Espírito do lugar:
outras ofensas
“(…) No vão do arco, como dentro de uma pesada moldura de pedra, brilhava, à luz rica da tarde, um quadro maravilhoso, de uma composição quase fantástica, como a ilustração de uma bela lenda de cavalaria e de amor. Era no primeiro plano o terreiro, deserto e verdejando, todo salpicado de botões amarelos; ao fundo, o renque cerrado de antigas árvores, com hera nos troncos, fazendo ao longo da grade uma muralha de folhagem reluzente; e emergindo abruptamente dessa copada linha de bosque assoalhado, subia no pleno resplendor do dia, destacando vigorosamente num relevo nítido sobre o fundo do céu azul-claro, o cume airoso da serra, toda cor de violeta-escura, coroada pelo Palácio da Pena, romântico e solitário no alto, com o seu parque sombrio aos pés, a torre esbelta perdida no ar, e as cúpulas brilhando ao sol como se fossem feitas de ouro (…)”
(Os Maias)
Continuo no âmbito do texto precedente, aqui publicado no penúltimo dia do ano passado. A mesma obra literária, mais um trecho da mesma Sintra que, neste excerto de página absolutamente imperdível, o autor eleva à excelência dos mais belos lugares.
Certamente, a exemplo do que terá acontecido a muitos de vós, esta descrição condicionou, total e decisivamente, a minha interpretação de um cenário que conheço desde criança. E, meu Deus, ainda bem! Que bom ter ficado, não pejorativamente condicionado, mas tão enriquecido pela arte de Eça! Que privilégio poder partilhar as palavras do autor, no preciso local onde coincidimos com o seu particularíssimo olhar que acabou por consignar à paisagem uma nova dimensão da realidade.
Se o cenário permanecesse imutável, tratar-se-ia de um espectáculo de eterno usufruto. Ora, meus amigos, perante tão pacífica sentença, eis que, em sentido adverso e perverso, se agiganta um poderoso óbice. Apenas movido por inqualificável egoísmo, a verdade é que há quem esteja perfeitamente nas tintas para que o lugar mantenha o carácter ganho pela intervenção do homem, tal como o verbo queirosiano o imortalizou.
Ora vejamos o exemplo mais concludente do que acabo de afirmar. Nesta altura, mais de dois anos passados sobre a denúncia que eu próprio trouxe a público, na quinta do Vale dos Anjos, Miguel Pais do Amaral continua a construção da sua desmesurada casa, polemicamente autorizada pela autarquia, na sequência dos mais suspeitos mas favoráveis pareceres, formulados e emitidos por entidades que com eles se emporcalharam. Sintomática mas não surpreendentemente, ignora-se ainda a natureza do despacho do douto Tribunal Administrativo de Sintra ao qual, há cerca de dois anos, o processo foi submetido para apreciação.
Como a obra de construção não foi exemplar e oportunamente suspensa, o quadro maravilhoso referido por Eça deixou de o ser. Foi alterado. Inapelavelmente. Ainda com muito trabalho por concretizar, já é bem visível o volume da mansão. Para maior vergonha de todos quantos são cúmplices do despautério, quando as paredes exteriores receberem o tratamento cromático final, tudo ficará bem mais à vista, poluindo aquilo que deixámos fosse tão vilmente desrespeitado.
