal que lá está debaixo da aparência da normalidade.
Mas com a sua ajuda tudo
é claro mas preocupante.
Fica-se com vontade de
dar uma carga de pancada
naqueles dois notáveis
Pais do Amaral e Ricardo
Salgado. É só uma força de
expressão... Mas alivia um
bocado. Obrigado

Afonso Castro disse...

Caro João Cachado,
Também estivemos em Seteais. Dizia a minha mulher que o melhor era mandarmos mensagens de repúdio ao Seara.
Mas não vale a pena. Quando ele o ignora a si que é uma voz autorizada do concelho, a mim mandava-me a qualquer lado que não gosto... Abraço e parabens,
Afonso Castro