O outro lado do desassossego
Nos últimos três anos, Seteais vai acrescentando ofensas de um triste fado. Mais um caso extremamente controverso é o da destruição do tanque, pelo grupo Espírito Santo, concessionário do hotel, que resultou no sucedâneo travestido de uma prosaica casa de máquinas, a qual, sob o beneplácito do IGESPAR, subscrito pelo Arquitecto Assessor Principal Luís de Pinho Lopes (presentemente Chefe do Gabinete do Secretário de Estado da Cultura) era suposto receber, na respectiva placa de cobertura, um lamentável e bacoco espelho de água ilusionista.*
Num local tão simbólico de Sintra, à beira da velha estrada de Colares, cuja largura é o traço da união entre dois magnatas da mesma escola, à compita em sucessivas campanhas de asneiras, a actual casa das máquinas é a desqualificada imagem de uma situação bem exemplificativa da miserável situação a que chegou a defesa do património em Sintra, directa e indirectamente nas mãos de autoridades às quais competia ter assegurado os interesses gerais de uma comunidade que – oh ilusão e santa ingenuidade! – para todos os efeitos, continua convicta de que o seu quadro político de referência é o Estado Democrático de Direito…
Como continuaremos a verificar, em matéria de desacatos, perpetrados num espaço que é património do Estado, também deste lado da estrada não estamos nada mal servidos…
(continua)
*vd. texto aqui publicado em 13.11.2008, Seteais, pobre tanque…
8 comentários:
Tudo isto está muito certo como ofensa ao espírito do lugar. Mas não deixe de ir à Regaleira ver as avarias do Sr. Alves. Deve-se ter passado. Siga o conselho de um comentário ao seu post anterior. Verá que tem lá matéria para não sei quantos artigos.
A Regaleira e o espirito do Tarrafal. Agora são os postes para as câmaras de vigilância. E o parecer do IGESPAR?
Caro Prof. João Cachado
Os contentores do lixo que estão junto aos portões que dão para a estrada, é frequente estarem muito sujos e com detritos no pavimento. Dão uma imagem horrível que também é uma ofensa ao lugar. Tanta beleza à volta e tanta falta de cuidado com detalhes, coisa que não se verifica lá por fora no estrangeiro. Seteais é um lugar muito castigado e o Prof. Cachado faz muito bem denunciar. É uma lição aos responsáveis em especial o Vereador do Turismo que não percebe nada. Talvez aprenda qualquer coisa consigo. Parabéns.
Nuno Barros
Caro Prof. João Cachado
Os contentores do lixo junto aos portões da entrada para o hotel de Seteais também são uma ofensa ao lugar. É frequente estarem sujos e com detritos no pavimento. Aquilo é um palácio classificado e um hotel de cinco estrelas mas parece uma entrada de saguão. Parabéns ao Prof. João Cachado. Está a dar uma boa lição a estes aprendizes. O Senhor Vereador do Turismo e o Senhor Presidente da Câmara que acumula o pelouro da Cultura deviam tomar atenção e verem se aprendem qualquer coisa.
Fátima Pombo
Ofendidos estamos todos nós os sintrenses pelas malfeitorias da CMS contra o espírito dos lugares que estão mais nos nossos corações.
Os autarcas em geral são muito ignorantes. A Câmara de Sintra não é excepção. O caso mais notório é o Senhor Vereador do Turismo. O Dr. João Cachado em diversas alturas, escreveu que havia um Vereador a dizer pusi-o em vez de pu-lo, mas nunca esclareceu quem é esse senhor. Estou em posição de poder dizer que é o Senhor Vereador do Turismo Dr Lino Ramos. Eu também já o ouvi dizer essa calinada. Mas é esse senhor que é o grande autor da Sintra capital do romantismo e que fala sobre o romantismo como grande autoridade. Com vereadores destes não admira que Sintra esteja na miséria em que está.
MFF
Continue o Dr. João Cachado com estas denúncias sobre ofensas ao espírito dos lugares porque a Associação de Defesa do Património de Sintra é uma caricatura que não faz nada num terreno onde há tanta coisa para incomodar.
Telma
A Associação de Defesa do Património é uma FRAUDE!!! A srª. presidente da dita associação é, no mínimo cúmplice em alguns atentados ao património sintrense. Essa srª é membro do conselho consultivo da fundação cultursintra e desde que o sr. alves para lá foi, o tal conselho não tem sido nem perdido nem achado para coisa alguma, porque o sr. alves é assim, sabe tudo de tudo e depois é o que se vê. A Mrs. Jones, que partilha com o sr. alves as mesmas ideologias politico/nacionalista/religioso /metafisica nada filosóficas, deixou-se levar/calar pelo trafulha da Regaleira. E assim suicidou-se enquanto agente defensor de causas.
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